Para louvar ou para lamentar (e neste caso, quem sabe, ajudar a fluírem ainda melhor as práticas alternativas que aqui serão referidas), o que vale a pena destacar do panorama artístico português, dada a crise que Portugal atravessa, preso que está às decisões da União Europeia, seus comitês e seus fundos?
Há, sem dúvida, muitos pontos a considerar numa resposta a tal questão, passando pela escuta de quem leciona artes no ensino superior e pela comunicação virtual que nos chega pelos jornais impressos (Público, Jornal de Notícias, Sol) e blogues (blogtailors.com, cadeiraovoltaire.wordpress.com foram alguns dos consultados e projectoclarice.blospot.com).
No que diz respeito à literatura, é importante sublinhar que editoras de relevância para a cultura nacional portuguesa têm declarado insolvência nos últimos anos: assim aconteceu à editora Campo das Letras, por exemplo, em junho de 2009; à Difel, em janeiro de 2011; à CESodilivros, distribuidora de cerca de quarenta editoras de médio porte, em abril de 2012, causando indignação a funcionários e leitores, em razão de prováveis erros administrativos.
O cenário da literatura portuguesa – que passa pela escrita em língua portuguesa, tradução, divulgação, distribuição e venda de livros – revela perdas ainda mais complexas do que essas, uma vez que às editoras que sobrevivem, por assim dizer, é incontestável o risco da descaracterização e de uma quase impossibilidade de concorrer com os grandes grupos.
Vão despontando notícias, não por acaso, das ditas fusões. Por meio dos veículos de comunicação ora atuantes ora passivos quanto aos descuidos para com a cultura, ficamos a saber que o Grupo Porto Editora comprou a Assírio & Alvim em março do presente ano, a Bertrand e o Círculo de Leitores, em agosto de 2011, e a Sextante, em janeiro de 2010. E hoje ele conta com uma livraria virtual de peso, a Wook.
Apenas para que se tenha uma ideia do que está em jogo nessa movimentação do mercado editorial português, vale esclarecer que a extinta Campo das Letras tinha no catálogo edições de Frei António das Chagas e D. Francisco Manuel de Melo, dois expoentes do século XVII português assumidos como clássicos pelos estudiosos. As respectivas obras ajudam a cristalizar conhecimentos até hoje caros. O pregador franciscano percorreu o país há muito tempo, aliando uma sabedoria mundana à iluminação espiritual; era com esses trunfos que ouvia e dava conselhos a outros religiosos e ao povo que comparecia às igrejas. O viajado escritor D. Francisco Manuel de Melo, autor de Carta de guia de casados, também aconselhou, duma forma tão desejada na atualidade, à medida que aludia a virtudes, defeitos e meandros da vida familiar e de seus agentes.
E não só o público leitor dos clássicos perde, igualmente o público da literatura infantil sai perdendo, com o fim das boas editoras. Os seus ilustradores saem perdendo, bem como os futuros argumentistas das histórias em quadrinhos, chamadas em Portugal de BDs, e dos desenhos animados, tantas vezes influenciados pelas histórias infantis.
Ainda quanto à cultura literária, na relação que proporciona com outros povos, o mesmo desfalque se verifica. A editora Difel publicava em Portugal, entre outros, o escritor libanês Amin Maalouf. Seu nome constava da lista de títulos de literatura de ficção e de não ficção (e aqui, é preciso apontar o trabalho de mais uma editora “engolida” pelas grandes, a Quetzal). A possibilidade de o leitor aceder às delicadas operações de construção identitária diminui sensivelmente, se a fonte primária de contato com a cultura do outro desaparece. O que se dá ao leitor debruçado sobre elementos do imaginário de Amin Maalouf é uma incógnita… Mas o que será da arte que esse leitor é capaz de admirar e eventualmente de criar, no âmbito da sua cultura de origem, se ele não atingir de alguma forma, em algum momento, o conjunto de símbolos e de imagens de outros artistas, de artistas com outras experiências, outros valores e outra sensibilidade para o mundo, de um artista como Amin Maalouf, por exemplo?
Como é estar presente e ser atuante na contemporaneidade portuguesa, sem sentir e sem pensar a vida sob a pele de um outro qualquer, de um outro que é espelho, que age como medidor e mediador?
Quais dificuldades têm sido acrescidas à ação dos portugueses, por força da imposição de editores, curadores, financiadores de arte etc, desinteressados de habitar Portugal conscientes do rumo que o país segue?
Outra vez os blogues portugueses, e também o depoimento de colegas no ensino das artes, mostram um caminho.
No lugar das exposições para grandes públicos, as exposições em outra escala, aquelas que o próprio artista, com a ajuda de algumas pessoas, pode organizar num bar, nas salas de uma dada associação, no espaço público. Muitas das instituições culturais conhecidas do grande público, aliás, sofrerão cortes no ano de 2013, conforme divulgação do governo. Estão previstos cortes de cerca de 30% nas verbas repassadas para a Fundação Casa da Música e a Fundação Museu de Serralves, por exemplo.
A cidade de Guimarães, Capital Europeia da Cultura neste ano de 2012, acolheu numerosos espetáculos de música, dança, teatro, cinema etc. Lá, paralelamente a esses espetáculos, houve pequenos conjuntos de pessoas a se juntarem sem apoio financeiro e publicitário digno de nota, para realizar encontros sobre literatura, tal como as “Leituras do Silêncio”, três sessões em torno de, sucessivamente, Etty Hillesum, Maria Gabriela Llansol e Rainer Maria Rilke. As salas estiveram sempre cheias e a plateia, atenta.
No Porto, estudantes da licenciatura em Letras reúnem-se regularmente para debater Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Paulo Leminski e mais. Concentram-se a partir de cartazes colocados nas ruas por uma leitora apaixonada e disciplinada, a partir de chamadas num blog, no site da Universidade do Porto, no Facebook etc.
Portanto, pode ser realmente que, em vez de servir de trampolim para projetar quem financia arte, quem chama as multidões, o melhor seja colocar o trabalho artístico a serviço das inquietações do artista, que resgata para si a oportunidade de ter dúvidas técnicas, filosóficas, dúvidas quanto à comunicação que a sua obra estabelece ou poderia estabelecer com o público.
Menos homogeneidade, que os eventos aparatosos exigiam para que as diferenças parecessem sempre e muito bem conciliáveis, e temos, afinal, arte nacional portuguesa que persiste.