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Cuba vista do exílio – Hipólito Robaina

A história de Cuba, desde a revolução de 1959 até o presente, é uma narrativa controversa que marcou profundamente o palco do debate intelectual e cultural, criando polêmicas nos entornos da política, da economia e das contradições sociais que se foram muito além da ilha caribenha. Perpassando os principais momentos da história cubana, o livro Cuba 1959: El secuestro de la libertad (Arte Activo Ediciones, Espanha, 2023), escrito pelo jurista Hipólito Robaina, oferece uma análise crítica e profunda dos eventos que levaram o país a uma transformação radical, abordando especialmente o uso da lei e da Constituição como ferramentas para justificar e consolidar o poder de um regime que foi erguido em nome da liberdade, mas que acabou por sufocá-la.

Hipólito Román Robaina Guerra nasceu em Havana em 1958, onde se formou em Direito pela Universidade de Havana, Robaina começou sua carreira como consultor jurídico e promotor provincial, destacando-se por seu conhecimento do sistema jurídico cubano. Desde 2002, porém, vive exilado na Espanha. É especialista em Direito Consular e Diplomático. Sua experiência pessoal como exilado e seu já referido conhecimento do sistema jurídico cubano lhe dão uma perspectiva única para analisar os eventos históricos e a dinâmica política de seu país natal, conforme refletido em sua obra sobre o que ele chama de “el secuestro de la libertad”.

Na presente entrevista, tentamos nos aprofundar nas reflexões e análises fornecidas por Hipólito Robaina, explorando os desdobramentos do processo revolucionário de Cuba Os questionamentos se guiam pelas sendas das controvérsias, almejando entender como as correntes ideológicas, os movimentos sociais e a dinâmica geopolítica moldaram o curso da revolução e suas implicações ao longo do tempo: desde a mobilização de forças sociais e políticas no contexto da década de 1950 em busca de justiça e mudança, até os desafios atuais dos seus fracassos e as consequências para quem enfrenta o autoritarismo dentro e fora da ilha.

O diálogo com Hipólito Robaina sobre seu livro nos permite explorar as várias dimensões de um país cuja história foi marcada pela luta entre a garantia de um socialismo ideal e a consolidação de um poder ditatorial onipresente. Por meio da análise de Robaina e da exploração das experiências daqueles que viveram sob o regime de 1959, esta entrevista intenta lançar algumas luzes sobre as contradições, os desafios e as esperanças de uma nação cuja história permanece relevante no cenário geopolítico e social do século XXI. Régis Bonvicino colaborou na entrevista. Julio Bonatti

 

 

 

 

Julio Bonatti: De que maneira a revolução de 1959 se baseou no equilíbrio de poderes, na participação dos cidadãos e na proteção dos direitos e liberdades individuais da Constituição de 1940? Pode dizer-se que, em nome da derrota de uma ditadura, o levante revolucionário sob a liderança de Fidel Castro desafiou e, em última instância, acabou com os princípios e instituições democráticas estabelecidas pela Constituição de 1940?

Hipólito Robaina: O movimento insurrecional dirigido por Fidel Castro contra o governo de Fulgencio Batista foi marcado inicialmente pelo ataque ao quartel Moncada em Santiago de Cuba a 26 de julho de 1953. No julgamento de Fidel Castro por  esta ação, que incluiu não só o ataque ao quartel mas igualmente a um hospital e ao Palácio da Justiça e arredores, ele, Fidel,  fundamenta seus atos no artigo 40 da Constituição então vigente, que se refere ao direito de resistência, pois considera que a Constituição da República foi traída e faz todo um argumento em relação à legitimidade do tiranicídio e dos benefícios da Constituição de 1940. A todo momento Fidel se mostra como um “democrata” cujo fim não é outro senão o restabelecimento da Constituição da República. Dois anos depois desse julgamento, Fidel Castro é indultado. Não foi o único momento em que Batista foi indulgente com Fidel Castro, mas foi o definitivo; como expresso em meu livro: “Batista não levou em conta a advertência de Maquiavel: “[…] todo príncipe deve desejar que o considerem piedoso e não cruel; entretanto, tem que procurar não usar mal a piedade”. Isso indica que Batista não tinha uma clara convicção ditatorial. A partir de então, a alegação de defesa de Fidel Castro, conhecida como “A História me absolverá”, constituiu de cara à galeria o roteiro do movimento revolucionário: restauração da Constituição de 1940 em todo o seu esplendor, a defesa dos direitos fundamentais e eleições livres. Apesar do componente repressor do regime de Batista, a imprensa cubana da época publicava as manifestações de Fidel atacando a ditadura, incluindo sua intenção de derrotá-la violentamente. A ilusão de ótica a que se prestou Hebert L. Matthews para o New York Times entrevistando Castro na Sierra Maestra foi publicada na revista Bohemia, um dos meios de maior profusão em Cuba. O debilitamento do moral do exército republicano, que se agrava com a perda de apoio do governo dos Estados Unidos e a falta de liderança que culmina na fuga de Batista, a indignação de parte da população, sobretudo familiares dos assassinados, devido ao uso da violência extrajudicial contra o movimento insurrecional urbano, uma audaz propaganda midiática no uso dos meios de comunicação da época com o restabelecimento da Constituição de 1940 reforçava a camuflagem democrática do Movimento 26 de Julho e de sua facção militar que se denominou Exército Rebelde e que era comandado por Fidel Castro Ruz e contribuiu para o triunfo insurrecional em 1959, numa sociedade que, como o próprio Fidel Castro reconhece com certa incredulidade, não passava fome e gozava de relativo bem-estar social.

