Foi com letras maiúsculas que Flávio de Carvalho explicitou, nos idos dos anos 1930, a dificuldade que ele procurou imprimir em sua obra. “O BELO HOJE SE TORNOU UMA COISA ESPINHOSA, UM BICHO FEIO E DIFÍCIL DE AMANSAR”, dizia em um artigo publicado no Diário de S. Paulo, cujo título, não menos sugestivo, era: “A única arte que presta é a arte anormal”.[2] Postulado em relação ao qual exposições recentes sobre o artista têm ido na contramão, ao tentar domar a besta para o público. Entretanto, é justamente desse paradoxal processo de domesticação museológica que surge a possibilidade de uma análise para entender aspectos decisivos da obra de Carvalho.
Além de excelente retratista e desenhista, Carvalho, que tinha formação em engenharia, atuou como arquiteto, jornalista, polemista e agitador cultural, além de antropólogo diletante e cientista imaginativo. Carvalho hoje é conhecido, sobretudo, por suas “experiências”, tais como a intervenção numa procissão de Corpus Christi em 1931, quando quase foi linchado, e a apresentação, em passeata pelas ruas de São Paulo em 1956, do seu “New Look”, um traje masculino composto de blusão e saiote que, segundo o seu criador, seria mais adequado aos climas tropicais do que o tradicional terno e gravata.
A maioria das suas atividades, apesar de decisivas todas para a compreensão de sua atuação artística e partes integrantes dela, não são passíveis de reconstrução ou recriação com facilidade num espaço mais tradicional de exposição de obras visuais. Mesmo quando pratica gêneros mais tradicionais e mais adequados à exibição museológica, o processo de criação empregado resulta em obras que não parecem enquadrar-se com facilidade nos âmbitos e nos circuitos por onde a arte costumeiramente é exibida e consumida.
Um exemplo é a prática do retrato. Assim como em outras modalidades artísticas pelas quais transitou, a prática do retrato, seja em desenho seja em pintura, é proposta nos escritos do artista como um experimento psicológico que buscava produzir, registrar e investigar reações psíquicas tanto do retratista como do retratado. Especificamente no caso do retrato, trata-se de uma tentativa de reavivamento, com base na psicologia e na psicanálise, da prática antiga da fisiognomonia, o que também pode ser percebido nas várias entrevistas feitas pelo artista e publicadas em periódicos da época. Principalmente na década de 1930 – período em que formula mais radicalmente certas diretrizes de sua atuação estética –, as reações psíquicas registradas nos retratos e produzidas pela sua confecção têm, para Carvalho, sempre uma base primitiva e arcaica, bem como forte aspecto patogênico. A esse respeito, no mesmo texto em que anuncia o “bicho feio de difícil de domar” em letras maiúsculas, Carvalho deixa explícitas as diretrizes gerais da sua atuação:
O problema estético hoje não é mais a abstração lírica cheia de impasses lógicos, mas pertence aos domínios da psicopatologia e de uma ciência que ainda está por ser inventada e que pode bem se chamar psicoetnografia.[3]
Como já sugeriu Rui Moreira Leite, um dos maiores conhecedores da obra do artista e pioneiro no seu estudo, Carvalho opera uma transposição do âmbito do artístico para a fronteira entre a “experiência” (pessoal, subjetiva, entendida como vivência) e a “experimentação” (de matriz cientificista, embora disparatadamente especulativa e imaginativa, que supõe certos procedimentos estabelecidos para a produção, e a observação de fenômenos).[4] Considerando tal fronteira, pode-se dizer que tanto Carvalho e sua obra quanto o espectador realmente imerso nela seriam, ao mesmo tempo, a cobaia, o laboratório e o cientista maluco tomado por uma “animosidade pesquisadora”.
Ao comentar uma obra particular de Carvalho, Valeska Freitas, carvalhiana falecida precocemente, afirma algo que pode ser estendido para a obra do artista como um todo. Atuando em vários meios e linguagens, Carvalho acaba por produzir um “compósito cultural no qual corpo e postura experimental, texto e desenho, interpenetram-se irreversivelmente”.[5] Como reproduzir, num espaço de exposição, essa fronteira “experiência”/“experimentação” nos modos pelos quais ela se dá nos “compósitos culturais” que constituem a obra de Flávio de Carvalho parece, de fato, uma tarefa difícil e, em grande parte, fadada a algum tipo de fracasso.
