Toca o telefone, atendo e um tal de sr. Herrero me pergunta se posso recebê-lo. Explica que é representante de editoras espanholas e que gostaria de me conhecer pessoalmente.
Estamos em 1982, três anos após a constituição da minha empresa. Como todo bom vendedor, o sr. Herrero é simpático e comunicativo, vai apresentando os catálogos de dezenas de editoras. Oferece abertura de crédito imediato, 180 dias para pagar sem obrigação de assinar um contrato e/ou promissórias e acrescenta que, se tiver qualquer inconveniente no meio do caminho, tudo bem, o prazo pode ser estendido. Fácil, extremamente fácil. Nunca esquecerei. Ele escrevia só com caneta verde e se autoatribuía o título nobiliário de “Conde de Tinta Verde”.
Luz verde, portanto, para ampliar possibilidades de negócio e um conselho: “Vai para a Espanha. Tem uma feira profissional em setembro. O pessoal precisa conhecer o teu trabalho”.
Os vinte metros quadrados da Letraviva não cabiam em si. Abria-se um novo horizonte.
Resolvi então seguir o sábio conselho de um tipo de profissional já extinto e, visitando as principais feiras internacionais, conheci pessoalmente os proprietários da grande maioria das editoras internacionais num tempo em que não existiam ainda os chamados grupos editoriais.
Foi durante a segunda metade da década de 1980 que os conglomerados multinacionais em formação entenderam que se deviam transformar em grupos de comunicação nos quais as editoras seriam apenas uma parte do sistema de formação de opinião, para garantir a sustentabilidade de um negócio global de consumo de conteúdos a cada dia mais complexo. Em última instância, uma tentativa de sobrevivência perante as novas modalidades de aquisição de produtos, bens e serviços e a (des)organização da economia mundial, resultado de certo fanatismo neoliberal que atualmente está à procura de outro formato, fruto do advento das novas tecnologias desenvolvidas exponencialmente a partir do início do século 21.
A política comercial de terra arrasada, adotada por alguns dos grupos aludidos, tende até hoje a acabar com a livre concorrência e resulta, pela desigualdade de forças, na destruição de milhares de pequenas e médias empresas mundo afora e no Brasil, sendo uma ínfima parte aquelas que conseguem reinventar-se.
Aquela incipiente formação de grupos derivou num processo de hiperconcentração de capitais no setor editorial, assim como nos mais diversos setores da economia mundial e chegou a níveis tais, que acabou provocando um efeito devastador para a capilaridade do mercado e a bibliodiversidade.
O Brasil, mercado poderoso, foi postergado nesse perverso processo de inclusão devido a barreiras linguísticas e culturais que todo estrangeiro, seja pessoa física ou jurídica, precisa decodificar. Já dizia meu professor de contabilidade no ensino médio: “O capital não tem nacionalidade!!”.
Demorei anos para entender esse conceito, como também demorei para descobrir o princípio de Pareto, conhecido como 80/20. Oitenta por cento das consequências advêm de vinte por cento das causas. Portanto, vinte por cento dos produtos respondem por 80 por cento do faturamento. Vinte por cento das empresas controlam oitenta por cento do mercado. Vinte por cento das pessoas concentram oitenta por cento das riquezas, e por aí vai. Os tempos mudaram radicalmente. Tudo indica em 2015 que Pareto em 1906 e o Conde de Tinta Verde em 1982 foram otimistas demais. Aquele 80/20 válido até o início do século XXI precisa ser revisto, já que na maioria dos setores da economia essa percentagem vem se afunilando de forma alarmante. Hoje em dia, cinco grandes grupos editoriais controlam quase 50% da produção e do faturamento global. O mercado brasileiro, mesmo com paupérrimos índices de leitura e de alfabetização plena, tem ainda uma fortaleza. Seu principal cliente é o Estado. Seja no âmbito federal, estadual e/ou municipal, o poder público transformou-se no melhor cliente e chegou a concentrar a compra de 40% de todos os livros produzidos no país, alcançando 29% do faturamento do setor.
Em 2014, a pesquisa Produção e vendas do setor editorial brasileiro – CBL/SNEL/FIPE aponta que o Poder Público comprou 31,60% dos exemplares produzidos por editoras nacionais, representando 22,90% do faturamento total do mercado. Embarcaram nessa oportunidade tanto grandes conglomerados como pequenas e médias editoras, algumas delas constituídas especialmente para atender tamanha demanda.
