Em 19 de agosto, o calendário registrou o nascimento de um dos grandes do Brasil, e o primeiro diplomata brasileiro em Washington – no mesmo período em que um indivíduo sem qualificação desejava ocupar o posto de embaixador nos Estados Unidos. Um escarro na memória do país.
Outra e melhor memória está, talvez, nos muitos artigos e reportagens publicados quando se completaram os cem anos de sua morte. Ainda que em quase todas as matérias o destaque tenha sido o papel do homem liberal, do personagem olímpico, ilustrado, de “Quincas, o belo”. Nas breves menções às ideias mais radicais de Nabuco, houve um pulo rápido para o conceito de “homem complexo”, o que poderia ser manipulado à direita e à esquerda, como as infindas interpretações de um texto cabalístico.
Entre os artigos comemorativos, num esforço máximo de não difamar uma vez mais a história, pôde-se ver um belo perfil do abolicionista nascido no Recife. Mas à maneira de apresentação de um ator de telenovela.
As mulheres não resistiam a Nabuco. Aliás, os homens também não […]. Já o abolicionismo foi uma história de homens tomados de paixão por uma causa justa e, entre eles, nenhum mais apaixonado do que o jovem pernambucano de família ilustre, pai, avô e bisavô senadores do Império, com muito berço e quase nenhum dinheiro, que se tornou o que de mais parecido poderia existir no século XIX com uma celebridade ao estilo contemporâneo, aclamado, paparicado e adorado. [Nabuco] era assumidamente metrossexual, ou, como se dizia no século XIX, um dândi, o tipo masculino preocupado com a aparência e sensível a modismos.
Note-se que as coisas mais graves foram escritas assim, entre amenidades e atualizações que vulgarizam ou quase difamam. Em todo caso, não é justo que ele se destaque junto ao esquecimento de homens tão fundamentais quanto Luiz Gama, André Rebouças, José do Patrocínio, José Mariano. Homens talvez menos belos e apurados no vestir, mas cheios de amor e entrega absoluta à igualdade das gentes. Pior: dando a entender que a abolição formal da escravatura se realizou pelas mãos delicadas e puras do homem que despertava o furor feminino.
No entanto, o perfil panegírico, ou uma atualização da grandeza de Nabuco não exigiria tais anestesias desviantes. Ele, as suas ideias, o seu pensamento radical, a sua visão de futuro, a percepção aguda do Brasil até hoje não superada, está no que escreveu: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”.
Quem anda pelo interior do Brasil, que muitos chamam de “Brasil profundo”, quem vê as pacientíssimas filas de doentes sob a chuva nas cidades, sabe o quanto Nabuco estava certo: “Acabar com a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão”.
Quem vê a quantidade de negros, mais ou menos negros e mestiços nos presídios, sabe. A obra da escravaria não acabou: “A emancipação não significa tão somente o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação de dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor”.
Em Joaquim Nabuco se integram em um só corpo a ética e a estética. Mas isso não está exatamente no perfil físico do “belo Quincas” de 1,86 m. Está em linhas lapidares em que o pensamento dá um salto, ilumina como um raio uma situação que todos julgavam conhecida, mas que se vê concreta pela primeira vez quando escrita. A divisão reducionista que dá aos ficcionistas o grau único de escritores, em Nabuco, comete o seu maior erro: “O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber”.
Esse desertor da sua casta, da sua classe, da sua raça, como o percebia Gilberto Freyre, fez o diagnóstico do Brasil que continua urgente, cem anos depois. Pois continuamos sem reforma agrária e sem o fim da escravaria, nos campos, nas cidades. Para esse verdadeiro Quincas, nada mais próprio que o seu derradeiro pedido ao médico: “Doutor, pareço estar perdendo a consciência… Tudo, menos isso!”
Sorte nossa que não a perdeu. Sua consciência ficou nas linhas, no traço da criança de oito anos que nunca esqueceu um escravo fugido no engenho Massangana. Mais que belo, Quincas ficou eterno.