Flávio de Carvalho: a revolução modernista no Brasil,exposição que esteve em cartaz no primeiro semestre de 2012 no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, expôs cerca de sessenta obras do artista, entre desenhos, pinturas e projetos arquitetônicos. E propôs ainda uma série de atividades paralelas. Em horários preestabelecidos, por exemplo, um ator vestia o traje inventado por Carvalho em 1956 e passeava com ele pelo CCBB, entretendo os visitantes da mostra, que poderiam ainda experimentar o “New Look” por meio de uma instalação de vídeo. Num grande monitor, o espectador poderia ver, sobreposta à sua imagem, uma fotografia do “New Look” e vislumbrar como o saiote e o blusão lhe cairiam como peças de vestuário.
Seriam a performance do ator com o “New Look” e a apresentação do traje como videoinstalação suficientes para dar conta da proposta original de Carvalho? A história da peça fala por si. O traje foi realizado depois de uma longa e minuciosa investigação “psicoetnográfica”, e sua apresentação, em 1956, pretendia produzir reações psicológicas que também viriam a ser estudadas pelo artista. Antes de mostrar o “New Look”, Carvalho fez um longo estudo sobre a história do vestuário, publicado em uma série de 39 artigos no Diário de S. Paulo naquele mesmo ano e que depois fariam parte de um livro, nunca publicado em vida, chamado Dialética da Moda.[6] Minuciosamente projetado, o traje exibia um complexo sistema de circulação de ar, pensado para proporcionar o bem-estar físico de quem o usasse. As cores e os vários detalhes da peça foram pensados para promover o bem-estar anímico do usuário. As “cores vivas” adotadas serviriam para substituir “desejos de agressão”, e a gola, opcional, teria “uma finalidade psicológica”: “compensar a inferioridade quando ele anda por aí”.[7] De um lado, o uso do traje supunha a promoção de um bem-estar de quem o usasse, mas sua demonstração em passeata pelas ruas da cidade, amplamente divulgada na mídia, era movida por um propósito provocativo, assim como boa parte das inúmeras atividades do artista, que buscava, segundo seus escritos, “palpar psiquicamente a emoção tempestuosa da alma coletiva” e “provocar a revolta para ver alguma coisa do inconsciente”.[8] A polêmica produzida pelo traje também foi objeto de estudo por Carvalho, que afirmou, numa conferência dada na década de 1960, que planejava coletar as várias reações ao seu “New Look” estampadas na imprensa e analisá-las num livro, que nunca chegou a ser realizado e se chamaria Experiência nº 3. [9]
Ao que tudo indica, a exposição de Brasília procurou transformar o enfrentamento e a polêmica que pautaram a atuação de Carvalho, em particular no ato de desfilar em público com o traje, em interatividade para consumo do público, agora não mais enfrentado ou hostilizado, mas entretido, como num parque temático ou em exposições interativas de arte digital. Curiosa e sintomaticamente, em um prédio ao lado de onde acontecia a mostra a respeito de Flávio de Carvalho, havia uma exposição sobre videogames. Permitir que o público “vista” o traje de Carvalho por meio de uma instalação de vídeo pode ser entendido como uma tentativa de criar uma proximidade maior com a obra, mas parece simplesmente insuficiente para reconstituir o estado anímico que o uso do traje devia promover segundo o seu criador. Além disso, o passeio do ator vestido com o traje em horas agendadas supõe que a experiência de Carvalho com o “New Look” seja algo do tipo que se chama hoje de “performance” ou “happening”, modalidades artísticas que, apesar de terem origem em determinados experimentos dadaístas e surrealistas do início do século XX, só foram teorizadas e normalizadas como gênero artístico por volta da década de 1960. Seria um anacronismo pensar na apresentação do “New Look” como “performance”. O próprio conceito seria estranho a Carvalho, que não entendia essas atividades como arte num sentido estrito, mas pensava nelas como intervenções polêmicas que alimentam investigações científicas, históricas e antropológicas.
