O verdadeiro terremoto do Haiti foi a sua própria história, agora evidenciada mundialmente pelo sinistro geológico. Porto Príncipe, sua capital, situa-se no departamento de Quest, um dos dez do país, que tem cerca de 9 milhões de habitantes e faz fronteira, na ilha Hispaniola, com a República Dominicana. Cedido pela Espanha à França em 1697, quando se chamava Saint-Dominique, suas terras – há muito inférteis – tornaram-no uma das mais ricas colônias das Américas. Produzia um dos melhores açúcares do mundo, batendo, no século XVIII, o Brasil em exportações nesse campo. Hoje, sua renda per capita é bastante menor que a do bairro de Higienópolis, em São Paulo: em média, um haitiano vive com dois reais ao dia. Como lembra Juan Jesús Aznárez, o Haiti é exemplo vivo da Lei do engenheiro aeroespacial americano (Edward) Murphy: qualquer situação, por pior que seja, está sujeita a agravamentos.
O que transformou o Haiti no país mais pobre das Américas? O processo ininterrupto de “colonização” (usurpação) não se findou, paradoxalmente, com a sua independência, em 1804. Inovadora e sui generis, foi a segunda do continente (a primeira foi a dos Estados Unidos, em 1776) e a primeira liderada exclusivamente por negros, que conquistaram sua liberdade em 1794 – ao contrário dos negros brasileiros, que foram “alforriados” quase cem anos depois.
O Haiti, disputado pela Espanha e pela França antes de sua independência, não obteve ao menos os benefícios secundários de uma colonização como a brasileira. Na verdade, sua independência política consistiu em um abandono de território. As plantações de cana-de-açúcar francesas, que fizeram a riqueza de Paris, haviam esgotado o solo quando Napoleão entregou a ilha à sua própria sorte. A República negra sofreu boicotes desde o seu início e tornou-se um “encrave negro”. Nunca um rei ou um presidente francês a visitou.
O sismo do dia 12 de janeiro, 35 vezes mais forte que a bomba atômica lançada sobre Hiroshima no final da Segunda Guerra, deu-se quando Colombo chegou à ilha em 1492 e iniciou a matança dos índios. As terras haitianas já eram parcialmente inférteis no começo do século XIX. Naquele momento, a jovem Revolução Industrial substituía, passo a passo, o trabalho humano pela máquina e a agricultura e o artesanato pela manufatura. Sem terras férteis, sem possibilidade de cultivar matérias-primas, a república negra seguiu à deriva, de crise política em crise política. O jovem capitalismo industrial, baseado igualmente na exploração dos escravos, radicalizou as relações de produção, adicionando a elas, então, o racismo e os conflitos raciais, um instrumento econômico que perpetuou os negros como seres inferiores – mesmo depois de suas alforrias. Os conflitos raciais entre brancos e mulatos e os negros (a maioria do país) inviabilizaram o Haiti. O país fechou-se em si mesmo, cumprindo sua vocação de ilha. Fechou-se nos conflitos raciais legados pelos colonizadores franceses e espanhóis, fechou-se no passado, em sua impotência, em sua psique tribal reprimida, na disputa entre o catolicismo e o vodu.
Sua localização geográfica não o ajuda: situa-se entre a Venezuela e os Estados Unidos, ao lado de Cuba e Porto Rico – este um território autônomo americano. É um lugar de passagem. E, com a Doutrina Monroe (de James Monroe, lançada em 1823, “A América é dos americanos”), tornou-se “propriedade” implícita dos Estados Unidos. Uma viagem de avião de Porto Princípe a Miami não passa de três horas. Da segunda metade do século XIX ao começo do século XX, dos 20 governantes que se alternaram no poder, 16 foram depostos e/ou assassinados.
No século XX, o Haiti experimentou uma sequência ainda mais alucinada de crises políticas, a confirmar que o colonizador não lhe deixou – como herança – os princípios iluministas da Revolução Francesa, tampouco um estado de direito, com Executivo, Judiciário e Legislativo, mesmo que incipientes, legando-lhe apenas a deterioração do passado tribal africano. A República negra de 1804, que se inspirou nos ideais Liberté, Egalité, Fraternité, não soube, entretanto, fazê-los valer na prática. Em 1902, houve um guerra civil. De 1902 a 1908, a ditadura de Nord Alexis. De 1915 a 1934 o país foi ocupado pelos Estados Unidos (a mando inicial de seu presidente Woodrow Wilson), sob o pretexto de que seu governo não havia pago uma dívida contraída junto ao City Bank. E, ainda, sob o argumento que as corporações estado-unidenses, lá instaladas, estavam sob risco, impondo-se a pacificação das cidades em permanente convulsão. Por fim e sobretudo, para revogar o artigo da Constituição que proibia a venda de cana-de-açúcar aos estrangeiros. A riqueza do Haiti (o acúçar) foi o germe de sua destruição, à falta de uma sociedade civil minimamente organizada.