Como expresso em meu livro: “A plenitude com que se vivem os primeiros momentos não permite apreciar o que há debaixo da serapilheira. O êxtase pela fuga de Batista não deixa ver a chegada do déspota”. Em janeiro de 1959 proclama-se a vigência teórica da Constituição de 1940, mas em menos de um mês é modificada cinco vezes. As modificações são dirigidas fundamentalmente e de maneira sinuosa à subversão do Estado de Direito.  O “poder revolucionário” é proclamado com poderes amplos, bastantes e ilimitados. Não há uma restauração efetiva da Constituição, mas uma desconstitucionalização feita por meio de normas de duvidosa legitimidade, do esvaziamento dos princípios que regiam a Constituição relativos às normas que regulam as reformas e modificações constitucionais e que afetam os direitos fundamentais. As instituições democráticas previstas na Constituição são todas abduzidas por um Conselho de Ministros que faz as vezes de Legislativo e Executivo e que logo controlará o poder judicial ordinário. Como se pode apreciar em sua declaração “A História me absolverá”, Fidel Castro fazia uma crítica feroz ao regime de Batista por entendê-lo antidemocrático. Entretanto, o uso do Conselho de Ministros como instrumento revolucionário para destruir a divisão de poderes tem um componente que não teve durante o breve período que o utilizou Batista. Desde a primeira hora do triunfo revolucionário, evidenciou-se a existência de um poder real e de um poder ostensivo; inclusive hoje em dia, 65 anos depois, mantém-se essa forma autoritária de desgoverno. O poder real pertencia aos líderes revolucionários encabeçados por Fidel Castro que não faziam parte do Conselho de Ministros, nem prestavam contas a este. A esse poder real correspondiam os tribunais revolucionários, destinados a legitimar o terror, que ficavam fora do controle dos tribunais ordinários. O exército rebelde e inclusive a polícia revolucionária respondiam mais ao poder real que ao institucional. De maneira que o Conselho de Ministros e o Presidente da República não eram mais que marionetes do poder real. A soberania popular ficou sequestrada. Todas as instituições democráticas previstas na Constituição, destinadas a atuar como contrapesos, foram esvaziadas de conteúdo, fazendo que o poder real se fizesse cada vez mais absoluto. Paulatinamente, das liberdades limitadas durante o governo de Batista passamos ao sequestro total das liberdades individuais com o regime de Fidel Castro, com o terror como pano de fundo. Desde 1959 até 1976, ou seja, durante dezessete anos, exerceu-se o poder em Cuba de costas à Constituição vigente (1940), mediante uma profusão legislativa que evidenciou uma separação conceitual e moral entre legislação e Direito ao intentar-se legitimar a violência estatal contra qualquer espaço de liberdade que se exercesse pelos cidadãos.

Régis Bonvicino: Cuba é o único país das Américas que produziu um forte impacto geopolítico no mundo. Isto não pode ser considerado um grande feito?

Hipólito Robaina: Sem dúvida foi um grande feito em termos geopolíticos, mas foi um feito que deu início à destruição política, jurídica, econômica e moral de um país, que era mais modesto quanto ao protagonismo geopolítico, porém mais próspero em todas as áreas. Hoje Cuba compete com o Haiti em miséria e destruição.