A mesma exposição de Brasília também procurou recriar outras atividades de Flávio de Carvalho, sobretudo seu papel de agitador cultural à frente do Clube dos Artistas Modernos, misto de bar, restaurante, galeria de arte e fórum para debates e palestras, fundado por Carvalho e outros artistas em 1932. Uma das mais importantes atividades do Clube dos Artistas Modernos foi a organização, em 1933, da exposição Arte dos loucos e das crianças, que exibiu desenhos de crianças e obras de internos do Hospital Psiquiátrico do Juqueri. Na exposição de Brasília, ao lado das obras de Carvalho, há uma seção que também exibe obras de crianças e de internos daquele hospital psiquiátrico. Mais significativa, contudo, foi a tentativa de recriar o Clube dos Artistas Modernos na “sala multiuso” do CCBB-Brasília. Ao lado de um balcão genérico de bar (bebidas não eram servidas ali, diga-se de passagem), viam-se nas paredes da sala reproduções de algumas obras expostas no Clube, bem como uma reconstituição do cenário e dos figurinos da peça O bailado do Deus morto, escrita por Carvalho em 1933 para inaugurar o seu Teatro da Experiência. A peça, bastante arrojada mesmo para os padrões do teatro experimental atual, tinha um elenco composto em grande parte por atores negros que vestiam adereços de alumínio também projetados por ele. Tratava-se de uma reconstituição, por meio de música, coreografia e grunhidos, de um mito cosmológico do sacrifício de Deus apresentado como uma entidade animal. Terminando com a fala “a psicanálise matou Deus”, a peça causou polêmica na época e foi fechada pela polícia de costumes depois de algumas apresentações. Na exposição do CCBB, a recriação do Clube dos Artistas Modernos, a reconstituição do cenário de O bailado do Deus morto e a exibição de quadros de crianças e de internos do hospital psiquiátrico podem ser entendidas como uma tentativa de indicar a amplitude da atuação de Carvalho. Porém, isso é realizado apenas de modo indiciário. Um visitante, apenas vagando pela exposição e divertindo-se com suas atrações interativas, não poderia adivinhar a importância da história do clube fundado por Carvalho, nem o impacto produzido pela sua peça – e menos ainda o aproveitamento que realizou da arte produzida por crianças e doentes mentais.
O mais importante de se ressaltar é que, contudo, esses problemas não são exclusivos da exposição do CCBB de Brasília. Na verdade, tais problemas apontam para a dificuldade se trazer a obra de um artista indócil para dentro de um museu. Ao revés, justamente por tentar domesticar o indomesticável, eles ajudam a entender “o bicho feio e difícil de domar” criado por Carvalho.
Não faltam exemplos disso. A retrospectiva do Museu de Arte Moderna de São Paulo, de 2010, investiu, sobretudo, na exibição de uma vasta documentação que, de maneira igualmente indiciária, tentava apresentar a trajetória do artista. A insistência na documentação exaustiva da trajetória de Carvalho pode ser entendida como uma proposta afinada com os interesses que o artista nutria com relação à pesquisa de documentos e ao trabalho com ruínas e resquícios históricos e culturais. Poderia servir, portanto, como uma entrada produtiva para a compreensão das inquietações de Carvalho. Porém, ainda mais uma vez, domestica-se aquilo que é “difícil de amansar”. A exibição organizada de documentos num espaço de exposição neutraliza o que de mais sugestivo poderia haver, para Carvalho, em “coleções de ossos”, expressão usada por ele para designar a coleção de documentos e de resíduos sobreviventes ao tempo. Autodenominando-se “arqueólogo malcomportado”, Carvalho defendia que o interesse das “coleções de ossos” se encontra em seu caráter incompleto e remoto, sua “sugestibilidade de uma recordação longínqua”. Para Carvalho, “os resíduos sobreviventes são os únicos pontos de apoio capazes de aguentar com suficiente segurança a animosidade pesquisadora do homem”. Porém, sintomaticamente, é o resíduo “menos ‘sobrevivente’, mais morto, mais remoto e mais impalpável” aquele que possui a “maior carga de sugestibilidade”. Esse tipo de resíduo seria, assim, possivelmente, o menos passível de fruição desinteressada num espaço expositivo, uma vez que ele “requer a simpatia de uma camada mais profunda, mais antiga do inconsciente, e a sua beleza é menos acessível à apreciação geral”.[10]
