Nem os marcianos acreditam. Dois terremotos fortíssimos abalam, em menos de dois meses, as Américas. Primeiro o do Haiti – o país mais pobre do continente –, e agora o do Chile – o país latino-americano mais elogiado pelo Primeiro Mundo. O que esses terremotos nos mostram? Eles nos revelam a precariedade das urbanizações e, no caso chileno, também da infraestrutura (estradas, aeroportos, portos), construída – mesmo levando-se em conta a reincidência de sismos – aquém das necessidades. Eles demonstram que a onipotência é um defeito grave. No Haiti não havia qualquer infraestrutura, apesar de cinco anos de presença da Minustah – órgão da ONU que ajuda a governar o país, exceto em Pétionville, o bairro luxuoso de Porto Príncipe, sua capital.
Imaginem um terremoto do porte do chileno e do haitiano na cidade do Rio de Janeiro – bastante maior que Santiago (capital do Chile, como o leitor sabe) e que Porto Príncipe. O que ocorreria com as favelas e os favelados? O que aconteceria com os edifícios geminados? Impõem-se uma revisão dos padrões de urbanização, padrões de civilização ela mesma, embora isso seja devaneio. Impõe-se igualmente repensar as infraestruturas, inclusive no Brasil – todas elas feitas às pressas, à base do imediatismo eleitoral. Quantas pessoas residem em várzeas de rio em São Paulo? Quantas residem em áreas de represas, pelo país?
Outro ponto comum, que elide a condição pobre do Haiti e a condição remediada do Chile: a falta de alimentos, de luz elétrica, de telefones, que provoca desespero nas pessoas já em pânico e, por isso, gera saques a mercados, pilhagens e luta fratricida. As tragédias destroem a vida cotidiana. Na cidade chilena de Concepción, a mais atingida pelo terremoto, que se situa a 115 quilômetros de Santiago, foram furtados supermercados e farmácias. Alguém, acusado de furto naquela cidade, disse: “Não sou ladrão. Quero pagar. Mas não há caixas”. A reconstrução do Chile vai custar em torno de 30 bilhões de dólares. O país tem Estado – o menos corrupto da América Latina. A construção do Haiti – que já não existia – é algo ainda inalcançável.
O terremoto liquidou com parte da cidade histórica chilena de Valparaíso, onde o poeta Pablo Neruda mantinha uma casa. No Haiti há mais de 200 mil pessoas enterradas de qualquer jeito e em qualquer lugar. Há mais de 1 milhão de aleijados naquele país. Sebastián Piñera, que tomará posse no próximo dia 11 de março, para substituir Michelle Bachelet, terá de fazer um governo de união nacional – possibilidade que nem sequer existe no Haiti, sem autoridades legítimas. É palpável o risco de o Chile recair em um governo populista, que já havia superado, em virtude do desespero e da impossibilidade de se atender a todos de pronto.
As tragédias – naturais ou causadas artificialmente – fazem o ser humano se reencontrar com sua precariedade – suspendem rapidamente as leis de convívio e instauram o “salve-se quem puder”. De muitos modos, já experimentamos essa situação no dia a dia das metrópoles, cada vez mais anti-humanas. Imagine então o leitor a tragédia da guerra, em que civis são mortos por interesses geopolíticos, em que garotos se transformam em “soldados”, como no Afeganistão, no Iraque, na Caxemira, na Palestina. Uma guerra equivale a muitos terremotos, ou a terremotos ao longo do tempo, contínuos.
O que ainda há em comum entre Chile e Haiti? O aquecimento da Terra, em virtude das atividades industriais de alguns países. Tal aquecimento já se tornou uma espécie de “segunda natureza”, incorporada à própria natureza. Uma força química que se agrega aos movimentos insondáveis do globo e os acentua. Chuvas brutais na ilha da Madeira, chuvas nunca antes vistas em todo a inverno europeu, tormentas de todos os tipos, neve a mais nos Estados Unidos, verão quentíssimo no Brasil etc. Entretanto, os “líderes” não chegaram a qualquer acordo sobre como detê-lo (o aquecimento global) na reunião em Copenhague, no final de 2009. O aquecimento não causa terremotos, mas os agrava.
A primeira década do século XXI foi a década das tragédias. Os atentados de 11 de setembro em Nova York e Washington, o furacão Katrina, o tsunami (maremoto) na Indonésia, os terremotos no Haiti e no Chile, as guerras já mencionadas, o crash econômico de 2008, o terrorismo difuso, paranoico, o crash da arte, da educação etc. Foi igualmente a década em que os valores e as ideologias se dissiparam por completo, com George Bush exasperando o imperialismo norte-americano ao custo de prisões como Guantánamo – onde se apagam todos os direitos em nome de interesses privados. Tudo isso me traz à tona um verso de Carlos Drummond de Andrade. Ele narra, no poema “Science Fiction”, de Lição de coisas (1962), a história de um marciano que chega à Terra e se espanta com a impotência, a impossibilidade humana: “como pode existir, pensou consigo, um ser/ que no existir põe tamanha anulação de existência?”. Nada indica que as coisas vão mudar.