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A música erudita do Brasil

Entrevista de Gilberto Mendes a Marcelo Flores

Neste ano, que é também o do aniversário de cem anos do Pierrot Lunaire de Arnold Schöenberg, o compositor santista Gilberto Mendes completa noventa anos de idade. Para comemorar, a Sibila foi até a sua casa em Santos e, muito calorosamente acolhida, bateu um papo agradabilíssimo tanto quanto instigante com ele e o escritor Flávio Viegas Amoreira, seu amigo pessoal e parceiro em alguns trabalhos. A presente entrevista consiste nesta conversa, aqui transcrita na íntegra.

Gilberto nos conta a história de sua trajetória como um compositor que viveu plenamente o século XX em seus muitos momentos decisivos e comenta seus pontos de vista em relação à criação, ao gosto, à técnica e à escuta da música. Além disso, a literatura e a música aparecem como tópicos centrais desta entrevista, bem como do próprio pensamento que norteia a trajetória desse músico. Mendes iniciou seus estudos de música aos dezoito anos, no Conservatório Musical de Santos, com Savino de Benedictis e Antonieta Rudge. Praticamente um compositor autodidata, trabalhou com músicos como Cláudio Santoro e Olivier Toni, e participou do Ferienkurse fuer Neue Musik de Darmstadt, em 1962 e 1968.

É um dos signatários do Manifesto Música Nova, publicado pela revista vanguardista Invenção, de 1963. Foi próximo dos poetas concretistas paulistanos, tendo composto inúmeros trabalhos vocais a partir de seus poemas. Além disso, foi um dos pioneiros no Brasil no campo da música serial, da música aleatória, dos procedimentos de mixed média, e como introdutor do minimalismo no país. Sua música é repleta de experimentos com novos grafismos, novos materiais sonoros e a incorporação da ação musical à composição, com a incorporação de recursos como o teatro musical e o happening.

Trabalhou também como professor universitário no Departamento de Música da Escola de Comunicação e Artes da USP e como professor convidado e composer in residence na universidade de Wisconsin-Milwauke e atuou como conferencista e colaborador das principais revistas e jornais brasileiros, além de ser fundador, diretor artístico e programador do festival Música Nova de Santos (1962), importante festival de música nova nas Américas. Sobre sua música ele escreveu:

Na verdade a minha música não tem nada a ver com uma pretendida nova consonância, que existe, por parte de alguns compositores de hoje contrários a uma nova complexidade, que também coexiste. (…) Da minha parte, eu me sinto um velho neue Musik, como um velho marinheiro. É a minha origem, que eu prezo muito, essa formação musical alemã, serialista, ligada à ideia de estrutura, de forma, de música difícil de ser ouvida. (…) [Minha técnica] é consequência, produto, da minha maneira de trabalhar o sistema atonal como uma extensão do sistema tonal, como últimos harmônicos da ressonância, que eles são. Os meios tons. Chegando a extrair do material atonal linhas melódicas com caráter tonal e vice-versa, melodias atonais do material tonal (MENDES, Gilberto. Viver sua música. São Paulo: Edusp, 2008, pp. 117-9).

Sem mais comentários, deixo o leitor com esse prazeroso bate-papo, que, como dito acima, realiza uma espécie de passeio panorâmico por toda a música do século XX. Seus embates, suas técnicas e seus problemas, tudo por meio da saborosa e experiente mirada desse irreverente compositor que, em suas opiniões e com seu conhecimento refinado, nos mostra que é um artista vigoroso e provocador.

Cinema, literatura, música

Marcelo Flores: O senhor declarou numa entrevista a Antônio Abujamra que queria ser escritor antes de ter se tornado músico.

Gilberto Mendes: Eu nunca quis ser músico em criança. Meu pai morreu, eu tinha cinco anos de idade, eu nasci aqui em Santos, em 1922, mas minha mãe se mudou para São Paulo. Ela havia estudado um pouco de música e ambos os meus pais gostavam muito de música. O grande programa era ouvir música. A distração era ouvir rádio, programas de música erudita, ir a concertos e, gostávamos muito de cinema, íamos muito, era uma “cinemeira” de marca maior. Evidentemente eu fiquei fã da música do cinema. Eu não pensei em ser músico, porque isso implicava comprar um piano. O que era caro. Meu pai foi médico, mas gozou a vida, passou a vida viajando pela Europa, foi à Suíça e à Paris na belle époque, viu o balé russo de Sergei Diaghilev e outros grandes artistas. Mas ele não deixou nada pra mim e eu não tinha a perspectiva de comprá-lo.