Julio Bonatti: Tendo em conta as correntes ideológicas e as influências intelectuais que impregnaram a sociedade cubana durante os anos prévios à revolução de 1959, especialmente o nacionalismo e o anti-imperialismo, como estas ideias configuraram os objetivos e as estratégias da revolução cubana? Dito de outro modo, como os líderes revolucionários navegaram e reconciliaram as diversas correntes ideológicas locais na formulação e implementação das políticas posteriores a 1959, e quais foram alguns dos legados e desafios duradouros destas mudanças para a sociedade cubana?

Hipólito Robaina: O nacionalismo vernáculo em Cuba vê nos Estados Unidos a causa de todos os seus males e, em tal sentido, o nacionalismo cubano vai significando o anti-imperialismo, como digo em meu livro: “Sentem que as garras da águia os asfixiam desde a intervenção americana primeiro e a Emenda Platt depois e, quando já esta deixa formalmente de existir, sentem a ameaça perpétua do olho de águia que paira sobre a política cubana”. Nesse sentido, nacionalismo e anti-imperialismo (todo nacionalismo necessita um tipo de inimigo a quem acusar de todos os seus males) nutrem o ideal revolucionário, seja socialista, comunista ou liberal e inclusive cristão. Ser revolucionário significava ser nacionalista e anti-imperialista, e assim mesmo Revolução era sinônimo de violência e ocupava um espaço privilegiado no discurso político da primeira e segunda república. Em nome da Revolução, atacavam-se com violência os governos no poder, e igualmente a resposta repressiva do governo tinha como pano de fundo os valores da Revolução. A esta escola de pensamento revolucionário pertencia a maior parte dos movimentos nacionalistas. Durante décadas a Universidade foi um canteiro de movimentos revolucionários violentos, e a esse canteiro pertenceu Fidel Castro. Em tal sentido, Castro compreendeu rapidamente que podia atrair algumas lealdades do nacional-anti-imperialismo, e que à sua visão revolucionária da História, ou seja, violenta, deve anteceder uma camuflagem de luta pela democracia e pela restauração da Constituição de 1940, a fim de ampliar o círculo de lealdades em sua luta revolucionária. Só um grupo se mantinha apoiando Fidel na clandestinidade, os comunistas, que tinham um duplo discurso, um público contrário à violência revolucionária e outro clandestino de apoio e preparação dessa violência, e Fidel Castro participava desse duplo discurso como um “Jano bifronte”. Porém, logo Fidel Castro, já no poder, se distanciou sinuosamente dos nacionalistas anti-imperialistas liberais que optavam pela restauração da democracia, e os comunistas ocuparam as mais importantes cotas de poder. O maior legado de todo este processo foi o totalitarismo, e o “princípio de ação” teve como eixo o terror todo, com a clara intenção de concentrar o poder em um líder, a criação de um partido único, o terror como mecanismo de dominação, a progressiva abolição das liberdades e todos os demais itens que compõem um estado totalitário. Esse e não outro foi o legado da denominada Revolução cubana.

Régis Bonvicino: Os direitos humanos foram violados durante o governo de Castro. A liberdade de expressão, associação e reunião foram severamente limitadas. A tortura e o tratamento cruel eram frequentemente relatados em prisões e centros de detenção. O governo também reprimia a liberdade religiosa, principalmente direcionada a grupos religiosos considerados politicamente ameaçadores. Isto é verdade? É também uma visão meramente burguesa? Os direitos humanos eram respeitados sob Fulgêncio Batista?

Hipólito Robaina: Os direitos humanos seguem sendo violados. Desde os primeiros tempos da Revolução, a liberdade religiosa foi brutalmente atacada. Pessoas com determinadas crenças religiosas eram apartadas do elevador social e condenadas ao ostracismo. O movimento cristão de Oswaldo Payá foi um dos mais brutalmente perseguidos. Payá foi morto em circunstâncias suspeitas, previsivelmente assassinado pela Segurança do Estado. No segundo governo de Batista, houve casos de violação de direitos humanos. Tortura e    assassinatos extrajudiciais, estas violações recrudesceram no contexto de guerra civil, quando o governo fez frente à violência “revolucionária” que utilizava métodos terroristas ou luta armada. Como disse antes, opressão, rebelião e reforma e assim per secula seculorum.

