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A morte de Décio Pignatari e o fim da modernidade

A morte do poeta paulistano Décio Pignatari, ocorrida esta semana em São Paulo, aos 85 anos, produziu uma série de manifestações na imprensa, como seria de se esperar. O surpreendente foi o tom nostálgico que marcou a maioria delas, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, também se acentuava certa modernidade essencial de Pignatari. Alguns afirmaram que seu “espírito inovador” faz falta à poesia atual, outros, que Pignatari jamais foi reconhecido como deveria, não tendo, por exemplo, recebido prêmios literários. Mas o predominante foi mesmo a marca nostálgica, ao lado da afirmação da modernidade essencial, numa contradição despercebida pelos articulistas. Pois a nostalgia pela modernidade implica na não-contemporaneidade dela. Ou seja, numa modernidade passada ou ultrapassada. E essa contradição é, de fato, o mais marcante dessas manifestações. Não no sentido de a modernidade estar de fato ultrapassada, ou de estar ultrapassada a modernidade da obra de Pignatari, mas de tais articulistas terem, contraditoriamente, uma visão algo mumificada de sua obra – o que, em consequência, desvitaliza toda a poesia atual. Those where the days… Aquela sim é que era uma poesia moderna…

Não me convence o pós-blablablá de inimigos e pós-amigos de última hora que sempre hostilizaram a poesia de ponta e agora põem a cabeça de fora. Lembro do que Maiakóvski escreveu sobre Khliébnikov. Onde estava essa gente enquanto ele vivia? O Brasil das sobras nem imagina o que perdeu. O filtro do tempo vai ensinar (Augusto de Campos)

Esse “Brasil das sobras”, em tom mais comedido, reaparece na maioria das manifestações, ainda que nas entrelinhas. Décio Pignatari, e, por extensão, o concretismo, tornam-se a modernidade. Como mais ninguém reconhece a “pós-modernidade”, sobram as sobras. Nem modernos nem pós-modernos, somos nós, os vivos, apenas restos de uma modernidade morta.

No entanto, a história não acabou nos anos 1960, 1970 ou 1980. O mundo contemporâneo pede uma poesia contemporânea. O resto é história. Shakespeare, Bach, Donne e Góngora foram considerados excêntricos ou curiosos ou bizarros ou impróprios por muito tempo, antes de ser considerados grandes – tão grandes como hoje os consideramos. A recepção da obra de Pignatari apenas começou. Portanto, não foi subestimada ou sub-reconhecida, como tantos pretendem, contrabandeando assim a ideia de que deve ser hiper-reconhecida e hiperestimada, para que lhe seja feita justiça, em coerência com a ideia de que representa certa hipermodernidade jamais atingida ou recuperada desde então. Se existe hoje muita poesia que chamo de regressiva, isso se dá fundamentalmente por sua evasão do mundo contemporâneo, não por sua falta de “experimentalismo” à maneira concreta. Além disso, uma poesia que se assemelhasse hoje à de Pignatari não deixaria de ser regressiva ao seu modo.

Eu gostava mais da poesia não-concreta dele. Mas, dentre os poetas concretos, ele era o melhor realizador desse tipo de poesia, porque tinha melhor noção da publicidade e da síntese, afirma. […] A contribuição de Pignatari para a área da semiótica também foi notável.

Alcir Pécora demonstra maior lucidez, neste momento propício aos panegíricos, do que a maioria. De fato, provavelmente Pignatari foi o melhor poeta concreto (eu, pessoalmente, aposto em Pedro Xisto, apesar da enorme irregularidade de sua obra – o que, por sinal, também se aplica ao próprio Pignatari). E ainda assim, talvez sua poesia não-concreta seja melhor. O corolário é que a poesia concreta, como regra, não terá sido boa o bastante, pois a parte concreta do melhor dos concretos ainda é inferior à sua poesia não-concreta. Não sei se prefiro a parte versal da obra de Pignatari à visual, mas concordo com Pécora no que fica aqui subentendido, e que acabo de referir, a grande irregularidade de sua poesia. Nela há desde obras-primas modernas como “Babe Coca-cola” até experimentos mal-acabados, além de também mal começados. O “experimentalismo” não é uma garantia necessária de bons resultados, ou seja, ser experimental não é o bastante. Assim como não o era ser “realistamente socialista”. Quero dizer que nenhuma fórmula, nenhuma forma, é boa a priori, nem será jamais suficiente, como tais manifestações pretendem afirmar sobre a modernidade concretista, tornando-a, no limite, a ou trans histórica. Mas, na verdade, como tudo, ela é necessariamente transitória, o que não significa que não deva fazer parte do futuro. Mas que deve sê-lo porque parte do passado, aquela que mantém, apesar do tempo, vitalidade suficiente para ser integrada à tradição, justamente a parte do passado ainda viva. A obra de Pignatari deve, portanto, ser recebida como parte da tradição moderna ou modernista brasileira, não como um modelo nostálgico a ser emulado pela poesia contemporânea, se esta não quiser ser mera “sobra” de uma história da poesia brasileira que terá, então, morrido junto com Décio Pignatari. Mas esse “fim da história” é, na verdade, apenas o último suspiro de certo saudosismo vanguardista, este sim verdadeiramente ultrapassado. Enfim, essa nostalgia da tal hipermodernidade concreta é, na realidade, a derradeira tentativa de ressuscitar, em vão, o cadáver das vanguardas. Mas elas estão irremediavelmente mortas. O mesmo não pode ser dito da poesia de Pignatari – que ficará como parte importante da tradição moderna brasileira.

Mas não porque, com afirma Vladimir Safatle, que chega a ser explícito, tudo seria como “se algo de nosso país tivesse, por alguma razão bizarra, parado no momento de Décio Pignatari”. Para mim, bizarra é esta afirmação, de resto compartilhada com muitos articulistas, se não na letra, no espírito. Ainda mais considerando que Safatle costuma ser comedido em seus textos. Isto só confirma o quanto as manifestações sobre a morte de Décio Pignatari se deixaram contaminar, como regra, por uma apressada corrida para o mito, quando não para a mitificação. Décio Pignatari não foi o totem ou, para usar uma palavra de sua predileção, o ícone da modernidade da poesia brasileira. Mesmo porque, como parece ter sido esquecido convenientemente neste momento, a modernidade poética brasileira foi, e ainda é, plural (inclusive porque inacabada). Oswald, Drummond e Cabral não são menos modernos do que Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Não há nenhuma sagrada trindade nessa modernidade múltipla e contemporânea.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).