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De Franco aos Rolling Stones

Por volta dos anos 1990, tive o privilégio de conhecer Paul Bowles. Uma produtora de televisão criou um programa de viagens e cultura; o piloto foi rodado em Tânger e coube a mim entrevistar Bowles. O autor de O céu que nos protege suportou uma hora sob os flashes, sentado em um incômodo sofá estilo Carlos V, respondendo em espanhol perguntas tópicas sobre Tânger e os beats, a colônia boêmia, as visitas dos Rolling Stones e demais obviedades.

Ficaram gravados para mim os comentários de fora das câmeras. O primeiro, um aviso sobre o mayún: “Foi o que acabou com minha mulher, Jane”. Estava certo: esse doce de hachís é “uma bomba atômica para os sentidos”. O segundo parecia uma piada: “O que sei sobre a música marroquina aprendi com o livro de um padre espanhol”. Até que li História do Tânger (Almuzara, 2009) e compreendi que talvez fosse sério. O cronista, Leopoldo Ceballos, apresenta Bowles como seguidor, em musicologia, do padre Patrocinio García Barriuso:

É curioso constatar que dois homens tão distintos – um representava o Tânger mais liberal e promíscuo, enquanto outro pertencia ao setor mais conservador da cidade – coincidiram em seu interesse pela música do país e desenvolveram estudos de grande relevância sobre o tema.

No sentido religioso, o Protetorado espanhol estava encomendado aos franciscanos e o padre García Barriuso o era. Pesquisou naquela terra de infiéis, publicando livros e abundantes artigos na revista dos franciscanos, Mauritânia. Interessava a ele o direito matrimonial, a liberdade de cultos no Marrocos e, como obsessão pessoal, a música magrebi, tanto a refinada como a popular. Isso o situa na cadeia de circunstâncias que provocaram a visita de Brian Jones a Joujouka. Ou Yahyuca, como prefere transcrevê-lo o padre García Barriuso.

A viagem de Brian faz parte do folclore da contracultura internacional. Por exemplo, é contada minuciosamente em Rolling Stones: os velhos deuses nunca morrem, de Stephen Davis (Ma Non Troppo, 2001). Em julho de 1968, o rei destronado dos Stones se instalou em Yahyuca, com sua namorada Suki e um hábil engenheiro do Olimpic Studio londrinense, com microfones e um gravador Uher. De cicerone, Bryon Gysim, amigo de Paul Bowles e grande pícaro do underground.

O objetivo era gravar os ritos supostamente pagãos daquele povoado do Rif. Dois dias alucinados que inspiraram os indígenas a criarem uma cançãozinha que dizia assim:

Ah Brahim Jones
Jajouka rolling stone
ah Brahim Jones
Jajouka really stoned.

Aqueles encontros, tratados posteriormente em Londres, foram publicados quando Brian já havia falecido, como “Brian Jones presents the pipes of pan at Jajouka”. E colocaram em órbita os músicos de Yahyuca. Eram, na feliz expressão de William S. Burroughs, “una banda de rock ‘n’ roll com 4000 anos de antiguidade”.

A partir do disco “de” Brian, Timothy Leary, Ornette Coleman e outros tantos fizeram a peregrinação até Yahyuca. Os já conhecidos como Master Musicians of Jajouka gravariam com Bill Laswell ou com os Rolling Stones ao completo o memorável “Continental drift”, do álbum Steel wheels. Jagger e companhia não foram até as montanhas: convocaram os rifenhos ao Palácio Ben Abou, além de jurar fidelidade a Paul Bowles, relíquia de um Tânger cosmopolita que se extinguia.

E, de volta ao padre García Barriuso (1909-97). Descubro que, em 2001, foi feita em Sevilha uma reedição fac-símile de sua obra magna, A música hispano-muçulmana em Marrocos. Graças ao Instituto Cervantes, localizou-se uma cópia e vem a ser um volume imenso, com abundantes exemplos musicais, fotos e desenhos. Uma erudição surpreendente e certa retranca: ao tratar do ofício de chija, diz que estas bailarinas e cantoras eram “de vida alegre, em conformidade com sua arte leve”.

Efetivamente, no volume que fala dos gaitistas (e tamborileiros) de Yahyuca, o padre Patrocinio estava empenhado em destacar as semelhanças entre as muiñeiras galegas e certos ares do Norte da África. Adverte que nem sequer em Yahyuca estavam imunes aos terremotos políticos: “até tocam, digo melhor, maltratam a Cara no sol!”.

Convém apontar que a música hispano-muçulmana em Marrocos foi editada, em 1941, pelo Instituto General Franco (“para a pesquisa hispano-árabe”). Estamos perante um dos paradoxos do colonialismo: os militares africanistas depreciavam os nativos mas terminaram admirando alguns aspectos de sua cultura. O Instituto General Franco, com edifício próprio em Tetuán, integrava a ofensiva diplomática do regime franquista; ignorado pelas democracias em guerra, buscava fazer amigos no mundo árabe. Também havia um elemento intimidatório: até 1956, Franco se apresentou em público protegido pela Guarda Mora. Como se ameaçado com a volta daqueles ferozes guerreiros, especialistas em mutilar, violar e saquear.


 Sobre Diego A. Manrique

Crítico de rock do jornal El País.