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Corações maternos


O amor de mãe através das artes, do tempo e dos idiomas

Em tom dramático e com o vozeirão de sempre, Vicente Celestino cantou “Coração materno”, em 1937, para sobressalto de todos. Foi um êxito fora do comum. Pela primeira vez, escutava-se na música popular brasileira a palavra campônio. Era também a estreia musical, para os prezados ouvintes, do tema do matricídio no cancioneiro do país. Tudo isso em versos bem rimados, com diálogos definidos do rude camponês, da estouvada amada e da velha mãezinha, que fala por meio do coração arrancado. Mórbida, trágica, tendente à lacrimação, “Coração materno” talvez só rivalize com “O ébrio”, a canção que pontuaria, do início ao fim, a trajetória de um dos mais importantes cantores brasileiros. Beber muito até se acabar, como narra a composição, é bem mais aceitável que assassinar a mãe e lhe subtrair o coração – mas, nos dois casos, cherchez la femme: a culpa é sempre da mulher amada.

As duas canções, aclamadíssimas, transformaram-se mais tarde em temas de filmes. Porém, no cinema, Coração materno – lançado em 1951 – não foi bem-sucedido. A mulher do cantor, Gilda de Abreu, decidiu que não seria de bom-tom ver um filho agir tão rudemente. Assim, em lugar de exibir o peito dilacerado da genitora, idealizou que o campônio apenas furtaria o coração de uma Nossa Senhora, imagem que fora consagrada. Em entrevista publicada na biografia O hóspede das tempestades (1994), de Guido Guerra, o cantor nascido no bairro de Santa Teresa não atribuiu o fracasso do filme à mudança de enredo, mas sim ao fato de que “a crueldade do tema fez com que o Coração materno fosse menos visto que O ébrio”, além de dificuldades na distribuição.

A crueldade, contudo, nunca afetou a popularidade da canção. E Vicente Celestino, honesto, nunca se atribuiu a ideia original da canção “Coração materno”. Como declarou naquela mesma entrevista, ele escrevera a letra “a partir de uma lenda. A minha não é a única versão dessa tragédia”. Em outras circunstâncias, referiu-se à existência de um tema medieval, de uma história do folclore que persistia há pelo menos 500 anos.

Vicente Celestino tem razão. Um romance francês muito popular, La glu, de Jean Richepin, publicado em 1881, transcreve “uma canção do tempo passado”, que é lembrada e tocada por um marinheiro. Essa canção é referida como uma “lenda bretã” e, com sua mensagem terrível, encontra-se no fecho do romance. No lugar do campônio da canção brasileira, encontra-se um pauv’ gas, um pobre rapaz que havia encontrado uma sinistra mulher que o manipulou e não o amou. Existem, assim, importantes diferenças de enredo nas duas canções. Em “Coração materno”, a moça amada e idolatrada pede o coração da mãe do moço “a brincar”. Quando vê que enamorado parte “como um raio na estrada”, ela mesma, “qual louca”, tomba na mesma estrada, a prever a desgraça que ocorrerá. Na canção francesa, por sua vez, a moça é de fato má: ela pede que o coração materno seja trazido “amanhã” para que ela possa oferecê-lo “ao meu cão”.

 

Y avait un’ fois um pauv’ gas,
Et lon lan laire,
E lon lan la,
Y avait un’ fois un pauv’ gas
Qu’aimait cell’qui n’ l’aimait pas.Ell’ lui dit: apport’moi d’main,
Et lon lan laire,
E lon lan la,
Ell lui dit: apport’moi d’main
L’cœur de ta mèr’ pour mon chien.
Um pobre rapaz um dia tentou,
E lara li,
E lara lá,
Um pobre rapaz um dia tentou
Amar aquela que nunca o amou.
Disse-lhe ela: traga-me o coração,
E lara li,
E lara lá,
Disse-lhe ela: traga-me o coração
Da tua mãe para dá-lo ao meu cão.

 

Por sua vez, na composição de Vicente Celestino exibe-se integralmente uma cena omitida na canção francesa: aquela em que acontece, de fato, o matricídio. A descrição do brasileiro é detalhista:

 

Chega à choupana o campônio,
encontra a mãezinha ajoelhada a rezar.
Rasga-lhe o peito o demônio,
tombando a velhinha aos pés do altar.