Flávio Viegas Amoreira: Eu não vejo mais hoje aquela intertextualidade entre as artes. No caso da educação, acontece o mesmo, a universidade se fossilizou. A geração do Gilberto conversava muito com a literatura; os artistas se relacionavam como amigos e também em seus trabalhos. Os escritores, por exemplo, não têm demonstrado em geral um grande interesse pela música pós-Chopin. Na música isso aconteceu muito, é claro que temos músicos mais jovens com uma perspectiva mais ampla como o Lívio Tragtenberg ou o Flô Menezes, mas o que eu noto nessa geração de instrumentistas é um interesse muito baixo pelas outras linguagens artísticas. Por exemplo, no documentário do João Moreira Salles sobre Nelson Freire, não encontramos uma única referência a um livro, ou uma obra de arte que não a música trabalhada pelo próprio Nelson, ele só fala em dona Guiomar Novaes e Errol Garner que é um pianista de jazz, isso acontece provavelmente por causa da vida muito intensa de concertos que ele sempre levou.

Gilberto Mendes: Como se chama aquela pianista argentina amiga do Nelson Freire? Ah, Martha Argerich! Ela é excelente, toca muito bem. Mas eu tinha os prelúdios de Chopin interpretados por ela e achei horríveis. Dei o disco; ela tocava aquilo muito rápido. A música de Chopin é uma música do século XIX, mais cantábile. Gosto das gravações desses prelúdios feitas por Egon Petri, um grande pianista do começo do século XX.

MF: Em seu trabalho, portanto, o senhor procura estabelecer diálogos. Nesse sentido, o cinema é fundamental nele?

GM: Acho que sim, porque a minha música é imagética. Minha música é meio música de cinema, não é feita para cinema, mas ela é música de cinema, eu diria.

MF: Ou seja, a noção de cena é importante?

GM: É, mas eu não estou pensando nisso, faço como música mesmo. Mas naturalmente ela é como a música de cinema. Eu acho isso muito curioso e é uma coisa que nunca foi muito estudada. Ela herdou o estilo clássico-romântico, mas fez outra coisa a partir dele. O mesmo em ralação ao sistema tonal, ela deu outro sentido a ele e o expandiu. O sistema tonal não morreu e nunca vai morrer. O próprio Schöenberg dizia isso. Ele fez outra coisa, mas dizia que ainda muita música seria composta em sistema tonal.

MF: Mas, voltando à escrita, como o senhor imagina que seria a sua escritura?

GM: Eu achava que não ia ser músico, na verdade eu nem pensava nisso, achava que ia ser escritor. Desses escritores que gostam de música como Thomas Mann ou Érico Veríssimo, que tem Música ao longe, entre outros textos. Vou mostrar minha escrita agora, acabei de escrever uma novela. Uma história em que sou outro compositor que não fui. Um alter ego que imaginei, uma outra vida. Uma historinha de amor de cerca de trinta páginas.

FVA: Eu li. Belíssima novela, é um roman à clef que tem muita influência de três escritores pelos quais o Gilberto é apaixonado Joseph Conrad, o seu preferido, Borges e um escritor que foi o mais lido nos anos 1930 e 1940, Somerset Maugham, ele tem grandes livros como Servidão humana e o Fio da navalha. Como o Gilberto gosta muito de cinema, de viajar, do exotismo, eu o vejo muito próximo de Maugham.

GM: Teve uma época em Londres em que havia quatro peças de Maugham em cartaz ao mesmo tempo.

FVA: Nessa novela aparece muito a ligação que o Gilberto tem com aquilo que eu chamo de “sentimento atlântico do mundo”, a sua ligação telúrica com o porto.

GM: Nós somos filhos de Netuno (risos). Como é aquela frase do Paulo?

FVA: Sim, o Paulo Mendes da Rocha, professor de arquitetura da USP, diz que todo homem que nasce em porto de mar tem uma tendência natural a ser um sábio, porque nós temos horizontes amplos. E nessa novela que já está sendo editada, aparecem também elementos de um momento histórico muito profundo vivido pelo Gilberto, que foi na segunda guerra mundial. As tramas, as espionagens, amores, o nazismo, a tensão.

GM: Santos viveu o clima da guerra.

FVA: Mas ele já é escritor. Antes desse texto deste ano, ele já havia escrito dois livros de memórias, nada acadêmicos e muito interessantes: Uma odisseia musical e Viver sua música. Eles contam a história da música erudita brasileira do século XX, entrando para o século XXI, de uma forma muito interessante e pessoal.

GM: Eles foram escritos como memórias, à la Goddard.