Para variar, voltamos a nos encontrar com Vilfredo Pareto na análise minuciosa dos resultados de compra do principal programa do Governo Federal, o PNLD – Plano Nacional do Livro Didático, cujos números referentes às compras de 2014 mostram claramente que, de 25 empresas participantes, apenas cinco produzem quase 80% do total de livros adquiridos para abastecer a rede nacional de escolas públicas de ensino fundamental.
Diga-se de passagem e para melhor ilustrar o panorama: existem no Brasil em torno de 800 editoras em atividade, sendo que aproximadamente 500 delas lançaram pelo menos cinco títulos, produzindo ao todo um mínimo de 5 mil exemplares em um ano (Unesco Standard 2010). No varejo brasileiro, a maior rede de livrarias controla 22% desse mercado, e o número de livrarias não para de diminuir, segundo pesquisa anual da ANL (Associação Nacional de Livrarias).
Quanto à publicação de autores nacionais e novamente mencionando a pesquisa Produção e vendas do setor brasileiro de 2014, as vendas de livros de autores locais chegaram a 475.184.837 exemplares, enquanto a venda de traduções atingiu 26.186.676. Mais um dado: Títulos de autores brasileiros publicados: 54.911. Títulos traduzidos: 5.918.
Para concluir, entendo que o processo de hiperconcentração de capitais é um fenômeno global que deve ser lido como uma etapa ou um ciclo macroeconômico, porém não necessariamente como uma conspiração contra os mais fracos. Cada empresa ou conglomerado protagonista desta dinâmica, seja do tamanho que for, luta com as armas de que dispõe, defende e tenta impor os seus interesses. O restante é a mais pura e fabulosa ficção. No caso da indústria editorial, embora trate com um produto cultural e, portanto, simbolicamente diferenciado, o desafio é vender a maior quantidade de livros com os menores preços possíveis. Ou seja, atingir uma economia de escala.
Não ocorrendo o ato de compra e venda mercantil na intensidade apropriada, qualquer que seja o suporte do seu produto, a atividade perde sentido e se inviabiliza não somente para o editor e para o livreiro. Também para o autor e todos aqueles que integram o processo produtivo. Pelos motivos expostos afirmo, talvez de forma cruel e politicamente incorreta, que o melhor livro é o livro vendido, independentemente da nacionalidade do autor e da origem do capital. Sim, inegavelmente esse processo traz consequências previsíveis, como a destruição de milhares de pequenas e médias empresas, dentre as quais uma ínfima percentagem atualmente consegue reinventar-se.
As grandes corporações não estão a salvo e tentam hoje alternativas desesperadas de sobrevivência sob o manto de um discurso ufanista, que nada mais faz do que ocultar a realidade incontestável de um sistema selvagem de relações econômicas que naufraga inexoravelmente caso não tenha um mínimo de regulação. Para fortalecer toda a cadeia de produção, mediação e comercialização, torna-se necessária a criação de mecanismos e normas que viabilizem a livre circulação do livro, a proteção do direito autoral e a livre concorrência em substituição da atual concorrência predatória. Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 40/2015, de autoria da senadora Fátima Bezerra, que propõe a instituição de uma Política Nacional do Livro e regulação de preços. Por outra parte, o PNLL – Plano Nacional do Livro e Leitura foi oficialmente instituído pela Portaria Interministerial nº 1.442, de 10 de agosto de 2006, assinada pelos Ministros da Cultura e da Educação. Em 1º de setembro de 2011, o Plano foi regulamentado por meio do Decreto nº 7.559.
Estamos em 2015, certo? Ainda o PNLL não tem uma lei federal que o incorpore à política de estado. Continua pregando no deserto e mendigando verbas para executar ações isoladas de promoção do livro e da leitura. Cabe às empresas e empreendedores nacionais do setor editorial desenvolverem ações em defesa dos seus interesses de classe. Pressionar, sim, é isso mesmo, pressionar o legislativo e o executivo para agilizar a votação das leis que organizem e regulem o setor, ao mesmo tempo que precisam continuar aprimorando sua capacidade para descobrir talentos, nichos de mercado ainda não ocupados e, lembrando Esopo, preservar a agilidade da lebre e a persistência da tartaruga.