Tira do peito, sangrando,
da velha mãezinha o pobre coração.
E volta a correr proclamando:
“Vitória! Vitória! Tem minha paixão!”

Como já se indicou, em “Coração materno” ocorreu um mal-entendido, uma vez que a moça estava apenas gracejando com o campônio, jamais exigindo que este cometesse um crime – ao contrário do que acontece com a canção antiga do romance francês. Muito se evidencia, assim, a parvoíce do campônio brasileiro, que entendeu literalmente a demanda. Também significativamente distinto das outras versões do poema é o fato de que o campônio provoca a amada, com muita insistência, para que ele produza uma prova de amor.

 

Por ti, vou matar, vou roubar,
Embora tristezas me causes, mulher!
[…]
Mas diga, tua ordem espero!
Por ti não importa matar ou morrer!

A amada, assim, ao contrário do que ocorre na origem da canção, jamais incita o homem, jamais o confronta. Trata-se de um gracejo que se desenrola em tragédia.

A oposição entre o amor de mãe e o amor da amante – bem como a superioridade daquele sobre este – é central nas duas canções. Mas, curiosamente, não se encontra enredo algum de matricídio no romance La glu. Muito pelo contrário: nele, narram-se as peripécias de uma mulher separada, apelidada de la glu (“a viscosa”), recém-chegada ao interior. Vindo da decadente Paris, ela tenta atrair as atenções de um rico aristocrata. Um pescador bretão se apaixona intensamente pela mulher, mas, ao descobrir seu passado de má reputação, tenta matar-se ao se jogar do alto de um rochedo. Fica inválido, entrevado em sua cama. Envaidecida pelo amor que provocou no moço, a viscosa mulher tenta visitá-lo em casa, mas encontra a mãe do rapaz na escada, que a mata a golpes de machado, rachando em dois seu crânio. O marido abandonado, que fora desonrado por la glu em Paris, assume o crime – e é mais tarde absolvido. A canção encerra o romance como exemplo lapidar do amor permanente da mãe pelo filho, mas não como resumo da tragédia que se desenrolou na prosa do escritor.

O romance francês tornou-se muito popular, e serviu para consolidar a reputação de truculência verbal e de gosto pelo naturalismo de Jean Richepin. Em 1876, portanto alguns anos antes da aparição de La glu, ele publicara o livro de poemas La chanson des gueux (A canção dos mendigos) que o conduziu à prisão, onde permaneceu um mês, por ultraje aos bons costumes. Com o êxito trazido pelo romance, foi possível levar La glu para o teatro, o que aconteceu em 1883. Drama lírico em cinco atos e seis quadros, La glu ganhou libreto de Henri Cain, em parceria com Jean Richepin, e música de Gabriel Dupont. Foi seguramente a partir dessa estreia teatral que a canção sobre o matricídio – que, repita-se, em momento algum ocorre na história – se tornou de fato popular e cantada por grandes damas da canção lírica e de operetas.

Gilda de Abreu, atriz também do filme Coração materno,
e mulher de Celestino

Uma das mais famosas intérpretes da canção sobre o coração materno e falante foi Yvette Guilbert. Cantora renomadíssima no circuito dos cafés-concertos e dos cabarés parisienses do final do século 19, Yvette Guilbert caiu no gosto popular, bem como no da elite mais exigente. Em 1889, um médico chamado Sigmund Freud veio escutá-la no Eldorado, ocasião na qual recebeu uma foto autografada da artista – afixada em seu consultório em Viena, ao lado da foto de Lou Andreas-Salomé –, dando início a uma fraterna e discreta correspondência. Um jovem jornalista chamado Marcel Proust, por sua vez, dedicou-lhe elogioso artigo nas páginas de Le Mensuel, em 1891. Por essa época, Toulouse-Lautrec já imortalizara a imagem da cantora em uma série de cartazes.