FVA: E essa novela nova me parece um retorno de Thomas Mann ao Brasil – a mãe de Mann era brasileira, nascida em Paraty –, ou uma retomada do trabalho de um escritor de quem eu gosto muito, embora o Gilberto não o conheça muito bem, que é o João Silvério Trevisan. Parece-me a expressão de um brasileiro com muitas ligações com a Europa. Isso até me lembra de uma teoria interessante do Borges, que diz que o argentino e o brasileiro cultos, cultivados, são a última ponte do sentimento ocidental europeu, não americanista. Hoje eu converso com jovens alemães que não conhecem as obras da literatura alemã, escritores como Schiller por exemplo. Tem um livro do Joyce que ele gosta muito também que é o Giacomo Joyce.

GM: Eu imitei esse livro um pouco. Ele é muito bom. Ora, eu não sou escritor, então posso imitar. (risos) Na verdade eu não imitei, eu o comecei assim, mas depois fui para outro lugar. Gosto muito de seu começo. Quando terminei a novela, notei que havia certa similaridade, então resolvi acentuá-la e reli o livro de Joyce. Mas eu diria que a semelhança está na forma como o texto começa e em seu estilo, a narrativa é outra coisa.

FVA: E tem o Conrad.

GM: Não. Isso deve ter, mas eu diria que é de uma forma inconsciente. O Giacomo Joyce não; é consciente.

FVA: Ah, seria bom lembrar que, há quinze dias, o pianista santista Antônio Eduardo interpretou as peças de Gilberto Três contos de Cortazar para piano solo.

MF: E qual a relação delas, de sua forma musical, com os textos de Cortazar?

GM: Os títulos são os dos três contos. Além disso, tem outras relações. O primeiro se chama “O diálogo de ruptura”. Eu peguei sua forma de pergunta e resposta, um diálogo entre um homem e uma mulher rompendo, e fiz uma música minimalista como uma briga entre os instrumentos. O segundo foi sobre um conto bonito chamado “Ventos alísios”, sobre um casal que está em crise que vai para um hotel na África e se encontram e desencontram. No fim os dois se suicidam. Dramático, não é? É trágico. Mas, enfim, nessa música eu não sei bem como te explicar a relação que possa haver. Tem uma nostalgia, um sentimento nostálgico do conto, um final melancólico.

MF: Mas a metáfora, as imagens da literatura ajudam o senhor a compor?

GM: Ajudam. Mas não profundamente, elas dão um estopim para a coisa, fornecem um espírito geral. Eu não preciso ficar fiel, restrito à história. O último dos três contos é “O Apocalipse de Solentiname”, uma cidade no tempo da guerra civil na Nicarágua, Ernesto Cardenal, são relatos do horror da guerra. A peça tem um caráter de viagem, ela vai se desenvolvendo como se fosse caminhando, depois começa um tumulto muito grande, vira uma música como a de Stockhausen. Eu considero essa uma das minhas melhores peças se não a melhor. As relações são mais ou menos essas, nenhuma exatamente ao pé da letra.

A composição musical, crise e os anos de formação

MF: Como o senhor decidiu se tornar compositor?

GM: Não pensei em ser músico. Fui para São Paulo fazer a faculdade de direito. Lá, eu fui colega da Lígia Fagundes Telles, mas ela só andava com grã-finos, com a altíssima sociedade. Eu era um pobretão, meu pai gozou a vida e não me deixou nada. E eu tinha um cunhado, Miroel da Silveira, que foi escritor e crítico de teatro, que era muito amigo meu e que uma hora me perguntou: “O que você está fazendo em São Paulo estudando direito?”. Ele me conhecia e sabia que eu gostava de Ravel, de Debussy – quem mora perto do mar gosta de Ravel e Debussy. “Você conhece aquele concerto para piano de Ravel? É lindíssimo.” E completava: “Você é músico, ainda não percebeu isso?”.

FVA: O Miroel foi uma figura importante porque ele, além de descobrir, ou melhor, incentivar o Gilberto à música foi quem, no mesmo período, incentivou ao teatro uma jovem que foi colega de classe do Gilberto, a Cacilda Becker. Ele disse o mesmo para ela: “Você é muito talentosa, deveria ir fazer teatro”.

GM: Realmente, ele definiu a minha carreira e a da Cacilda. Além disso, eu sou um cara meio doentinho, eu sofro de asma, passo mal em São Paulo e o Miroel dizia: “Você está perdendo a saúde lá e você é músico, volte pra Santos, entre para o conservatório musical da cidade”. Esse conservatório era muito bom, era propriedade da dona Antonieta Rudge que, na opinião do Mário de Andrade, foi a maior pianista brasileira. Então eu voltei para cá e me inscrevi no conservatório. Minha família se aborreceu um pouco, mas paciência.

MF: E desde o começo você já se via como um compositor?

