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DE CRÁPULA A HERÓI

Roberto Rossellini, Il generale della rovere, Itália/França, 1959

O caminho cumprido por Emanuele Bardone, o protagonista de De crápula a herói, é muito mais complexo que o simplismo dos dois extremos presentes no título brasileiro do filme. Sua construção parece justamente atacar a ideia de que possam existir tipos com características tão estritas. Impossível não ver aqui também um caminho cumprido por Rossellini, de Roma cidade aberta para cá. Se quinze anos antes a guerra figurava como eliminadora das ambiguidades, ela agora passa a ser a própria fonte delas. Numa oposição entre a população oprimida por uma ocupação e a força militar ocupante e opressora, não restava muita dúvida de que lado ficar. Em De crápula a herói os lados continuam os mesmos, mas Bardone é a figura que transita entre as partes. Nem tão identificado com o sofrimento do povo italiano dominado, nem muito menos entusiasta do poder alemão, ele vai se moldando a partir da contingência, e não se furta a usar o artifício que for preciso para se sair melhor da situação em que se meteu. Um personagem, a princípio, quase antirrosselliniano.

Numa carta escrita em 1956 à revista italiana Cinema Nuovo, intitulada “Defesa de Rossellini”, André Bazin terminava seu argumento de que Viagem à Itália mantinha e até mesmo ampliava os conceitos neorrealistas iniciais dizendo que os filmes do diretor italiano (este último especialmente) faziam pensar mais num esboço que num projeto completo, mais no traço do que na pintura. Essa opção pelo traço, se conduz o observador a um caminho já indicado, abre também uma série de espaços onde o olhar pode investir livremente, espaços cuja indefinição proposital provoca uma imediata reação no espectador, que passa a ter um papel ativo na construção dos significados daquilo que se está apresentando. Os dilemas do mundo de Rossellini são sempre morais, e isso a princípio atentaria contra esse mandamento da participação do espectador. Dilemas morais, mas nunca moralistas. Se não era difícil imaginar o que o diretor pensava das trajetórias dos personagens de seus primeiros filmes, o que significavam para ele o sacrifício final do padre de Roma cidade aberta e o do menino em Alemanha ano zero, e se ainda assim havia nesses filmes um lugar para outras interpretações, a partir de Stromboli essa fronteira começa a se apagar. Não que os espaços do espectador comecem a ser fechados, pelo contrário. É a própria posição de Rossellini que passa a se situar numa zona indefinida. O que dizer da escalada real e metafórica de um vulcão realizada pela protagonista de Stromboli ou do acerto milagroso do casal de Viagem à Itália? A ordem dos problemas continua presa à conduta e ao comportamento dos personagens, mas o que indica o caminho escolhido por cada um há muito fugiu do simples “certo” ou “errado”, “digno” ou “indigno”.

Rossellini começa a construir seus personagens para dentro, e sua extensão vai até um limite que nem o próprio diretor se arrisca a estabelecer. O máximo dessa postura está presente em De crápula a herói. Essa interiorização se expressa justamente a partir de índices exteriores ao protagonista. Embora se trate, a rigor, do mesmo ambiente geográfico e social, há uma diferença abissal entre a Resistência de Paisà e Roma e a Resistência na qual Bardone está inserido. Antes, por exemplo, o círculo nazista era identificado por uma aura maligna inequívoca, traduzida na escuridão constante dos ambientes, nos figurinos de uma austeridade over, nas caras-e-bocas dos soldados da Gestapo, chegando até a aproximações um tanto primárias, como a identificação da lascívia enquanto sintoma da maldade reinante. Em De crápula a herói isso quase se inverte. Aos oficiais alemães corresponde uma certa integridade, seus escritórios são limpos e bem iluminados, sua conduta é sempre clara. Estão no personagem italiano as características negativas: suas únicas relações afetivas são com duas prostitutas, a quem ele extorque sem pestanejar, os quartos onde vive essas relações são sempre escuros, são suas próprias expressões faciais que dão a entender que há algo de podre por baixo daquela aparência.

Jogador compulsivo que capitaliza em cima da tragédia de pessoas que têm parentes presos ou desaparecidos nas entranhas da ocupação, Bardone não é um crápula simplesmente. É acima de tudo um grande ator, capaz de passar por qualquer papel que seja necessário – daí a bem-vinda canastrice da atuação de Vittorio De Sica, capaz de sublinhar o quão artificiais são suas transformações para aqueles que as acompanham por completo (ele próprio, que as vive, e nós, espectadores privilegiados por vê-lo em todos seus momentos). Esse grande ator aplica seus golpes naqueles que desconhecem essa capacidade de parecer ser o que não se é. Um ator que leva vantagem sobre os não atores: é como se Bardone fosse a expressão de uma consciência que Rossellini e os neorrealistas vieram suplantar. O golpista ignora a realidade a sua volta, não enxerga aquilo que os filmes feitos por essa geração se esforçavam em mostrar, a nova face de um povo depois de uma guerra, da dominação estrangeira, e diante da iminente libertação. Não há conflito acontecendo em seu mundo, há apenas uma nova possibilidade de lucro. Os sentimentos da guerra real só tomam Bardone quando tomam também o próprio filme. Saindo dos ambientes internos, das casernas, dos restaurantes, Bardone vai às ruas, e lá se depara com a destruição, os bombardeios, escombros, cadáveres. Rossellini opõe a limpeza dos planos iniciais à sujeira ruidosa de trechos documentais da guerra, e a partir daí torna o redemoinho final de seu protagonista inevitável.

Bardone será preso por suas mazelas e topará um acordo com o comando alemão para se infiltrar numa cadeia de presos políticos e, disfarçado de um general da Resistência (o do título original do filme), delatar os cabeças da organização, assim se livrando do cárcere. Se sua saída às ruas antes já lhe dera o primeiro impacto, o aprisionamento será ainda mais poderoso. A tortura, a morte, a privação física e moral fariam de qualquer crápula um candidato a herói. Mas este é, acima de tudo, um grande ator. E este é, acima de tudo, o filme mais lacunar de Rossellini. Pode-se comprar a ideia do título, mas ela soa menor depois de todo esse trajeto. Redenção, ou também a encarnação profunda e fatal de mais um de seus papéis. Um personagem indefensável, talvez, num filme que, a cada revisão, parece prescindir de qualquer defesa.