Um doloroso episódio na história da poesia em São Paulo. É assim que descreveria o que vem ocorrendo, nas redes sociais e em sites da internet, na sequência de um artigo de Luis Dolhnikoff, no qual ele questionava o escopo, o programa e as realizações da Casa das Rosas.
Poucas foram as respostas que, como a de Cláudio Willer, no seu blog, tiveram por objeto a crítica de Dolhnikoff. Mesmo a de Willer veio tingida de um parti pris forte, de defesa do lugar da própria atuação. Mas foi centrada nos argumentos e dirigiu-se exclusivamente ao texto de Dolhnikoff, mantendo-se no plano objetivo e legítimo do embate de opiniões.
Outras respostas, a começar pela que posteriormente se negou como tal, não tiveram por objeto a crítica pública, mas a pessoa privada do editor da revista, o poeta Régis Bonvicino.
Para quem não acompanhou o episódio desde o começo, eis um resumo: logo na sequência do aparecimento da crítica, o diretor da Casa das Rosas, Frederico Barbosa, publicou no portal Cronópios um poema sobre um juiz. A didascália falava, no final, depois de referir uma certa “canalha perseguidora”, em juiz de futebol. Mas já a primeira seção do poema mostrava que a questão era outra, ao atribuir ao tal juiz a frase “Eu sou juiz. Eu te processo”. Frase que não parece razoável na boca de juízes de futebol, que apitam certo ou errado, mas não têm o poder de processar.
O poema referia, na sequência, que a mãe do juiz se suicidara e que a filha do juiz sofria de transtorno bipolar (a expressão, grosseira, foi exatamente “bipolou”). E ainda que o juiz fazia negócios da China e fora abandonado pela mulher.
Não é segredo, no mundo literário (que é, por sinal, bem pequeno), que Régis Bonvicino é juiz de carreira. Nem que esteve na China recentemente. Também não são poucos os que sabem que a sua mãe se suicidou. E o outro problema também não é de desconhecimento geral.
Assim, o poema de Frederico Barbosa dificilmente – por conta do momento, da tensão entre a Sibila e a Casa das Rosas e dos dados biográficos do juiz Régis Bonvicino – passaria por sátira aos problemas da arbitragem futebolística.
É certo que é difícil provar. Mas no domínio da ética não é a prova cabal o elemento mais importante. É a percepção desassombrada e a apreciação justa dos elementos em jogo.
Na sequência da publicação do poema, Régis Bonvicino enviou comunicado ao superior hierárquico de Frederico Barbosa, por entender que um homem que detinha um posto público não podia dar uma resposta particular enviesada a uma crítica pública. Ou seja, uma pessoa pública não podia responder no nível de agressão pessoal em que julgava ter sido a resposta de Frederico, no texto do Cronópios. [1]
Frederico, então, desenvolveu uma curiosa argumentação, que incluiu até uma leitura torta e insustentável de um conto de Guimarães Rosa, para afirmar que não visou à pessoa do antagonista. Ou melhor, para dizer que o seu poema nada tinha a ver com essa pessoa.
Por via das dúvidas, porém, alterou a estrofe em que falava da mãe e da filha do juiz.
Amigos, parceiros, funcionários e admiradores de Frederico Barbosa logo organizaram um abaixo-assinado pela sua manutenção na chefia do aparelho cultural. E a questão começou a se configurar, como é comum entre nós, como mais um fla-flu.
Esse fla-flu não é ingênuo: pelo contrário, é uma forma eficaz de neutralizar tanto a questão da crítica não respondida adequadamente (isto é, da crítica que fez Dolhnikoff à gestão de Frederico Barbosa), quanto a questão ética.
Não creio, porém, que se deva aceitar esse súbito deslocamento do problema. Acho, sim, que é preciso discutir o escopo do texto publicado no Cronópios – e, sobretudo, o que ele significa enquanto agressão pessoal.
Para afirmar o meu ponto, gostaria de utilizar um exemplo. Que é este. Digamos que alguém escrevesse o seguinte soneto:
UM PULHA de espadim, bonzo eramá,
Primaz da confraria do Bangu,
Espinhento tal qual um babaçu
Azulado como um baiacuará,
Se finge provençal, nascendo cá:
Mudando o sobrenome o gabiru
Quis borrar o natal caaguaçu
E o pátio onde dançou o canimá.