GM: Não. Eu nunca tinha composto. Eu tenho um bom ouvido musical e uma percepção aguda, gravo facilmente as melodias e o Miroel admirava meu ouvido, ele percebia isso.

FVA: A dona Antonieta Rudge era um mistério. Veio montar um conservatório musical em Santos! Ela era casada com Menotti Del Picchia, mas antes foi casada com Charles Miller, aquele que trouxe o futebol para o Brasil.

GM: Então, foi basicamente o Miroel, ele dizia taxativamente que eu ainda não tinha percebido, mas eu era músico. Então eu e minha mãe voltamos para Santos para morar com ele na Ponta da praia. Mesmo nunca tendo sido propriamente um pianista, eu estudei piano lá também, além de percepção musical, harmonia, contraponto, etc. Era um conservatório muito bom. Mas eu também entrei num processo de vadiagem nesse período. Gostava de viver no mar, não faltava um vagabundo na rua, algum amigo, para ajudar a pôr a canoa no mar.

Eu gostava muito de ir dançar também; além de namorar eu gostava muito das Big Bands, de Duke Ellington, Glenn Miller, Benny Goodman, Tommy Dorsey, gostava muito daquele pianista também o Teddy Wilson. Então minha mãe começou a me apertar, dizia que eu não poderia viver sustentado pelo meu irmão e pelo meu cunhado. Eu também estava namorando muito, ia acabar casando com alguma daquelas minhas namoradas, daí precisaria ter um emprego. Então, arrumei um emprego na Caixa Econômica Federal.

E fiquei sendo trabalhador e estudante de música. Isso me atrasou muito nos meus estudos obviamente. Primeiro a vadiagem, depois o trabalho no banco. Eu também entrei numa crise existencial muito profunda nesse momento. Queria entender as coisas da vida, da existência. Eu fui criado por um médico, que era ateu, não era exatamente católico, só por tradição. Então cresci num mundo muito materialista, meus irmãos, bem mais velhos que eu, que eram estudantes de direito em São Paulo e os valores da minha família eram esses, era um ambiente incrédulo, ateu.

Um dia eu fui ao cinema ver um filme da Ginger Rogers, que era companheira daquele bailarino Fred Astaire. Mas ela se cansou de ser dançarina e resolveu ser atriz dramática. Então eu fui ver o seu primeiro filme, isso foi em 1941. Assistindo ao filme, que não tinha nada a ver com os problemas metafísicos, de repente comecei a sentir uma angústia, um mal-estar. Comecei a suar frio e a me perguntar sobre o que era viver o que era o universo, comecei a ter muitas dúvidas. Fiquei com medo do universo, entrei numa crise existencial depois daquela crise momentânea de pânico. Nem consegui assistir ao filme até o fim. E isso começou a me consumir; eu não conseguia estudar piano direito, só ficava pensando, aquelas coisas na cabeça, e não conseguia comentar com ninguém sobre isso, nem fui a nenhum médico, fui simplesmente levando a vida.

O mar complicava tudo também, porque ele é muito alegre, mas, quando se está deprimido, ele te ajuda a se afundar, é profundo. A beleza dos entardeceres me dava angústia. Então comecei a ler. Livros que mexiam com Deus: O homem eterno, de G. K. Chesterton, os Pensamentos, de Pascal, entre vários outros livros. Mas daí eu encontrei um livrinho chinês do Ling Yutang, A importância de viver. Esse cara me curou. Me mostrou a simplicidade da alegria. Eu me apaixonei também nesse momento. Enfim, todas essas coisas me distraíram. Me atrasaram muito em relação à minha carreira como músico.

MF: Mas essas experiências não foram importantes para a sua constituição como compositor?

GM: Não. Por que você acha isso? Isso tudo me atrasou. O começo da minha trajetória musical foi muito conturbado. Nessa altura eu já percebi que não seria pianista. Comecei tarde e ainda fui atrapalhado por muitas coisas. Logo depois dessa minha crise existencial estourou a Segunda Guerra Mundial, o que também dificultou muito as coisas. Não se conseguiam partituras e tudo ficou muito precário. Eu também gostava muito de sair para dançar, sabe.

Como eu aprendi música com Tommy Dorsey, e esse tipo de música me foi um lastro musical! Eu não pensava propriamente em ser compositor também. Quando comecei a estudar piano, brincava de fazer trechos de música. É engraçado porque muitos anos depois, mais ou menos recentemente, um violoncelista brasileiro, Matias Oliveira, que mora em Berlim, me pediu uma peça e eu me lembrei de um teminha que havia composto naquele período, e disse a mim mesmo: “Por que não utilizá-lo, não é?”. Então fiz uma música a partir dele que foi estreada pelo Oliveira num festival em Hiroshima.

