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África 2010: Kora Jazz Trio

Kora Jazz TrioComeçamos, com este artigo, uma série de resenhas de discos de música africana contemporânea. O intuito é refletir sobre questões relacionadas às culturas desse continente por meio do ensaio crítico, gênero capaz de estabelecer relações entre a música, as linguagens em geral e a realidade de suas culturas contemporâneas.

O primeiro desses álbuns é Kora Jazz Trio – part two (KJT), a segunda gravação das composições e improvisos do trio, que é composto pelo mestre do Kora Djeli Moussa Diawara – nascido na Guiné, hoje residente em Paris –, pelo pianista senegalês Abdoulaye Diabaté e o mestre percussionista Moussa Cissoko, também do Senegal.

O disco foi gravado em 2005 nos estúdios do selo parisiense Celluloïd e se apresenta com uma música improvisada, que estabelece o diálogo entre a herança Mandingo e as fórmulas e os standards do jazz norteamericano. Mamadou “Prince” Koné, notável percussionista da tradição Mandingo e mestre da Cabaça, fez algumas participações importantes nessa gravação.

O álbum foi produzido por Gilbert Castro, que trabalhou com o trio também em Kora Jazz – part one, de 2003. Dez das doze faixas de Kora Jazz – part two são composições do próprio trio e foram produzidas durante uma longa turnê dos três músicos juntos.

A música tradicional do norte da África é fundamentada é elaborada a partir dos harmônicos naturais do canto a duas ou mais vozes. Estende-se a uma ampla gama instrumental, em parte centrada nas famílias dos instrumentos de percussão e sopros. É, assim, modal, e concebida como parte vital do processo de organização social das culturas que ocupam a região do antigo Império Mali, tendo funções ao mesmo tempo religiosas – oraculares ou rituais –, políticas – em forma de discurso e oratória –, estéticas – como cantos de amor, escárnio, épicos –, entre outros gêneros.

O Império Mali foi um importante Estado africano, de religião islâmica, que manteve seus domínios desde o século XIII até o século XVI nas regiões norte e oeste da África, sob a monarquia consanguínea de grupos guerreiros, feiticeiros e caçadores. Seu território de então abrangia países como Nigéria, Mali, Senegal e Guiné, ainda territórios africanos de maioria islâmica, o que poderia explicar a afinidade de algumas das faixas de KJT e o interesse de Diawara pela técnica do violão flamenco. Descendente do alaúde, esse instrumento tem ancestrais comuns em várias regiões da África, da Índia e do Oriente Médio. Diawara mostrou essa pesquisa também em Flamenkora, disco produzido pelo mesmo Gilbert Castro.

Diawara é meio-irmão de Mory Kanté, herdeiro contemporâneo da tradição Mandingo, transmitida oralmente há séculos pelas linhagens e castas consanguíneas de bardos conhecidos como “Jeli”. Essas castas foram fundadas no período imperial quando, segundo o texto épico da língua mande, Sundjata, o sábio e habilidoso músico Balla Faséke foi nomeado conselheiro real, o que explica o forte vínculo social desses bardos com seus reis, integrantes da classe de nobres Jatigi.

No disco, percebem-se territórios modais diversos e comuns a uma ampla extensão geográfica. Ora os cantos se organizam em quartos de tons e modos característicos da música marroquina, como em “Sindi”, “Folly” e “Djanya”, ora as linhas de piano soam como marimbas de um modalismo heptatônico e pentatônico, com fundamentos politonais e polirrítmicos senegaleses e guineenses, como em “Seyo” e “Djame”.

O discurso pictural que os músicos elaboram em KJT funda-se em uma narrativa na qual a música é parte estrutural da língua e da conservação oral da tradição. Durante a execução, a fala torna-se capaz, por meio de palavras, imagens e cores sonoras, de narrar as histórias da terra e de seus reis. Compõem-se figuras rítmicas fortemente embasadas na escansão da fala (o mande é uma língua, como o chinês, que contém categorias tonais), que podem, ou não, conter os valores semânticos de escalas e modos melódicos.