Em um livro escrito em inglês, How to sing a song – the art of dramatic and lyric interpretation, de 1918, Yvette Guilbert abre o capítulo “Como penetrar e amplificar o texto” valendo-se, justamente, da canção final do romance La glu. Com relação ao estribilho “Et lon lan laire/ Et lon lan la”, ela esclarece que “nas canções francesas, temos muitas oportunidades de mostrar nossa inteligência, nosso esprit, porque nossas canções têm refrões, e eles não são feitos à toa!”. Explica que aquele estribilho dá “todo o sentido ao que não está escrito, e aumenta toda a força do pensamento trágico!”. Em seguida, comenta que outra cantora de cabaré famosa, Thérèsa, não conseguia interpretar a canção com a música de Gounod, ao contrário dela, “pois ela me disse que não conseguiria transmiti-la como se deve”. A famosa diva informa então que Thérèsa tinha uma “voz profundamente masculina”, embora limitada em recursos… Tudo isso pode ser correto, mas deve ser visto à luz da rivalidade. Afinal, conforme o depoimento do poeta Armand Masson, frequentador do cabaré Chat Noir, “o salão vibrava quando ela cantava” o episódio do coração de mãe, “e ela sentia tamanha emoção que também chorava junto conosco”.

Por fim, Yvette Guilbert analisa cada uma das passagens da canção de Jean Richepin, mas se detém na última seção, quando o coração da mãe faz a pergunta aflita ao filho que o arrancou: “O refrão deve indicar a voz da mãe. Ela é sobrenatural, plangente, chorosa, quase imperceptível, como se chegasse do além do mundo real”. O compositor francês Charles Gounod, citado pela cantora, decidiu emprestar sua música aos versos depois de assistir à encenação da peça La glu em 1883. Segundo testemunhos, teria declarado preferência pela interpretação da diva com as seguintes palavras: “É selvagem!”.

Outra cantora que descreveu uma experiência peculiar ao interpretar “La chanson de la glu”, de Charles Gounod, foi a mezzo soprano Blanche Marchesi. No seu livro de memórias Peregrinação do cantor (1923), ela conta que a soprano Gabriele Krauss sempre desmaiava quando interpretava a canção. Pior ainda, a mulher de Charles Gounod, ao escutar a interpretação de Blanche Marchesi, também desmaiava – enquanto o compositor exibia “lágrimas que rolavam por sua face”. Não é difícil supor que Vicente Celestino tenha tomado conhecimento da canção a partir da versão de Charles Gounod – que se tornou muito popular nos cabarés e como peça preferida de alguns cantores líricos, amadores ou não.

Aos poucos, a história trágica do coração de mãe ia encontrando ressonância na música e na poesia. Na Hungria, por exemplo, o poeta József Kiss publicou um volume de poemas, em 1891, que estampava “O coração materno”, sua versão para o poema que conhecera havia dez anos, cujos trechos finais são esses:

Hát amint vinné futva, iramodva,
– Hallga csak, hallga! –
Hát amint vinné futva, iramodva,
Felbukik és a szív elgurul a porba.És amint gurul… egyszer csak fennszóval
– Hallga csak, hallga! –
És amint gurul… egyszer csak fennszóval
Ím hallja a legény, hogy a szív megszólal.

Megszólal a szív, sírva panaszosan
– Hallga csak, hallga! –
Megszólal a szív, sírva panaszosan:
“Jaj! – Nem ütötted meg magadat, fiam!”

E a correr, decidido, eis que na pressa,
– Ouça bem, ouça! –
E a correr, decidido, eis que na pressa,
Tropeça, e o coração por terra se arremessa.
E arremessado… logo, de uma vala,
– Ouça bem, ouça! –
E arremessado… logo, de uma vala,
Eis que o rapaz percebe que o coração fala.

E fala o coração já maltrapilho,
– Ouça bem, ouça! –
E fala o coração já maltrapilho:
“Ai! – Será que você se machucou, meu filho?”

Tradução em parceria com Mihály Dudás

Enquanto a história do coração faz sua carreira, a história La glu também se expande em outras áreas: transforma-se em ópera, em 1910 (mas sem o sucesso almejado) e, em 1938, em um filme do francês Henri Frescourt. Na literatura, a canção passa a ser ainda mais traduzida. Na antologia The Oxford Book of the French Verse, de 1926, Hamish Henderson apresenta “A balada do coração falante”, inspirada no poema que o romance de Jean Richepin estampou. A força intensa do amor materno se popularizava entre os escritores. Em 1936 – portanto, pouco antes do lançamento de “Coração materno” no Brasil –, a russa Marina Tsvetáieva escreve uma carta a outro poeta, Anatoli Steiger, na qual faz referência a “uma antiga balada francesa”, da qual transcreve os versos finais, em francês:

Et voilà que le coeur lui dit:
– T’es tu fait mal, mon petit?