A última Bienal de São Paulo, de 2010, também teve de enfrentar o mesmo dilema, resolvendo-o parcialmente com a apresentação de uma performance dirigida por José Celso Martinez Corrêa na abertura da mostra, “Experiência Flávio de Carvalho nº 6”. Porém, estritamente no espaço dedicado a Flávio de Carvalho na exposição, o problema de apresentar um resíduo pouco acessível à apreciação geral ressurge, com o agravante de que o resíduo particular escolhido, pela sua própria natureza, impede sua reconstrução. A mostra, ao invés de oferecer um panorama da trajetória de Carvalho, procurou apresentar uma atividade em particular, a já mencionada intervenção na procissão de Corpus Christi de 1931. Inspirado, como sempre, aliás, na leitura bastante particular que fazia da psicanálise e de uma certa antropologia, Carvalho marchou com um chapéu na direção contrária à dos fiéis, que também foram interpelados pelo artista, em especial as mulheres, que receberam cantadas. Se não tivesse corrido e se escondido em uma leiteria, Carvalho teria sido linchado pelos integrantes da procissão, que ficaram enfurecidos com sua provocação. Detido pela polícia, ele só foi liberado após explicar que se tratava de um experimento psicológico sobre o comportamento das massas. O incidente resultou na escrita de um livro, Experiência nº 2, realizada numa procissão de Corpus-Christi: uma possível teoria e uma experiência, ilustrado por desenhos e diagramas diversos feitos pelo autor, que analisa as suas reações durante o incidente e a manifestação dos fiéis enfurecidos, propondo uma teoria do funcionamento psíquico que depois seria usada em vários de seus escritos posteriores e aplicada a situações diversas.
Para apresentar tal “experiência”, que, como se vê, é composta por ações, escritos e desenhos (no limite, não é possível sequer saber qual é de fato a “experiência” em questão, se a intervenção ou sua análise e descrição posteriores), a Bienal organizou uma espécie de instalação na qual foram expostos, dentre outros objetos, trechos de jornais da época que noticiaram o escândalo, alguns dos desenhos feitos por Carvalho, bem como fragmentos do seu livro. A apresentação da Experiência nº 2 na Bienal sugere uma afinidade que, de fato, parece existir entre algumas das atividades de Carvalho e certa produção da arte contemporânea, que funde pesquisa de campo, documentação e coleta de objetos diversos. Porém, analogamente à suposição da apresentação do “New Look” como “performance”, a proposta da Bienal pressupõe que a experiência em questão possa ser tomada como um processo de criação artística com vistas à produção de objetos a serem organizados, para a exibição ao público, em forma de “instalação”, noção também estranha a Carvalho.
Criticar essas exposições recentes como se fez aqui não supõe, de forma alguma, que haja uma maneira correta ou mais adequada de apresentar a obra e a trajetória de Flávio de Carvalho em museus; tampouco se pretende sugerir que elas não devem ser apresentadas e divulgadas a um público maior. O que as falhas das exposições revelam é justamente o caráter indomesticável da obra de Carvalho, caráter observável quando ela é exibida em espaços museológicos, e também quando ela é objeto de estudo na história e na crítica da arte.
Com relação à dificuldade da exibição dessa obra em espaços expositivos, o problema é consequência das particularidades idiossincráticas dessa obra, que deixa sempre indistintas a produção de objetos visuais e de escritos, as realizações de ações e uma atitude especulativa e experimental. Essa dificuldade, porém, não está restrita apenas à exibição da obra de Carvalho. Trata-se de um problema decorrente das limitações do próprio espaço museológico e do modo pelo qual ele é concebido atualmente. A dificuldade aparece sempre quando são expostos objetos que preveem um comportamento não exclusivamente contemplativo do público (pode-se pensar aqui na exibição dos parangolés de Oiticica ou dos bichos de Lygia Clark, isso para não mencionar as experiências dessa última com os chamados “objetos relacionais”); ou quando artefatos culturais diversos são transformados em objetos museológicos (pense-se, por exemplo, em arte religiosa ou em objetos provenientes de culturas não ocidentais).