Há faixas do disco em que se notam traços dos estilemas do jazz norteamericano – construções de baixo e modos e articulações melódicas características do piano de Scott Joplin e, mais recentemente, daquele de Bud Powell e Thelounious Monk. Esse diálogo, que parece inevitável, é justamente um das marcas mais interessantes desse trio. KJT parece, ao mesmo tempo, aderir à tradição oral de sua cultura e religião e reivindicar, por meio da incorporação de formas e soluções jazzísticas, seu espaço no mundo escrito e industrializado.

O jazz, um dos gêneros de música popular urbana, como diversas outras manifestações sonoras de origem negra por toda a América, recebeu direta influência, em sua gênese, das músicas africanas. Com raízes na intersecção entre a música africana tradicional e as composições barrocas alemã e inglesa, levadas aos Estados Unidos pelos protestantes britânicos, a música vocal africana era o único meio de que dispunham os escravizados para a preservação de sua cultura. Por isso, é compatível, em termos de princípios de organização dos parâmetros musicais, com suas formas ancestrais de improviso (Birimintingo) e solo sobre um ostinato (Kumbemgo), trazidas com a diáspora africana para o Ocidente.

Em uma das faixas, o trio interpreta “La Mer”, um tema tocado pelo guitarrista francês Django Reinhardt – de ascendência cigana, que fundou o gênero, nos anos 30, que se conhece como Gipsy Swing. Reinhardt reelabora células do swing e escalas ciganas ao mesclá-las à polirritmia – de origem verbal – do fraseado africano mais tradicional.

KJT opera por colagem e por justaposição de figuras rítmicas, o que resulta em uma textura contrapontística, embora diferente do contraponto ocidental, por não se organizar a critério do cruzamento de alturas, mas pela fase e defasagem rítmicas. O cruzamento entre frases, repetidas em ostinato, destaca esse mecanismo de defasagens entre as figuras sonoras no tempo.

Chama a atenção como o piano – instrumento representativo da tradição musical erudita europeia e que, em sua execução, abrange simultaneamente as dimensões harmônicas, rítmicas e melódicas – é abordado do ponto de vista do ritmo. Esse instrumento se transforma em um megalofone afinado por temperamento igual. Assim, o pianista elabora o choque entre sons tradicionais africanos, a cultura urbana contemporânea e a música erudita ocidental.

Esse segundo disco do trio, bastante sofisticado do ponto de vista da improvisação instrumental, tem caráter dançante por contar com a participação dos instrumentos de percussão e, por outro lado, é denso. Embora em certos momentos recaia em clichês da música “exótica”, acaba por operar um interessante deslocamento tanto do espaço sonoro tradicional quanto da realidade musical e cultural urbana da África contemporânea.

Após as independências políticas em relação à Europa, que no norte da África se deram ao longo da década de 1960, tem início o processo, a princípio nacionalista, de consolidação de uma arte (moderna) pós-colonial em países como Mali, Guiné, Guiné-Bissau e Senegal.

Nesse sentido, é possível afirmar que o jazz, sobretudo o dos anos de 1950, funcionou como o principal representante da música moderna africana difundida no mundo industrializado e, por isso, representa, em KJT – part two, um importante elemento formal a partir do qual se elabora a ordenação musical.

Esses híbridos jazzistas e bardos renovam tanto os materiais tradicionais quanto os clichês estilísticos do jazz e, como Jeli, preservam de forma original sua tradição oral.

Alguns vídeos

Folly – Ao vivo

 

Dança Djembe

 

Thelonious Monk Epistrophy

 

Django Reinhardt Minor Swing


 Sobre Marcelo Flores

Marcelo Flores é compositor, com mestrado na Paris 8. Rege um coral na cidade de Angets.