Em 1935, outro poeta russo, Dmitri Kedrin, escreve sua versão da trágica história: não existe mais qualquer menção ao cãozinho da moça, mas sua dona má aparece ainda pior, pois pretende beber as cinzas do coração da mãe em álcool (provavelmente, vodca).

СЕРДЦЕ
Бродячий сюжетДевчину пытает казак у плетня:
“Когда ж ты, Оксана, полюбишь меня?
Я саблей добуду для крали своей
И светлых цехинов, и звонких рублей!”
Девчина в ответ, заплетая косу:
“Про то мне ворожка гадала в лесу.
Пророчит она: мне полюбится тот,
Кто матери сердце мне в дар принесет.
Не надо цехинов, не надо рублей,
Дай сердце мне матери старой твоей.
Я пепел его настою на хмелю,
Настоя напьюсь − и тебя полюблю!”
Казак с того дня замолчал, захмурел,
Борща не хлебал.
Cаламаты не ел.
Клинком разрубил он у матери грудь
И с ношей заветной отправился в путь:
Он сердце ее на цветном рушнике
Коханой приносит в косматой руке.
В пути у него помутилось в глазах,
Всходя на крылечко, споткнулся казак.
И матери сердце, упав на порог,
Спросило его: “Не ушибся, сынок?”
CORAÇÃO
Uma história ambulante
Junto à cerca, o cossaco à moça perguntou:
“Quando conseguirei, Oxana, o seu amor?
Com meu sabre, eu trarei à minha doce amada
Cequins brilhantes, rublos e joias douradas!”
Mas a moça, fazendo as tranças, respondeu:
“A cigana, no bosque escuro, esclareceu.
Ela disse que o meu amor só será dado
A quem o coração da mãe tiver tirado.
Não preciso de rublos, cequins ou mecenas
Traga-me o coração da tua mãe, apenas.
As suas cinzas no álcool eu dissolverei.
E, ao beber a infusão, então eu te amarei!”
O cossaco ficou assim triste e calado.
Não mais engoliu borsch.
Pôs o mingau de lado.
Com força e sabre, o peito materno estourou
E se pôs a correr, levando o seu tesouro.
Num lenço colorido foi o coração
levado à sua amada por peluda mão.
Seus olhos se turvaram quando já chegava.
Tropeçou o cossaco, quase ao fim da escada.
Então o coração da mãe, no chão caído,
Lhe perguntou: “Meu filho, você está ferido?”

Tradução em parceria com Serguei Kukhtin

No Brasil, “Coração materno” ganhou vida nova quando Caetano Veloso a incluiu no disco-manifesto Tropicália, de 1968, com arranjo de Rogério Duprat. A interpretação do músico baiano serviu de contraponto à de Vicente Celestino no momento exato em que o movimento tropicalista buscava denunciar o convencionalismo, o exagero estético e mesmo o grotesco presente em muitas canções brasileiras. Em outras palavras, a regravação era uma crítica ao kitsch – mais poderosa ainda quando se recorda a imensa popularidade de “Coração materno” no final dos anos 1930. No livro Verdade tropical (1997), Caetano Veloso comenta a “interpretação assustadoramente sincera e sóbria” que ele faz daquela “canção execrável”. E considera que, sobretudo associada ao soberbo arranjo de Rogério Duprat, com suas cordas em ritmo de suspense, o resultado final “é uma das maiores vitórias do tropicalismo”.

Obviamente, não escapa ao músico o impulso matricida que serve para explicar a necessidade de romper com o ambiente afetivo e confortável (embora sufocante) da tradição – como conta Ann Douglas sobre a virada cultural de Nova York nos anos 1920 em Terrible honesty (1996), livro lembrado por Caetano Veloso. Mas, nesse sentido, o limite do matricídio esbarraria na presença dominante da própria mãe, dona Canô, reverenciada tantas vezes em canções e declarações, cujo retrato foi divulgado na capa do disco Muito (1978), no qual aparece fazendo cafuné na cabeça do filho. A legenda dessa foto bem poderia ser o emocionante verso final de “Coração materno”: “Vem buscar-me, que ainda sou teu!”.


Ouça Vicente Celestino cantando “Coração materno”

Ouça Caetano Veloso cantando “Coração materno”