Julio Bonatti: Quanto à trajetória de Cuba após a revolução de 1959, podemos observar a interação entre fatores políticos e ideológicos e seu impacto no desenvolvimento econômico e social de Cuba. Tendo em conta a posição inicial de Cuba como um dos países hispano-americanos mais ricos na década de 1950, quais foram as principais dinâmicas políticas que contribuíram para seu atraso econômico e a seus desafios materiais nas últimas décadas?

Hipólito Robaina: As principais dinâmicas as observamos desde a conformação do poder; como explicamos, existia um poder real e outro ostensivo. Quando surgiam contradições na tomada de decisão de ambos os poderes, prevalecia em geral o poder real, que era mais voluntarioso, entendido por querer fazer sempre sua vontade sem que lhe precedesse nenhuma análise séria nem econômica, nem jurídica, nem política. Ainda que Fidel Castro tenha chegado a presidir o Conselho de Ministro, regularmente agia sozinho, tomava decisões pessoais não consensuais, opor-se era perigoso, o dissidente podia acabar exilado, no ostracismo, preso ou fuzilado, como ocorreu a muitos. Em tal sentido, exibindo seu egocentrismo, organizaram-se grandes campanhas sem poupar recursos materiais e financeiros, recursos que se utilizavam sem controle e sem objetivos claros que não fossem alimentar o orgulho nacionalista e a propaganda doméstica e internacional. As medidas no plano econômico têm um marcado caráter ideológico, sem medir as consequências que possam ocasionar na economia nacional. Destinam-se ingentes recursos à preparação guerrilheira dos “atores” de qualquer revolução: África, América Latina, Europa, todos os que queiram se “lançar” à revolução eram bem-vindos: alimentos, vestuários, armamento, teto. E tudo isso com o fim de intervir na soberania de outros países para criar desestabilização política como medida de distração e diminuir a tensão sobre o processo cubano. Nesse contexto, o ataque às empresas estrangeiras, sobretudo às norte-americanas, foi a principal política econômica. Mas os empresários nacionais, embora preocupados, acreditavam que isso não aconteceria com eles. Fidel Castro proclamava aos quatro ventos que ele respeitaria a propriedade privada, no entendo, também os revolucionários intervieram nas empresas nacionais, e os pequenos e médios proprietários acreditavam que isso não aconteceria com eles, que eram políticas dirigidas contra os grandes burgueses, e num dia de 1968 promulgou-se a intervenção da média e pequena empresa e do trabalho por conta própria, todos eram classificados como burgueses e inimigos ou ao menos potenciais inimigos da revolução. Assim tudo ficou em mãos de um estado ineficiente e arbitrário, sem capacidade de controle econômico algum. A tudo isso se somou o embargo norte-americano, que foi substituído por multimilionárias subvenções soviéticas.

Julio Bonatti: É interessante ver uma contradição inerente à ideia de prosperidade econômica de Cuba antes da revolução de 1959, já que a guerrilha por si só não teria êxito sem um apoio popular massivo, revelando uma população descontente com suas condições materiais. Se pensamos na natureza multifacetada da sociedade cubana durante o período pré-revolucionário, incluindo o papel dos sindicatos, das organizações estudantis e dos movimentos camponeses, como se mobilizaram e organizaram estas diversas forças sociais em favor da justiça social, da igualdade econômica e da mudança política? Quais foram alguns dos principais desafios e êxitos que estes movimentos de base enfrentaram e como contribuíram para o impulso da revolução?

Hipólito Robaina: Antes de tudo, Fidel Castro e seu movimento não eram os únicos opositores ao regime de Batista, inclusive dentro do próprio regime houve opositores, sobretudo nos estamentos militares, que organizaram rebeliões que debilitaram o governo. Agora não se pode dizer que a Revolução liderada por Fidel Castro tinha um apoio popular enorme. Existia uma ânsia de mudança, de restabelecimento da ordem constitucional e até de fastio pela instabilidade política, e isso se percebia em todas as classes sociais. Entretanto, à medida que se debilitava a liderança de Batista, os diversos movimentos se aproximavam do projeto revolucionário. Não se pode dizer que entre as pessoas comuns, alheias ao protagonismo do conflito, houve uma convicção ou fervor revolucionário, a gente seguia com suas vidas, ainda que existisse uma incerteza, que se intensifica com a fuga de Batista e o vazio de poder que isso gera e que acelera o avanço do exército rebelde. O próprio Fidel Castro recorda que o apoio inicial não chegava nem a 1% com convicção revolucionária. O que menos contribuiu para o triunfo foi o apoio popular, ainda que no mundo rural esse apoio se evidenciasse com mais nitidez. Aspectos geopolíticos tiveram maior influência no triunfo revolucionário. Erros de cálculo e políticas erráticas dos Estados Unidos permitiram uma maior penetração soviética no movimento revolucionário antes e depois do triunfo.