As dificuldades inerentes à exibição museológica da obra de Carvalho são análogas aos obstáculos notáveis na tentativa de descrição dessa obra na crítica e na história da arte. Apesar de parecer decisivo para a explicação do fenômeno da modernidade artística no Brasil, não há ainda um modo convincente de catalogar a obra do artista. Inadvertidamente chamado de “modernista”, inclusive por algumas das exposições recentes, como a do CCBB de Brasília, a obra de Carvalho parece indiferente às várias proposições que sustentam o que se convencionou chamar de “modernismo brasileiro”. Apesar de Carvalho ter estabelecido contatos pessoais com vários artistas chamados de “modernistas”, o projeto modernista, articulado por Mário de Andrade, o seu teórico mais importante, de constituição de uma arte nacional ao mesmo tempo atualizada com a arte moderna internacional e reveladora de uma nacionalidade particular é simplesmente irrelevante para o autor da Experiência nº 2 e incapaz de servir de explicação para a sua obra. A própria existência dessa obra, por si mesma, já desafia as narrativas oficiais que totalizam as experiências em arte moderna da primeira metade do século XX brasileiro como integrantes ou continuadoras de um movimento chamado “modernismo brasileiro” que teria revolucionado, segundo o que defendem seus participantes e herdeiros, o fazer artístico no Brasil a partir de sua suposta eclosão na sempre celebrada “Semana de 1922”, da qual Carvalho não participou. A divulgação da obra do artista para públicos cada vez maiores é necessária para alterar alguns consensos a respeito da arte moderna no Brasil e possibilita que o fenômeno da modernidade artística no país seja entendido de maneira mais plural e complexa.
Contudo, mesmo propor o legado de Carvalho como parte do fenômeno da modernidade artística, em si mesmo, é algo que exige certa sutileza. Já foi sugerido que o artista seria o mais radical dos “modernistas” e o mais vanguardista deles. A caracterização, porém, também é problemática. De um lado, ele pode ser tomado como um artista arrojado, inventor avant la lèttre da performance e da arte-documentação. De outro, pode parecer conservador, uma vez que foi um combatente de novas tendências surgidas durante a sua atuação. Foi um inimigo declarado da arte concretista e da abstração de caráter mais geométrico, pois acreditava que o fazer artístico não se poderia resolver como problema formal, mas sim enfrentado como uma questão estética inseparável do problema “psicoetnográfico”.[11] Apesar de ter contribuído para a introdução da abstração no Brasil, nunca viu com bons olhos essa tendência,[12] permanecendo, no âmbito estrito da sua produção eminentemente visual, como praticante de gêneros tradicionais, tais como o retrato e o nu. Sua prática de produção de compósitos culturais e sua atuação indistinta de artista, cientista imaginativo e etnógrafo diletante resultam numa obra de aproximação difícil que não parece deixar-se amansar pelos critérios tradicionalmente empregados para a exibição de arte. Uma reinvenção do espaço museológico e das categorias que orientam a crítica e a história da arte, por mais radical que fosse, ainda não daria conta de apresentar com propriedade essa complexidade sem neutralizá-la e diluir o que de mais interessante parece haver nela.
Há ainda que se considerar a sua complexa relação de hostilidade com o público. É preciso pensar em que medida tornar o artista mais conhecido, apesar de necessário e bem-vindo, não engendraria uma incontornável domesticação de sua obra. Em várias ocasiões, principalmente nas décadas de 1930 e 1940, Carvalho costumava declarar que via frequentadores de exposições e de museus como uma “vaca que contempla a paisagem”. Ao mesmo tempo em que usava ostensivamente veículos da imprensa para ganhar visibilidade pública e para palpitar sobre os mais variados assuntos de interesse geral (sobretudo aqueles relacionados ao urbanismo e à vida na cidade), Carvalho se valia dos mesmos veículos para fazer afirmações como essas: “O público não me interessa. Pinto, faço escultura e arquitetura exclusivamente para mim. As massas estão completamente alheias ao meu mundo […]”.[13] Repondo o mito romântico do artista como ser de exceção, Carvalho vaticina, em vários escritos, a impossibilidade de ser apreciado pelas “massas”. Para Carvalho, o público, além de “ter sensibilidade inferiormente desenvolvida à do artista”, estaria “acostumado a conceber a arte somente em termos de si mesmo”. Por estar “embalado por uma rotina secular e por uma tradicional ‘burrice’ de massas”, o público em geral não teria a disposição de se submeter ao tipo de “experiência/experimento” que o artista idiossincraticamente procurava realizar, que pressupõe “a capacidade de penetrar em regiões mais amplas, nos domínios do mundo emotivo e nos domínios do mundo abstrato”.[14] Resta saber como tal capacidade pode ser inculcada ou desenvolvida em espaços expositivos ou por estratégias curatoriais. Isso apenas as exposições dedicadas à obra de Carvalho no futuro poderão responder. E, provavelmente, de modo ineficaz.
