Um clássico infantil está dando dores de cabeça ao alto escalão do governo. Tentou-se, impensadamente, baní-lo das bibliotecas escolares, sobretudo das públicas. Essa inesperada censura, apenas anunciada, não foi levada avante porque o Ministério da Educação recuou diante de uma avalanche de protestos de leitores, educadores, intelectuais, artistas, etc. Pergunta-se agora: o que estaria havendo nos bastidores cada vez mais sombrios do Conselho Nacional de Educação? No dia 1 de setembro de 2010, a professora Nilma Lino Gomes, funcionária da UFMG e conselheira da Secretaria de Afabetização e Diversidade do MEC, acolhendo reclamação de Antônio Gomes da Costa Neto, Técnico em Gestão Educacional da Secretaria do Estado da Educação do Distrito Federal e mestrando em Educação na UnB (veja só!), decidiu que o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, deveria ser excluído da lista de livros do Programa Nacional Biblioteca da Escola. Com isso, as crianças das escolas públicas não teriam mais acesso a essa obra de Lobato, considerada um clássico da literatura nacional e que, sabidamente, formou milhões de leitores, desde a sua publicação. O motivo dessa censura “abortada” é a alegação de que a obra teria conteúdo racista. Em uma frase pouco esclarecedora, Nilma Gomes resume o fundamento do pedido do “censor” assim: “a crítica realizada pelo requerente foca de maneira mais específica a personagem feminina e negra Tia Nastácia e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas. Estes fazem menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano, que se repete em vários trechos do livro analisado.” A censura ao livro de Lobato é resultado da leitura cega ou ligeira que, sobretudo hoje, se faz de sua obra, considerada monumento literário. Leitura essa que resiste em tratar das ideias paradoxais contidas nos livros do escritor, no tocante à raça, cultura etc. Depois dessa tentativa de censura inaceitável, instalou-se, portanto, uma briga do “bem contra o mal” dentro da obra de Lobato, quando, na verdade, essas duas “forças” aparentemente opostas, se é possível dizer dessa forma, são inerentes aos textos do criador do Sítio do Picapau Amarelo, não podendo ser extirpadas deles. Desse modo, se por um lado tia Nastácia é “a negra beiçuda e ignorante”, como escreve o autor, por outro lado são suas histórias que Lobato destaca em Histórias de Tia Nastácia.
Em Caçadas de Pedrinho, para citar outro exemplo do paradoxo em questão, enquanto Dona Benta cai sentada de susto com a notícia da caçada da onça, é tia Nastácia, “mais corajosa”, que se aproxima do bicho. Quanto ao fato de tia Nastácia “trepar” como “uma macaca de carvão”, há que se recordar que, ainda hoje, quando vemos uma criança subindo em árvore, ou escalando os brinquedos de um parque, costumamos dizer que ela se parece com uma “macaquinha”. Certas expressões tipicamente populares dão, de fato, sabor brasileiro à obra de Lobato, e revelam tanto uma opção literária quanto uma visão de mundo, que é a de uma época, mais que do autor, exclusivamente. Isso não o isenta de responsabilidade pelo que transcreve ou recria dessas fontes populares, mas também não se deve por isso condená-lo, como se cada dito popular estivesse na obra para veicular exclusivamente racismos e preconceitos. Esse tipo de leitura anacrônica e intolerante é inaceitável.
No final do livro que está no centro da polêmica, tia Nastácia toma o lugar de Dona Benta no “carrinho” que esta usava para excursionar pelo sítio, numa demonstração de alternância “natural” de poder, embora, mesmo assim, tia Nastácia precise reafirmar (e convicção para isso não lhe falta) a igualdade de condições entre negros e brancos: “ – Tenha paciência – dizia a boa criatura. – Agora chegou a minha vez. Negro também é gente, Sinhá …”.
Convém lembrar também que, em Caçadas de Pedrinho, tanto Dona Benta quanto tia Nastácia são seguidamente chamadas de “velhas”, adjetivo muito usado na época e que não tem nenhuma conotação pejorativa, como se verifica analisando a obra. Lemos também, no mesmo livro, que “Na hora em que a onça aparece, até em pau-de-sebo um aleijado é capaz de subir.” Em tempos de posições “politicamente corretas”, essa frase também pode soar preconceituosa, mas um leitor mais “atento” sabe que Lobato falava lá da primeira metade do século XX e visava escrever uma frase de cunho humorístico, dentro do universo brejeiro de determinado falar popular. Quanto às “feras africanas” e ao “universo africano”, mencionados no parecer da ilustre professora, confesso não compreender onde está o problema de Pedrinho desejar morar na África e tampouco percebo nisso uma imagem “estereotipada” do continente africano. Pedrinho, de fato, queria caçar “leões, tigres, rinocerontes, elefantes, panteras, e queixava-se a Dona Benta (…) da pobreza do Brasil a respeito das feras. Chegou a propor-lhe que vendesse o sítio para comprar outro bem no centro de Uganda, que é a região mais rica em leões.” Já as crianças do sítio, essas, sim, são “selvagens”, mais do que as feras africanas: “os meninos do sítio de Dona Benta mataram-na [a onça] a tiros e facadas e espetadas, e depois a arrastaram com cipós até lá, ao terreiro.” Há aí um exagero típico das aventuras fantasiosas, as quais passam facilmente do maravilhoso ao pesadelo, procedimento que encontramos em narrativas populares e literárias de todo o mundo, e que os gibis de ontem e de hoje também utilizam, para não mencionar o cinema de Hollywood.