Julio Bonatti: Apesar das importantes mudanças na política e nas ideologias mundiais desde o fim da Guerra Fria, Cuba segue governada pelo regime comunista. Quais são os fatores duradouros, tanto nacionais como internacionais, que sustentaram o regime comunista em Cuba durante mais de seis décadas? Como os mecanismos de controle político, as políticas econômicas e as alianças estratégicas permitiram que o governo cubano se mantivesse no poder em meio a uma dinâmica regional e mundial cambiante? Além disso, que papel desempenharam a dissidência interna, as pressões externas e os desafios socioeconômicos na configuração da resistência dos dirigentes comunistas cubanos e na trajetória do futuro político da nação?

Hipólito Robaina: Apesar do esforço que a sociedade cubana fez para obter a existência de um estatuto constitucional que garantisse a defesa da liberdade e dos direitos fundamentais, assim como o progresso econômico e social e que teve seu máximo expoente na Constituição de 1940, a esta havia precedido um longo período de provisoriedade política e jurídica. Fez-se patente que deixar de fazer parte da Espanha e adotar uma forma de governo republicano não bastavam, em si, para criar uma sociedade democrática. Desde o início da República, ao ideal de evolução se antepunha o ideal de revolução. Nesse sentido, na jovem república cubana se observa o perigoso círculo sobre o qual Jefferson advertia: “o interminável círculo de opressão, rebelião e reforma. Opressão, rebelião e reforma de novo, e assim sucessivamente sempre…”. Depois da primeira construção em 1901, houve um período de opressão, rebelião e reforma, que se aprecia na chamada Revolução de 33 e nas leis pseudoconstitucionais que foram aprovadas e nas quais a soberania popular não participa, o pináculo dessas reformas temos na Constituição de 1940, que se vê interrompida com o Golpe de Estado de 1952, que provoca uma nova fase de opressão e rebelião até o triunfo revolucionário de 1959, que igualmente gera uma fase de opressão, baseada fundamentalmente no terror e que está vigente até hoje no ano de 2024, sucederam-se rebeliões esmagadas violentamente, e as reformas não deram frutos, e outra vez se aprecia uma nova fase de opressão e rebelião. Pode observar-se que tudo isso tem um componente antropológico que alcança várias gerações, que desconhecem o que significa um Estado de Direito real e, portanto, o predomínio da lei e do Direito nas relações do Estado com a Sociedade e com seus cidadãos. Instaurado o poder revolucionário, depois do estado de plenitude da primeira hora, prevalece o terror, que se amplia a qualquer opositor manifesto ou em potência, destrói-se a propriedade privada, proíbem-se as associações livres, tudo isso garante o isolamento do indivíduo e sua perda de autonomia. As novas gerações são educadas na doutrinação. O Estado leva o indivíduo a todas as partes, o leva à escola, o leva ao hospital, o leva a comer, quando há para comer, os leva ao parque de diversões, aos cabarés, aos clubes noturnos, aos hotéis, não há lugar que o indivíduo possa visitar em que não esteja o Estado e mesmo em sua casa, tampouco está a salvo, tem um dos centros de delação melhor organizados do mundo, capaz de saber o santo e a senha da vida dos outros, o Comité de Defesa da Revolução, organização vinculada à polícia secreta cubana conhecida como G-2 no início e posteriormente como Segurança do Estado. Como política, o governo cubano, ante possíveis revoltas que pusessem em perigo a estabilidade do regime, vê em primeiro lugar a repressão e a promoção de políticas de emigração em massa como válvulas de escape. Os inconformados abandonam o país, e os que não podem fazê-lo ou se calam ou são presos, no melhor dos casos. São vários os fatores tanto de política doméstica – o ataque e divisão da família, a perseguição religiosa e ideológica e o vazio moral da sociedade – como fatores geopolíticos que permitiram a permanência de um governo totalitário, mas seria interminável a resposta para aprofundar cada um deles. Assim mesmo considero que os elementos que conformam os sistemas totalitários, a que faz referência Hannah Arendt em sua obra As origens do totalitarismo, contribuem para sua permanência no tempo. No caso cubano, também a cumplicidade de parte da comunidade internacional contribuiu para isso.