Notas
[2] “A única arte que presta é a arte anormal”. Diário de S. Paulo, 24/9/1936. Fundo Flávio de Carvalho/CEDAE (Centro de Documentação Alexandre Eulálio), Unicamp.
[3] “A única arte que presta é a arte anormal”. Op. cit.
[4] MOREIRA LEITE, Rui. Flávio de Carvalho (1899-1973): entre a experiência e a experimentação. São Paulo: ECA/USP, 1994. Tese de doutorado.
[5] “Flávio de Carvalho, leitor dos gráficos de cultura”. In:Denise Mattar (org.), Flávio de Carvalho: 100 anos de um revolucionário romântico. Rio de Janeiro: CCBB, 1999, p. 60.
[6] Recentemente, publicaram-se os artigos num livro chamado A moda e o novo homem [RJ: Azougue, 2010], que era o nome da série dos artigos de jornal e não o nome pensado por Carvalho para o livro.
[7] A moda e o novo homem, op. cit., p. 296.
[8] Experiência nº 2. Rio de Janeiro: Nau, 2001, p. 16.
[9] Palestra dada por Flávio de Carvalho na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em 1963, publicada sob forma de nove artigos pela Folha de S. Paulo em 1975 e coletada no catálogo da retrospectiva do Museu de Arte Moderna de São Paulo de 2010 [Rui Moreira Leite, org. Flávio de Carvalho. São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2010, p. 49].
[10] Ossos do mundo. São Paulo: Antiqua, 2005, p. 43.
[11] Carvalho acreditava que o concretismo e a abstração geometrizante seriam apenas uma transposição para a tela dos problemas da arquitetura. V. depoimento dado a Quirino da Silva [Diário da Noite, 27/5/1954. Fundo FC/CEDAE]: “Os inúmeros diagramas de Força com que se exibe o concretismo não são outra coisa senão o esqueleto teórico das obras acabadas da Engenharia e da Arquitetura”. Carvalho também era crítico da assertividade programática do concretismo, que ele via como religiosa e dogmática. A esse respeito, v. outro depoimento a Quirino da Silva [Diário da Noite, 24/3/1955. Fundo FC/CEDAE]: “Infelizmente os mentores dessas disciplinas [o abstracionismo e o concretismo] adotaram um ‘modus vivendi’ litúrgico e se apresentam ritmicamente munidos de vasto material de dogmas que são atirados ao jovem insólito em forma de reza, corrompendo e embrutecendo esse insólito elemento. A reza abstracionista e concretista se repete e se repete, transformando o elemento jovem em budista em estado de nirvana. A grande monotonia invade as exposições do mundo atual. São todas iguais”.
[12] Um resumo da complexa posição de Carvalho com relação à arte abstrata pode ser encontrado, por exemplo, na entrevista dada ao inquérito realizado pela Folha da Noite a propósito da tendência. O título da entrevista já é bastante sugestivo: “A pintura abstrata presta-se a toda sorte de chantagens mentais – afirma Flavio de Carvalho, transmitindo seu ponto de vista no inquérito da Folha da Noite”. [Folha da Noite, s/d., c. 1948. Fundo FC/CEDAE]
[13] “‘Como a vaca que contempla a paisagem’ – O público e as questões de arte – O próximo Salão do Sindicato dos Artistas Plásticos e o engenheiro Flavio de R. Carvalho”. Diário da Noite, 23/12/1940. Fundo FC/CEDAE.
[14] “A luta nos domínios da arte”. O Cruzeiro, 2/4/1938. Fundo FC/CEDAE.