Mas mais manco é na ideia que no nome:
Publica verso, em tudo mete a mão,
Franguinha que se toma por ebome,
Soldado que se julga capitão:
Por timbre tem somente o codinome
E a fama de budista bobalhão! [2]
O soneto seria evidentemente um pastiche de Gregório de Matos e verberaria vícios públicos anônimos. Mas nem por isso deixaria de poder ser lido como se fosse centrado exemplarmente em alguma pessoa pública que preenchesse tais atributos, a saber, a afetação, a vaidade, a arrogância, a presunção.
Mas agora eis a questão: esse caso e o do poema de Frederico Barbosa são semelhantes? Se não são, qual a diferença entre eles?
Quanto a mim, são profundamente diferentes, e a diferença é que neste soneto a sátira se mantém no limite dos fatos objetivos, públicos. Trata-se aqui do livre exercício do direito da crítica, na tradição de um gênero literário de larga história e escopo salutar. É a sátira como forma de açoitar o vicioso e melhorar a sociedade. Mas sempre – mesmo quando seja possível atribuir, por coincidência de sinais particulares, um ou outro objeto ao discurso – tudo se passa numa esfera pública, sem referências a fatos doloridos de caráter pessoal e sem denegrir (na medida que a sátira denigre para purificar) ninguém mais do que o objeto da sátira: o defeito moral. Isto é, não se visa um indivíduo concreto, mas o que ele representa: os vícios que se quer, com a sátira, esconjurar ou corrigir.
Esse soneto, portanto, não teria porque se defender pela negação do objeto. Qualquer um que dissesse: esse sou eu, seria – por sua própria conta.
No caso do texto de Frederico Barbosa, a situação é outra. Fosse apenas uma peça sobre os desmandos dos juízes (por exemplo: uma sátira à magistratura por conta do que sai nos jornais, devido à ação do CNJ), ou um ataque ao estilo empolado que se atribui aos egressos do Largo de São Francisco, não haveria nada a reparar.
O problema se apresenta quando, além da pessoa pública, visa-se à pessoa privada, por meio da alusão forte a fatos e circunstâncias que não servem à crítica, nem são de caráter geral, nem exemplificam ou evidenciam algum vício público que se quer combater. De fato, qual o valor de crítica moral ou social em registrar que a mãe de alguém se suicidou? Ou de que o filho de alguém passa por um momento psicológico difícil ou sofreu um traumatismo de graves consequências? A alusão ou indigitação, nesse caso, é apenas maldosa, sem proveito pedagógico.
Num episódio como esse do poema de Barbosa, tentar dissolver a questão ética com argumentos pueris retirados de manuais de teoria literária é apenas piorar a situação. Identificar a reação de alguém ofendido pessoalmente à repressão do período militar é uma demonstração de insanidade. E, por fim, organizar manifestos e abaixo-assinados que ignoram a questão real é constrangedor, pelo cinismo que exige quanto aos móveis reais das ações.
A única solução decente seria a retratação, o reconhecimento humilde de que houve erro. Todos podemos errar sob efeito de paixões. Mas tentar justificar racionalmente o gesto indigno que se fez sob o impulso da cólera ou outra paixão destrutiva não é caminho produtivo. Sobretudo se quem o trilha tem função pública relevante.
Mas a conciliação, envolvendo a retratação, dificilmente será possível nesse caso, pois a situação parece ter chegado a um ponto sem volta. E, na verdade, qualquer solução agora não sanaria o rebaixamento geral provocado pela publicação do poema. Não adianta sequer agora o movimento patético de o insulto tentar se desqualificar como insulto, nem o interesse se disfarçar de solidariedade. O mal está feito. E é evidente, para quem queira ver, que se trata de um triste momento para a cultura de São Paulo.
Notas
[1] Muito se criticou essa comunicação feita – agora sim, pelo juiz e não pelo poeta, pois era também a atuação do magistrado o alvo do texto. Quando, entretanto, se considera desapaixonadamente a representação, é fácil ver que, sendo atingido não o poeta, mas o magistrado no exercício da sua função, não há matéria para escândalo na comunicação pública ao superior do agressor. Imagino mesmo que qualquer outro juiz que tivesse sido alvo de insinuação semelhante se teria sentido moralmente obrigado a tomar medida mais radical.
[2] Tomado aqui como exemplo de possibilidade, trata-se de um texto que já foi não só escrito, mas também publicado. Entre outros lugares, na revista Babel, nº 4, agosto/setembro de 2011.