Régis Bonvicino: A educação e a saúde em Cuba são consideradas de primeira linha. A cultura cubana é brilhante em vários setores. Em termos de literatura, em termos de música, produziu autores de alto nível, ímpares, mesmo sob a ditadura. O que significa isso se há tanto êxodo?

Hipólito Robaina: O que significa é que a nação perdeu sua essência, a derrocada não é só econômica e social, mas também e sobretudo moral. O espírito de uma nação próspera foi vilmente manchado, é como uma borboleta presa por um alfinete: podes contemplá-la atrás do cristal, mas perdeu seu voo e suas asas estão murchas. Nem a educação nem a saúde são de primeira linha, muitos médicos e profissionais de saúde se esforçam, mas carecem do elementar. A educação serviu no início para doutrinar, para criar homens novos mansos, apoiadores do regime. Graças a Deus, aspectos importantes da cultura sobreviveram, sobretudo ao escuro quinquênio cinzento, em que se impôs a sovietização cultural.

Julio Bonatti: Se refletirmos sobre as experiências das comunidades da diáspora cubana em todo o mundo, que perspectivas podemos obter sobre as repercussões sociais e econômicas de viver sob o regime comunista de Cuba? De que maneira as histórias e lutas dos exilados cubanos contribuem para nossa compreensão do impacto mais amplo do regime autoritário sobre as liberdades, oportunidades e aspirações individuais?

Hipólito Robaina: Segundo dados das Nações Unidas, em 2020 emigraram 1.757.300 cubanos, dos quais mais de um milhão e trezentos mil emigraram para os Estados Unidos. Isso indica 15,55 % da população cubana num só ano. Significa quase a população das províncias de Santiago de Cuba e Santa Clara juntas. Nos anos 2022 e 2023, entraram nos Estados Unidos um total de mais de 533 mil cubanos. Se consideramos a baixa natalidade existente em Cuba, podemos concluir que o pretendido “paraíso socialista” perde população ao morrerem mais pessoas que as que nascem segundo dados de 2021 e devido à fuga de seu capital humano, os maiores e melhores recursos de um país.  Os cubanos fogem de tudo, das precárias condições econômicas e sociais e sobretudo do fastio que supõem viver sem autonomia e sujeitos à arbitrariedade. Cada exilado cubano leva seu exílio de maneira muito singular, vêm da desilusão, da desesperança. Uns puderam sair com suas famílias e iniciar uma nova vida; outros, cujas famílias ficaram atrás, sofrem por não poder ajudá-las em tudo o que desejassem e veem impotentes a depauperação de seus entes queridos, de suas ruas, seus bairros, suas cidades. Assim mesmo, não são poucos os ativistas e intelectuais que, desde perspectivas diferentes, fazem esforços por mostrar a realidade de um sistema depredador como o cubano. Entretanto, considero que a comunidade internacional os trata com certa condescendência e seu apoio não vai mais além das boas intenções. Agora, é dentro de Cuba onde se encontram as pessoas que, em sua luta, merecem nosso respeito pelas condições de desigualdade em que a realizam, pela repressão a que estão submetidas e é por elas que a ação do exílio, dos ativistas e intelectuais, dentro e fora do país, adquire uma importante dimensão para fazer que as liberdades individuais e a prosperidade de Cuba não deixem de ser uma bandeira de esperança.


O livro: https://www.amazon.com/Cuba-1959-secuestro-libertad-Spanish/dp/8494503561


 Sobre Hipólito Robaina

Hipólito Román Robaina Guerra nasceu em Havana em 1958, onde se formou em Direito pela Universidade de Havana, Robaina começou sua carreira como consultor jurídico e promotor provincial, destacando-se por seu conhecimento do sistema jurídico cubano. Desde 2002, porém, vive exilado na Espanha. É especialista em Direito Consular e Diplomático. Sua experiência pessoal como exilado e seu já referido conhecimento do sistema jurídico cubano lhe dão uma perspectiva única para analisar os eventos históricos e a dinâmica política de seu país natal, conforme refletido em sua obra sobre o que ele chama de “el secuestro de la libertad”.