No período da guerra, eu consegui encontrar um livro que mudou tudo para mim. Introduziu-me finalmente ao universo da composição moderna. Era o livro de um musicólogo espanhol que na época era muito renomado, Adolfo Salazar, chamado La música moderna. O livro é ótimo, tem uma informação pesada de tudo. Inclusive explica aquilo de uma forma, mínima, muito detalhada, que me fez entender muito bem a música de Schӧenberg com exemplos.

Ele já tinha uma página inteira com partitura de Antón Webern, que hoje está na moda, mas na época ninguém gostava, ninguém conhecia, ficou mais de vinte anos sem ninguém falar nele. Ele analisava aqueles acordes sobrepostos da Petrouschka do Stravinsky. A peça para violino e orquestra do Alban Berg, em que ele se utiliza da série de ressonância para compor o concerto. Inclusive, tem uma gravação recente belíssima dessa obra.

MF: Webern era, então, uma referência importante para a sua música?

GM: Nesse momento não. Iria tornar-se depois. Nesse momento, aquele pequeno acorde sobreposto do Stravinsky, aquela série harmônica do Berg, certos acordes de Beethoven, enfim, ele me mostrou a chave para muitas coisas. Esse livro me ensinou a compor. Porque eu sou autodidata no fundo. O conservatório me alfabetizou, me ensinou a teoria básica, a solfejar, a escrever música, etc. O único estudo que eu fiz bem direitinho lá foi em relação à harmonia. Lá estudei harmonia com o velho maestro Savino de Benedictis, que foi professor do Mário de Andrade.

Eu fui seu aluno quando ele já estava mais velho. Ele estudava aquela harmonia bem tradicional, o oposto do que se estuda hoje como harmonia funcional. Eu me considero muito bom em harmonia, como uma coisa muito minha, um dom meu, mas o ensino dele me deu uma lógica muito boa da estrutura harmônica, no sentido clássico, nada de modernismos aí. O modernismo depois foi por conta própria, desrespeitando tudo aquilo que eu havia aprendido, a gente aprende um monte de coisas pra depois desrespeitar. (risos)

Música do século XX

MF: Quais os compositores de quem o senhor mais gosta do século XX?

GM: Uma montanha deles. Mas mais ou menos aquilo de que todo mundo gosta, não é?! Da primeira metade do século Stravinsky, Webern, Shӧenberg. Mas esses dois últimos mais recentemente, na época o gosto era mais por Ravel, Prokofiev, Debussy e Stravinsky, este, o mais moderno de todos. A música de Schӧenberg não chegava aqui ainda, eu o conheci no livro de Salazar. Aquele pouco que eu sabia sobre ele, me inspirou muito, o que foi responsável pelas minhas primeiras peças para piano. Eu fazia uma espécie de mistura de atonalismo com politonalismo. Ia fazendo aquelas peças e guardando na gaveta.

MF: E a segunda metade?

GM: O pós-Guerra foi uma novidade. A guerra estancou tudo. Quando ela acabou se deu uma febre tremenda de musicologia no mundo. Começou-se a pesquisar e gravar tudo da Idade Média e da Renascença. Antes a gente lia que Palestrina havia sido o primeiro músico da renascença italiana, que Bach havia sido um dos primeiros grandes músicos do Ocidente. Depois da guerra começou-se a gravar as coisas modernas que estavam surgindo também. Na Casa Breno Rossi, na Casa Bevilaqua, que tinha um vendedor incrível, que sabia mais sobre música que nós músicos, a gente ouvia gravações de Luciano Bério, de Henri Pourcell, Pierre Boulez, Karlheinz Stokchausen. Foi lá que eu comprei o meu Marteau sains maitre de Boulez, meu Contrapunctus de Stockhousen.

MF: Foi importante ouvir essas coisas?

GM: Muito. Eu gostei muito desse Contrapunctus, essa peça me mostrou muitas possibilidades, abriu a minha cabeça, me desviou de rumo, me pôs num caminho novo em relação à minha música. Até hoje é marcante para mim, tem uma peça minha que foi estreada recentemente no Rio, Os meninos da vila, que tem influência do Contrapunctus. Tem uns fragmentos do Marteau sains maitre de que eu gosto também, mas não muito. Penso que é uma música muito depressiva. Não que eu não gostasse, mas me fazia mal, me deixava triste a princípio, depois me acostumei.

MF: E John Cage, o senhor gosta da música dele?

