Acossado de Jean Luc-Godard, é, a um só tempo, uma assinatura autoral e o anúncio de um modo crítico-citacional de realizar cinema em toda sua dimensão plural e aberta. Mostra como todos os filmes seguintes se conceberiam ao modo de uma experiência e uma suma do cinema (de outras artes, em especial, da literatura), da cultura e do século. No caso do filme de estreia, a passagem da segunda metade dos 1900 soa à maneira de uma reportagem, uma aventura cheia de sensorialidade e senso de |Zeitgeist, que a impede de ser mais um manifesto moderno, por conta de sua heterogênese formal e de seu impasse/impacto moral. Nesse sentido, bem marca o traço-detetive da busca de Poiccard/Patricia unidos pela paródia fatal do noir emblematizado por Bogart: a unha percorre o lábio cortando a respiração – À bout de souffle –, no mesmo fôlego em que se refaz o cinema para além de um esquema cerrado, acentuando a inquietação ante o que está por emergir.
Autoria Fatal – o que se conhece como Nouvelle Vague varia de cineasta a cineasta. No que diz respeito a Godard, provém do incurso de um diretor que é formado pela crítica e articula a realização de filmes como um projeto de escrita, pautado em mais de um gênero e em um campo extenso de referências. No instante em que imprime a autoria, Godard deixa transparecer todos os nomes que a contêm, fazendo estampar as capas e os títulos dos livros que atravessam a nova vaga do cinema bem depois do desenrolar das técnicas, das guerras e dos manifestos de um só século.
Em História(s) do Cinema, fica mais evidente como o diretor lida com planos de coexistência no espaço e no tempo, entre diferentes linguagens, favorecido pelas fusões e recortes da imagem vídeo-cinemática – com a velocidade do cut e do insert, mais ralentado, das técnicas de sobreposição/superimpressão (veja-se a esse respeito o artigo de Cyril Neyrat sobre o episódio 3 da série aqui em debate). Se há a recorrência a Virgilio, autor épico relido com Broch, a presença de Ovidio estabelece outra face da literatura latina, marcando as mutações do gênero épico para Godard. A memória sempre conduz à montagem e não ao referendo da palavra primordial (como conceituaria Auerbach acerca das epopeias).
Máquina de escrever – não ao acaso, a ação datilográfica do próprio cineasta se destaca na série videográfica como presença paralela à sua dimensão de narrador/ metteur-en-scène – e corte historiográfico da literatura a contar da perspectiva do século XX, no seu final. Combinatória do heterogêneo “em que o mais antigo coexiste com o mais novo e os contrários se comunicam entre si” (Lopes, 2003, p. 46). Ou aquilo que já se encontra em Ovídio, em outro registro da literatura latina: “metamorfoses dos seres em formas novas, em oposição a um sentido de história”, como bem sumarizou a grande crítica e poeta portuguesa Silvina Rodrigues Lopes (ibid.).
Desde sua estreia, sob a perspectiva dos fins da década de 1950, Godard passa a trabalhar precisamente com o estilhaçamento dos signos de uma época nuclear, sinalizada pela posterioridade (pós-atômica) em relação a projetos até então atribuídos ao homem do progresso em consonância com a técnica universal e a posse partilhada da vida material. Há um sentido de testemunho quando se lê a experimentação de uma filmografia levada ao paroxismo da legenda Godard até o investimento no autorretrato (história de si) amplificado no interior do ateliê/usina/biblioteca em direção a uma história passível de ser lida como cultural, em outra acepção de montagem e colagem dos campos da arte e do conhecimento.
Em seu cinema, trava-se contato em diversas modulações do homem em seu horizonte de criação e técnica, sob a fragmentação dos mundos, a contar da mediação corporativa dos meios audiovisuais sob a produção ideológica da sociedade do espetáculo e do consumo (em que se lê a crescente midiatização da política). Com a inserção de tudo que se corrobora no fim do século XX – tal como Elogio do amor e Nossa música deixariam explicitado na perspectiva do novo milênio – acerca do mercado mundializado como imagem de mundo. Tudo se desenvolve como uma questão da vida e da imagem no interior da realização de cada um de seus filmes. Sob o compasso do fim da arte, uma sonda incessante se efetiva sobre o estado presente dos signos (como diria Foucault acerca dos elos entre pensamento e literatura, dentro de uma visada genealógica).
Tanto é assim que o evidente sentido de cronologia impresso em História(s) do cinema se faz acompanhar do pontilhismo – típico de um livro como The Waves/As ondas, de Virginia Woolf – com que liga a dor do século e o depoimento sobre si, quando faz o elo, no capítulo 3, entre seu surgimento com a Nouvelle Vague e a vaga narrativa de V. Woolf espraiada século adentro (aliás, a ensaísta Floris Delattre destaca, na narrativa citada da autora inglesa, o dado da consciência coletiva com a sinfonia de vozes regida pela forma do solilóquio). Um registro no feminino se faz acompanhar de um cortejo de rostos para os quais a voz do diretor se direciona como um testemunho/testamento irrecusável. Nesse momento, o narrador da série desfaz-se do timbre solene e espectral com que sublinha as imagens de indústria e guerra, até então majoritário, para revelar o tonus emocional de um relato.
Outra presença de Woolf se dá a perceber no talhe fundo deixado em sua fotografia, tornada fotograma da história cinemática do século, no campo da arte, assim como ocorre na filosofia, na política – tal como, também, apresentam-se os rostos de Weil, Arendt e Djamila Bouhired, revolucionária da libertação de Argélia, entre outros/outras. Os rostos afloram com todas as marcas, todos os conflitos e as rugas do tempo (as ilustrações da face de Defoe já tracejavam tal uso), ao contrário do make-up mortuário do cine-indústria (ou o filme como cosmética) da BELEZA FATAL (lida nos bastidores pelas starlets solitárias após o studio como “Você não veio me ver hoje”), incapaz de mirar o fundo mortal contido na imagem, no cinema e no século.