Eugenia em Monteiro Lobato
O fato é que é preciso estudar o contexto histórico da obra de Monteiro e estudar as expressões da época, sem ignorar, é claro, as tomadas de posição do autor, que nem sempre são as que queríamos que ele assumisse em seus livros. Lobato fez parte de uma sociedade eugenista, por exemplo, da qual participaram outros grandes nomes do período, e alguns são celebrados ainda hoje. A historiadora Pietra Diwan traz esse tema à tona em seu livro “Raça Pura”, que se tornou muito atual, em vista o que se disse acima. Outro trabalho esclarecedor a ser mencionado é “O cosmopolitismo do pobre”, de Silviano Santiago, onde, num belo ensaio, o autor expõe alguns dos paradoxos de Lobato, numa leitura sem compromissos com a “moral pedagógica”. Quanto aos aspectos eugenistas da obra de Lobato, dos quais muitos críticos costumam se esquivar em suas discussões sobre o grande escritor, lembro que, num ensaio intitulado Educação após Auschwitz, o filósofo alemão Theodor Adorno refere-se a um determinado crítico que, ao falar sobre a peça “Mortos sem sepultura”, do escritor e filósofo francês Jean Paul Sartre, procurou se “subtrair ao confronto com o horror” de que a peça tratava, torcendo a questão como se devêssemos falar de algo mais nobre do que o próprio horror. O perigo desse tipo de crítica, segundo Adorno, é não permitir sequer o contato com determinadas questões, “rejeitando até mesmo quem apenas as menciona”, como se, ao fazê-las sem rodeios fosse assumir responsabilidade sobre os fatos, afastando a culpa de quem realmente a detém. A tentativa de transformar a crítica em passaporte moral pode, isso sim, produzir “rancores raivosos psicologicamente contrários à sua destinação original”, para retomar Adorno. Outra questão preocupante que emergiu desse parecer foi o fato de a professora ter censurado o livro, sobretudo, como já mencionei, para as crianças das escolas públicas. Isso gera um outro preconceito e, infelizmente, alimenta essa dicotomia entre crianças da escola pública e crianças da rede privada, que é uma prática deformadora e corrente nos nossos cursos de pedagogia.
Voltando ao livro Caçadas de Pedrinho, pergunto-me se a verdadeira razão da censura (a razão oculta, inconsciente) não teria sido as passagens nas quais Lobato faz uma crítica feroz à paralisia do povo brasileiro e à tendência do governo (de todas as épocas) a privilegiar assuntos irrelevantes ou que não lhe dizem respeito, em detrimento das questões realmente urgentes.
Sabe-se que, em Caçadas de Pedrinho (obra publicada em 1924 e, em segunda edição, em 1933, com acréscimos ao texto), Lobato ironiza o torpor do povo brasileiro, que só se mostra interessado em temas secundários, como, por exemplo, “a fuga de um rinoceronte do circo”. Cito Lobato: “´UM RINOCERONTE INTERNA-SE NAS MATAS BRASILEIRAS’, era o título da notícia que vinha em letras graúdas em todos os jornais. Durante um mês ninguém cuidou de mais nada.”
Além disso, o escritor denuncia a “incompetência do aparato governamental” para resolver até mesmo um problema que não lhe concerne: “Fazia dois meses que o governo se preocupava seriamente com o caso do rinoceronte fugido, havendo organizado o belo Departamento Nacional de Caça ao Rinoceronte, com um importante chefe geral de serviço, que ganhava três contos por mês e mais doze auxiliares com um conto e seiscentos cada um, afora grande número de datilógrafos e ‘encostados'”. Lobato também não esquece de delatar as obras onerosas e inúteis construídas pelo governo: “A linha telefônica foi construída com todo o luxo, como é de costume nas obras do governo (…). Era a linha mais curta do mundo: com cem metros de comprimento e dois postes apenas, um no terreiro da casa e outro no acampamento dos caçadores.”
Mas, antes de transformar a professora Nilma Gomes em bode expiatório, convém verificar, se possível, os pareceres de outros tantos conselheiros do país, que atuam em diferentes áreas país afora. Perceber-se-á talvez que, como fala Zygmunt Bauman, “numa burocracia, as preocupações morais dos funcionários são afastadas do enfoque na situação angustiosa dos objetos da ação. São forçosamente desviadas em outra direção – a tarefa a realizar e a excelência com a qual é realizada. Não importa tanto como passam e se sentem os objetos da ação.” Ou, como diria um personagem detetive, X B2, do mencionado livro de Lobato: “—não discuta os nossos processos, menina impertinente – disse com cara feia, o detetive X B2. – O governo sabe o que faz, torno a dizer.” Talvez valesse a pena a professora Nilma e o reclamante Antônio Gomes da Costa Neto voltarem às páginas de Caçadas de Pedrinho. Poderiam, quem sabe, se valerem com proveito do seguinte conselho de Narizinho: “As grandes coisas devem ser bem pensadas e não podem ser decididas assim, do pé para a mão”.
* Ensaísta e dramaturga, traduziu Contos de Ionesco para crianças (Martins Fontes) e publicou Para ler Finnegans Wake de James Joyce (Iluminuras); é coeditora do site de arte e cultura www.centopeia.net.