GM: Eu não sei. Ouvi recentemente essas peças dele para piano preparado. O interessante delas é o próprio piano preparado, mas elas não formam uma linguagem, uma coisa consistente. É bonitinho. Mas você não vai querer que a sua música seja só bonitinha, não é? O legal mesmo é só o timbre. O Schoenberg dizia que ele não era músico, era inventor. Mas o Cage é ótimo em outras coisas. Os textos dele, o balé. Ele também tem muita música instrumental, eu não conheço muito, mas o que eu ouvi, considero bom, melhor até do que ele compôs de forma mais experimental, nessas peças em que se preocupou muito em explorar os efeitos musicais e se preocupou menos com a organização da linguagem musical. As pessoas só querem saber das loucuras dele, mas ele tem obras instrumentais em que parece querer desenvolver melhor a construção musical etc.

Suas obras, sua relação com os poetas

MF: Sei que no seu trabalho existe um diálogo imenso com a poesia moderna brasileira. O senhor poderia falar sobre alguma música sua que fez a partir de um poema?

GM: Sim, eu fiz música, além de muitos outros, com o poema da Cecília Meireles, Inconfidência mineira. Numa época que eu vivia muito isolado aqui em Santos. Eu só ia a São Paulo para estudar um pouco com o Olivier Toni, que me orientava por lá. Uma hora resolvi me ligar mais fortemente a São Paulo e me liguei à orquestra de câmara do Toni, com o Rogério Duprat por lá. Ele me orientou nisso que eu queria. Eu queria aprender as técnicas modernas, que eu ouvia, gostava, mas não sabia bem como funcionavam. As imitava até aí. Eu tenho um ouvido muito musical, sabia imitar muito bem a música moderna, chegava a fazer músicas atonais de ouvido. Mas precisava melhorar um pouco, me aprimorar tecnicamente.

Então, fiz uma obra portentosa para a orquestra dele com esse poema, com o texto do Romanceiro da Inconfidência. Musiquei o trecho inicial, o introito, intitulado “Fala inicial”. Gosto muito daquela entrada, é muito bonita. Fiz, ficou pronta a obra. Entretanto, o Toni acabou não fazendo, porque a orquestra entrou em crise e se dissolveu. A peça ficou parada, uma pena, aquela é uma obra para voz, coro e grupo instrumental de cerca de dez instrumentos. Mas de dez grandes solistas porque a música é dificílima, é música dodecafônica legítima. Inclusive, que eu fiz antes de ir a Darmstadt. Ela é estritamente serial dodecafônica. Serial, mas só com relação às alturas, não tem nada de serialismo integral. Esse tipo de serialismo eu nunca fiz.

Nessa época não havia textos teóricos sobre essas coisas. A gente conseguia os discos e algumas partituras, que nos emprestávamos entre nós (o Rogério e os outros), naquelas lojas que mencionei. Estudávamos essas técnicas sozinhos, por conta própria. Daí eu pedi autorização a Cecília Meireles, já que o Toni ia fazer. Tenho até hoje uma carta bonita dela; ela me deu muitos conselhos e disse que sim, que poderíamos. Mas não foi feita na época. Ficou parada por cinquenta anos, até agora.

Recentemente o Sesc viabilizou a montagem dela. Eles entraram em contato com os herdeiros, o que foi muito complicado, eu cheguei a pensar a mudar o texto, mas no fim conseguimos realizar a obra. Os poemas do Drummond foram bem mais fáceis de conseguir realizar por conta dessa questão dos direitos. Com os poemas da Cecília foi mais complicado sempre.

FVA: Uma vez o Gilberto teve de tirar o poema dela de uma de suas músicas.

GM: Então nós fizemos a escansão, medimos os metros e eu pedi pro Flávio fazer um poema para colocar na canção. Acabou dando tudo certo, ele fez o poema muito rápido. Ficou chamando “Cavalo azul”. Em três dias fizemos todas as adaptações e gravamos.

FVA: Eu fiz o poema em um dia, tamanha a pressa que tínhamos, porque a canção já estava para ser gravada com o poema da Cecília Meireles. “Cavalo azul” é uma lenda etrusca, eu estava pensando em imagens de ascese, de transcendência, que tivessem a ver com o universo da música. Esse era o nome de um grupo alemão de arte moderna do começo do século XX, Der Blaue Reiter, de que Kandisnsky foi um dos integrantes. Me inspirei na poética da paulistana Dora Ferreira da Silva, que explorava essas imagens do onírico, do delírio, da transcendência em torno dessa figura de cavalo da lenda etrusca. O poema foi cantado pela Martha Herr no Sesc Vila Mariana.

GM: A peça foi feita por um grupo instrumental com um regente americano que costuma circular pelo Brasil, o Jack Fostner, ele tem regido obras minhas ultimamente. Tem uma história curiosa com ele: quando ele era professor na universidade da Califórnia, um compositor italiano amigo dele, ligado ao Giacinto Scelci, disse a ele que pedisse música para mim, porque da música que eu fazia ele iria gostar. Acho que ele disse isso porque eu não faço mais aquela música mais primitiva do dodecafonismo.