“Tomam-me como juiz, mas não sou senão a senhorita do arquivo”, diz o diretor em sua datilografia/arquigenealogia do texto-imagem contido no cinematógrafo, tomado como máquina operadora de projeções e retrospectivas. Ele, assim, alia-se ao seu polo feminino tanto agregador quanto producente de formas de convivência e colaborações criativas, tal como se dá ao lado de, por exemplo, Anne-Marie Miéville.
À maneira de Braudel, o cineasta sabe que na narrativa histórica ninguém retém o comando. Jean-Philippe Tessé, em estudo a respeito da serie godardiana, já apontava que “Braudel decupa a história como se decupa um plano (…) A história em sua globalidade (…) é uma profundidade de campo que se explora, como a câmera o tempo” (Tessé, 2007, p. 90). Ou senão Clio, de Péguy, induziria para Godard a imagem da História feita mulher por meio do movimento das ideias, das passagens de épocas em contato com a realidade viva dos diversos materiais em circulação e convergência, para além de uma perspectiva unificadora, central.
O cinema lê-se proustianamente, no tempo, de álbum a álbum. Da imagem à letra, em diferentes correspondências e semioesferas. De uma face a outra face. Woolf, na dor, iconiciza o trajeto e o trabalho da arte, sendo, simultaneamente, o rosto formado pela conjunção de pontos ressurgentes da infância e do feminino, tal como plasma The Waves. O tempo não para de recompor suas diferentes fases e abrir vias comunicantes, intempestivas, relativizadoras de uma linha contínua, cumulativa e progressiva das idades. Woolf Vaga Nova.
Revela-se, então, um legado em pontilhamento e partilha do que foi segregado no espaço e no tempo, na dimensão do solilóquio tão impressivo nas páginas de As ondas, operado por VW como técnica coral, distribuída em muitas vozes. De uma vida única (essa emblematizada por Virginia Woolf), assinalada pelo pioneirismo da literatura experimental e pela contingência cultural com que se vivem as paixões até o ponto da autodestruição, tudo se sumariza na fotografia reexibida por Godard. Assim, a imagem da escritora passa pela leitura crítica da técnica de reprodução – própria de um semiologista mediático – e se estampa, também, como reconfiguração poemática do inventário de figuras e palavras legadas pelo século, sob um foco de ressurgimento e insurgência em relação ao que se entende como história e a imagem que dela se sintetiza.
Enquanto o diretor tenta listar, no modo mais exaustivo as literaturas fundantes não apenas de uma época, a narratividade construída em História(s) do cinema advém do entrechoque dessas diversas menções, num procedimento mais próximo da perspectiva de um montador ou de uma senhorita do arquivo (como ele mesmo esclarece numa de suas boutades), de uma catalogadora, uma secretária responsável por notas, apontamentos, uma funcionária da estenodatilografia. Nesse ponto, seu cinema se vincula à sensibilidade e à operacionalidade criativas, grafadas no feminino, sejam aquelas contidas no corpus datilo-conceitual presente na filosofia de Avital Ronell, autora do título sintomático que é O livro do telefone, assim como na pauta citacional, fundada em anotações e recolha deambulatória de referências (caso da poética de Ana C. César), sem se falar na escrita-tatuagem de Kathy Acker, moldada sobre a apropriação indiscriminada de textos e imagens alheios, num campo inscritivo do qual o corpo não escapa.
A alusão a essas autoras possibilita frisar o propósito godardiano de não-juízo, da imparcialidade mecânica de um ditado (notação/datilografia), feito em detrimento do controle de um ponto de vista sobre a história da última passagem secular. Traça-se aí uma dimensão mais afeita ao plano do evento, às rotas transitáveis trilhadas em O Mediterrâneo (uma das matrizes historiográficas para Godard), pelas quais Braudel se atém aos limites franqueáveis (Braudel, 1966, p. 50) pelo oceano em suas diversificadas propagações espaciais e culturais. Aliás, uma definição da história evenemencial pode se extrair no prefácio do livro de Braudel quando ele recorre à agitação da superfície, produzida pelas ondas em seu andamento possante. Fluxos, fluidos, próprios de um espaço líquido (Braudel, 1966, p. 15) tornado condutor da dimensão cartográfica em que se engendra a aventura do historiador, tomado que está pela descoberta, pelas múltiplas direções propícias à análise e à analogia, pelo “movimento quase imperceptível da história” (Braudel, 1966, p. 27).
Referências Bibliográficas:
BRAUDEL, Fernand. La méditerranée et le monde méditerranéen à
l’époque de Philippe II. 2. ed. 2 vs. Paris: Armand Colin, 1966.
DELLATRE, Floris. Le roman psychologique de Virginia Woolf.
Paris: Vrin, 1932.
LOPES, Silvina Rodrigues. A inocência do devir. Lisboa: Vendaval,
2003
NEYRAT, Cyrill. “Tirs d’ailes”. Cahiers du cinéma, n. 625, jul./ago.,
p. 88-89, 2007
RONELL, Avital. The Telephone Book. Lincoln: University of
Nebraska Press, 1989.
TESSÉ, Jean-Philippe. “L’agité de l’histoire”. Cahiers du cinéma, n.
625, jul./ago., p. 90-91, 2007