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Há sessenta anos esperamos Godot

Escrita em francês em apenas quatro meses, no ano de 1949, Esperando Godot, a peça mais conhecida do escritor irlandês Samuel Beckett (1906-1989), estreou somente em 1953, no Théâtre de Babylone, em Paris.

Na época, Beckett ofereceu ao ator e diretor teatral parisiense Roger Blin duas peças suas: Eleutheria (1947) e Esperando Godot. Blin optou por montar a segunda, porque considerou que os custos de produção de Godot não seriam tão altos quanto os de Eleutheria, que precisava de um cenário móvel e dezessete atores em cena. Godot requeria apenas cinco atores e um cenário praticamente vazio, com uma arvorezinha ao fundo.

A peça estreou sob a direção e atuação de Roger Blin, que se tornou o grande parceiro teatral de Beckett. Ao final da primeira apresentação, a plateia aparentava estar perplexa. O que se havia passado no palco? Nada, como se percebe logo na primeira fala de Esperando Godot: “Estragon (desistindo de novo): Nada a fazer”. A propósito, “Nada a fazer” é uma frase que retorna regulamente à boca dos personagens.

O tema mais visível da peça é a espera: em dois atos, dois personagens, Estragon e Vladimir, esperam a chegada de Godot:

“Estragon: Lugar encantador. (Dá a volta, caminha em direção à boca de cena, junto à plateia). Esplêndido espetáculo. (Volta-se para Vladimir) Vamos embora.
Vladimir: A gente não pode.
Estragon: Por quê?
Vladimir: Estamos esperando Godot”.

Apesar da lentidão da peça – afinal, nada de extraordinário acontece, nem mesmo quando três outros personagens (Lucky, Pozzo e um menino) entram em cena –, Beckett considerava Godot “uma obra muito movimentada, um tipo de western”.

Desde a sua estreia, houve quem buscasse um deus oculto na peça, que estaria implícito no próprio nome Godot (God/ Deus); outros relacionaram sua trama ao absurdo da condição humana; outros ainda procuraram alusões que remetessem a um contexto histórico específico, o do pós-guerra. Para o crítico canadense Hugh Kenner, “a essência da peça é, para ser breve, uma experiência humana tão banal quanto há”.

Antes de Godot estrear no palco, foi feita uma leitura dela no rádio e, nessa ocasião, aproveitaram para perguntar a Beckett sobre a concepção da peça. Segundo Roger Blin, Beckett teria dito que “não sabia por que havia escrito Godot, a peça veio por si só. A única certeza que ele tinha é que as personagens usavam chapéu-coco”.

Na opinião do estudioso e tradutor de Beckett para a língua portuguesa, Fábio de Souza Andrade, entretanto, “[…] parece difícil negar que muito da experiência de Samuel Beckett ao longo da Segunda Guerra – na clandestinidade, tomando parte dos esforços da Resistência, ao sul da França ocupada, vivendo na expectativa aberta, diária, pelo fim do conflito – tenha se comunicado à angústia das personagens”. Numa das falas de Vladimir, essa situação de exilado se torna evidente: “Será que dormi, enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora? Amanhã, quando pensar que estou acordando o que direi desta jornada?”.

Depois de uma estreia difícil, muitas outras montagens, para todos os gostos, foram feitas: uma em especial chamou a atenção, pois foi feita num presídio nos Estados Unidos, com os próprios detentos atuando; outra, bem mais recentemente, na Sarajevo dividida e sitiada; e uma terceira durante o apartheid, só com negros no elenco, como destaca Fábio de Souza Andrade.

Se no início Godot exerceu fascínio apenas entre um grupo de intelectuais e “esnobes esclarecidos”, ao longo do tempo seu público foi se tornando cada vez mais amplo, atraindo espectadores que não estavam identificados com o “hermetismo da crítica bem-pensante”. A peça atingiu o grande público parisiense, o estrangeiro, o interiorano, como nos fala Roland Barthes. Além disso, Godot, que iniciou temporada com uma “graça triste e amarga”, tornou-se cômica, graças às suas diferentes montagens, como aponta o citado crítico francês.

“Mediante essa expansão progressiva da peça, o que resta de sua raça primeira?”, pergunta-se Roland Barthes. “Tudo”, ele mesmo responde, “Godot não abandonou nada de seu rigor intelectual, de seu poder de derrisão. É, como nos primeiros dias, uma peça sem complacência, uma peça que não bajula nenhum dos públicos que atinge; ela os adivinha, segue-os, ajudando-os, mas permanece o que ela é por essência: uma peça dura.”

Em 1987, o dramaturgo romeno Matéi Visniec, radicado na França, escreveu O último Godot, em homenagem à obra-prima de seu mestre Samuel Beckett. Para Visniec, a peça de Beckett, “hermética para um bom número de pessoas, ‘absurda’ para a maioria dos observadores do fenômeno literário, era para mim de uma clareza incrível, de um realismo cruel, de uma transparência divina. Lendo Esperando Godot compreendi quase tudo sobre a natureza humana, […]”.

O último Godot estreia pela primeira vez no Brasil, em Florianópolis, ainda neste semestre. O objetivo da montagem é celebrar os sessenta anos de Esperando Godot nos palcos. A peça está sendo montada por um grupo de alunos do curso de artes cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina, e o cenário será assinado pela artista plástica catarinense Letícia Cardoso, premiada internacionalmente.

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 Sobre Dirce Waltrick do Amarante

Professora do curso de artes cênicas da UFSC. Coorganizou e cotraduziu, com Sérgio Medeiros, De santos e sábios, uma antologia de textos estéticos e políticos de James Joyce (Iluminuras, 2012), e Cartas a Nora. Autora de As antenas do caracol: notas sobre literatura infanto juvenil e Pequena biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professores. É autora de Para ler ‘Finnegans wake’ de James Joyce (Iluminuras).