MF: Como é?

GM: Você nunca ouviu?

MF: Já, mas eu gostaria de ouvir o senhor falar sobre ela.

GM: Ah, então é desse jeito que você ouviu (risos). Bem, é uma música que envolve mais o dia a dia. O clássico-romântico, o pop, mas eu já começo misturando isso com elaborações, com técnicas refinadas, serialismos e outras coisas. No plano melódico, também me considero na verdade um compositor clássico-romântico, dos que sobreviveram hoje ainda. A música de cinema é muito importante para mim. Eu conquistei essas técnicas modernas, obviamente porque eu gostava e gosto muito disso, mas o meu lastro mesmo é muito clássico-romântico. Eu me considero bom nisso. Tenho um grande senso com a harmonia do século XIX e a dos outros anteriores também. Conheço muito bem a música medieval e renascentista, porque cantei esse tipo de música durante dez anos no Madrigal Ars Viva com o grande maestro alemão que viveu em São Paulo Klaus Dieter Wolf. Esse grupo vocal, depois, executou toda a música mais experimental que eu e o Willy Corrêa de Oliveira fizemos com a poesia concreta paulistana.

Mais século XX

MF: Como foram os anos 1950?

GM: Nos anos 1950, na era do long play, depois da guerra, houve uma febre musicológica. Estudávamos sozinhos, quem ia nos ensinar? Nesse momento, além do serialismo, que foi a principal técnica desse movimento do pós-guerra, surgiu um interesse pela possibilidade do som eletrônico e concreto, que, na realidade, consistem na mesma coisa, nasceram na mesma fonte.

MF: Mas os teóricos dizem que não, não é?

GM: São a mesma coisa no seguinte sentido, elas nasceram na França na Organização de Radio e Televisão Francesa. Primeiro havia um clube de ensaio Club d’Essay, liderado pelo Pierre Schaeffer, mas que tinha também o Pierre Henry, o Phillipeau – que deu aula na Unesp, pois veio para o Brasil ao se casar com a grande pianista brasileira Anna Stella Schic. Aqui, ele logo se ligou ao nosso grupo e chegou a fazer um simpósio internacional muito bom, trouxe gente muito boa da Europa para debater e fazer música – e Artuis, um cara de quem eu nunca mais ouvi falar, participou só desse comecinho.

Basicamente era a ideia da música concreta – poesia concreta não tem nada a ver com isso, os próprios poetas concretos fazem essa confusão – nesse caso o termo concreto está em oposição a abstrato. Schaeffer acha que o som condicionado pelo instrumento, pelo piano, pelo violino, pela caixa acústica, todos os tipos de cordas, produz um tipo de som que ele chama de abstrato, inclusive em medições acústicas aparecem como regularidade, como som musical, e ele queria trabalhar o som não musical, o ruído, o som que aparece em medição gráfica como irregular. Então eles começaram a trabalhar isso, o barulho. Você não conhece aquele primeiro disco deles que tem a Sinfonia para um Homem só? É maravilhoso. Alias, eu considero a música concreta desse momento a melhor que já se fez, creio que depois a coisa degenerou.

MF: Mas em algum momento o próprio Stockhausen, ligado à música eletrônica, não rejeitou a música concreta?

GM: Stockhausen foi estudar lá, com eles. Foi a Paris estudar música escrita com Messiaen, onde ficou colega de Boulez, e depois foi para esse estúdio. Só que eles faziam música concreta, pegavam o escapamento de um carro, o barulho de um trem, gravavam isso e trabalhavam por mil processos que eles tinham lá, inclusive aquele processo de acelerar sem subir a altura, só eles sabiam fazer isso naquela época, agora os computadores o fazem. Aquele foi um momento cheio de pequenas novidades, mas que exigiam um estúdio muito caro e muito complexo para fazê-lo.

Hoje em dia qualquer sintetizador faz tudo isso, não se precisa mais ter estúdio. Assim eles começaram a fazer aquela música que viria a se chamar eletrônica. Eles combinavam também sons sintetizados eletronicamente com sons concretos. Stockhausen aprendeu isso, foi para Colônia e liberou a música eletrônica, abandonando a concreta. Assim, ele se passou pelo pai da música eletrônica, o que ele não é. Foi aquele grupo francês. Só que não tinha esse nome com os franceses.

O próprio Stockhausen também usou música concreta, como no Canto dos adolescentes. Stockhausen foi um grande compositor, mas muito esperto em pegar as coisas dos outros. Ele pegou inclusive uma famosa experiência vocal de um compositor sueco e usou para criar uma de suas maiores obras vocais em que explora os harmônicos, sem fazer nenhuma alusão àquilo. Ainda assim eu o considero o maior compositor da segunda metade do século XX, pelo menos para o meu gosto, talvez junto com Ligeti.