Os civis ocuparam o poder de 1934 a 1957, como sempre, de crise em crise . Em 1957, François Duvalier – o Papa Doc – elegeu-se presidente e, com o apoio dos americanos, sob o signo da Guerra Fria e da Revolução Cubana de 1958, declarou-se presidente vitalício em 1964. Papa Doc implantou uma ditadura feroz, baseada no terror dos “tontons macoutes” (bichos-papões) e – ressignificando a origem africana às avessas – no vodu. Sua principal obra foi a de exterminar o pouco de sociedade civil que ainda havia no país e também a de perseguir a Igreja Católica que, àquela altura, ensaiva os primeiros passos da Teologia da Libertação na América Latina, embora empreende-se campanha permanente contra o vodu. Papa Doc, um Napoleão de hospício e presídio, desflorestou o país na fronteira com a República Dominicana para ter os inimigos sob sua mira. Haitianos e dominicanos se odeiam, na ilha, em Miami ou em Nova York, para onde inúmeros deles imigraram. O terremoto é fruto também de política predatória – crônica – em relação ao meio ambiente. O país perdeu 98% de suas florestas. Nada se pode cobrar, entretanto: ele nunca existiu de fato.
François Duvalier foi sucedido pelo seu filho Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, em 1971. Baby Doc permanceu no poder até 1986, quando os americanos o abandonaram, três anos antes da queda do Muro de Berlim. A França lhe deu asilo político. A ditadura dos Doc fez o país regredir 200 anos, deixando-o em estado colonial, agora, em plena terceira Revolução Industrial, e sem o açúçar, seu ouro branco. Leslie Manigat governou o Haiti de fevereiro a junho de 1988, depois de ele ser controlado pelo general Henri Namphy, de veia doquiana, por ano e meio como sucessor de Jean-Claude. Seguiram-se golpes de Estado, liderados pelos doquistas, até que o padre de esquerda Jean-Bertrand Aristide elegeu-se em 1990, renovando o sonho de 1804, o sonho da república negra dos ex-escravos Toussaint Louverture e Jacques Dessalines – pais da independência.
As forças doquianas ou as forças que Doc encarnou – autoritárias – permaneciam vivas e Aristide foi deposto, em 1991, pelo general Raul Cedras – a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA), como sempre, impuseram “sanções econômicas” ao país. No fundo, os Estados Unidos e a Europa foram, ao longo do século XX, esvaziando qualquer possibilidade de nação para o Haiti e as sanções econômicas são mais uma prova disso. A imigração tornou-se uma rotina, acentuada pela crise de Aristide/Cedras. O Conselho de Segurança da ONU decretou, em 1994, bloqueio total ao país. Uma junta militar empossou Émile Jonassaint, o que bastou para os americanos intesificarem as sanções. Em 1994 Aristide foi reempossado por uma força militar norte-americana. Em 2004 foi deposto, por corrupção – endêmica entre as autoridades. Para controlar a situação tensa, a ONU aprovou o envio de uma força de mantenedores de paz, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah). Liderada pelo Brasil, a força tem atualmente 7 mil homens, entre eles 1.266 brasileiros. Além desses neopiratas chamados e/ou abrigados em ONGs. Na verdade, o Caribe deveria se transformar em uma União aos moldes da Europeia e/ou até, mais ambiciosamente, em uma União da América Central e Caribe, para que seus países escapem do destino de “pequenos países impotentes” (Eric Hobsbawm), margens de manobra geopolítica.
Sob o governo do Minustah e de René Preval (eleito) deu-se o terremoto físico, há tanto experimentado continuamente na vida social. Como observa Aznárez, com razão, a história do Haiti é uma história de excessos, desde o chicote colonial francês até os dias de hoje. Esse país, entretanto, legou à humanidade um pintor do nível de Hector Hyppolite (1894-1948), descoberto pelo poeta francês André Breton (1896-1966), líder do movimento surrealista, que morou na ilha em 1944, e poetas de primeira plana como René Depestre (n. 1926). Depestre afirma que os processos coloniais estão mais do que vivos. Acrescenta que houve uma espécie de descolonização “institucional” e uma descolonização das relações internacionais, em nível protocolar, sem efetiva descolonização ideológica. O Haiti é um dos produtos mais cruéis desses processos coloniais europeus (e americanos), sob a etiqueta, agora, “globalização”: ela não incluiu, como aduz Depestre, a totalidade dos valores das diversas civilizações e culturas, mas, ao contrário, impôs um padrão único, causando o fundamentalismo, o terrorismo, a pobreza etc. O Haiti é a vítima da hora. Ele será, no entanto, palco de áspera disputa geopolítica, na qual o que menos importa é sua população, confirmando a Lei de Murphy.