MF: E quanto a Pierre Boulez?

GM: Uma vez Boulez declarou que Eric Satie atrasou a música francesa em pelo menos cinquenta anos, se referiu à sua música como sopa de quartel, sem fibras, etc. E eu diria, ou melhor, digo: não propriamente a sua música, mas a atuação de Boulez dentro da música francesa de hoje a atrasará em cem anos. Além disso, quando Penderecki veio ao Brasil com uma orquestra polonesa para o Festival de Campos do Jordão para reger a sua celebre Trenodia às vítimas de Hiroshima, uma belíssima obra, que inclusive vendeu quase tanto quanto os Beatles, Boulez, que na mesma época esteve aqui, trazido pela Cultura Artística, declarou que essa música era para empregadinhas domésticas. De minha parte, eu prefiro um único scherzo de Chopin a toda a obra de Boulez.

MF: Por que Boulez vai atrasar a música francesa?

GM: Pela ortodoxia. A música tonal não morreu, não adianta artificialmente, por razões de grupos estéticos… Tem um papo hoje, por exemplo, de música espectral… Não que eu seja contra esses experimentos, é preciso experimentar as coisas, mas sem dizer besteira, não é? A música espectral, no fundo, Claude Debussy fez, mas sem teorias. Tem inclusive uma frase célebre dele: “Música não se faz com teorias”. Se isso é verdade eu não sei, mas ele dizia isso.

Há uma luta de duas tendências na música contemporânea. Uma música europeia mais conservadora – eles estão fazendo a mesma coisa, uma música requentada, tudo isso já foi feito de certo modo, o próprio dodecafonismo já comportava essas coisas que se fazem hoje –, mais abstrata, mais estruturalista. Do outro lado tem a música das Américas, que é marcada pelo negro, que deu uma vitalidade muito especial à música americana, o que a música europeia não tem.

A música da Europa é interessante, eu mesmo fui muito fascinado por isso, mas chega uma hora em que você pode querer fazer uma música bonita, comunicativa, se Fauré fez, Debussy fez, por que não podemos fazer? Esse pessoal que diz que a arte acabou, no fundo, quer dizer que acabou para si, não para o mundo.

FVA: Na literatura isso também existe. Pode-se dizer que Augusto de Campos pretende ser uma espécie de Boulez da poesia, uma arte de pura intelecção e abstração que ignora as outras dimensões do fazer artístico. Vejo como uma ideia fossilizadora.

GM: É, mas é importante experimentar, a vanguarda é muito importante. Eu passei por isso também. Mas eu fazia paralelamente experimentos corais com poemas concretos e também música coral tradicional. Fiz tudo isso. Até fui ligado ao Partido Comunista e fiz música nacionalista porque eles exigiam. Os experimentos mais radicais que fiz nessa linha dos concretos foram o Nasce morre com o poema do Haroldo de Campos e o Brilium. Eu fui muito ligado aos Campos e agradeço, foi muito importante para nós. A poesia deles nos permitia trabalhar as coisas que queríamos: aqueles grafismos, aquelas composições em colunas etc. Agente procurava as equivalências daquilo em música.

MF: E quanto à sua passagem por Darmstadt?

GM: Eu fui para lá com o Willy e o Rogério Duprat. Lá encontramos o Júlio Medaglia que já estava lá estudando. Estava lá também aquele roqueiro famoso, o Frank Zappa. É curioso porque ele era uma das figuras que mais atiçava os debates durante os cursos. Nós estávamos lá como alunos, não como mestres, fomos lá para aprender. Conhecemos o Boulez por lá. Penderecki estava por lá também. Este último esteve na USP também, onde pude conversar um pouco com ele, mas ele foi um pouco hostilizado pelo Willy que catequizou os alunos para fazerem perguntas complicadas para ele, que, também, por sua vez, foi bem malcriado em suas respostas. O Willy é muito inteligente, muito culto, embora muito radical. Ele foi o meu maior amigo, fomos muito íntimos. Ele é mais novo, o conheci quando ele estava fazendo vinte anos e quando ele descobriu que eu era músico não saía da minha casa. Infelizmente nos afastamos sem eu saber exatamente por quê. Uma pena!

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  • MENDES, Gilberto. Uma odisseia musical, dos mares do sul à elegância pop/art déco. Gilberto Mendes. São Paulo: Edusp, 1994.
  • ______. Viver sua música, com Stravinsky em meus ouvidos rumo à avenida Nevskiy. São Paulo: Edusp, 2008.
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