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Lucrécio e Christian Prigent – a partilha do tempo

O poeta contemporâneo Christian Prigent, em uma aproximação com a psicanálise, revisita o conceito lacaniano do real. Jacques Lacan, no seminário R.S.I, diz que só podemos conceber o real como “o expulso do sentido”[1] , ou seja, “aquilo que é radicalmente perdido, excluído do simbólico”[2].  Real enquanto aversão do sentido e não pertencente ao mundo exterior, podemos ainda dizer. Prigent acrescenta que o real começa lá onde cessa o sentido comumente socializado. O real, então, não é o mundo e não há a menor esperança de alcançar o real pela representação, pois ele escreve o que é estritamente impensável. O lugar da poesia, nessa perspectiva, está mais do lado do vazio do que do pleno, e se mostra como lugar “escavado do espaço mais do que espaço visível”; um lugar que se apresenta “como fuga das significações” contrapondo-se aos dados positiváveis.

Prigent, em consonância com o poeta latino Lucrécio, escreve: “Eu sopro em versos alguma coisa do impossível. (…) O sopro fecundante retoma vigor”[3] . Há uma exigência de poesia, portanto. Exigência que faz com que os poetas trabalhem com o real, construindo equivalentes “verbais, sonorizados, ritmados”[4] . O ritmo, o sopro e o som, na compreensão de Prigent terão, portanto, uma importância fundamental para nos deixar mais perto da concepção do real.

O ritmo, seguindo o pensamento de Prigent, é ‘o modo de aparição na língua (…) do real ausente de todo fechamento estabilizado do som e do sentido’ [5] . O ritmo também implica algo da repetição e da pulsão, e neste movimento que o poeta impõe à sua própria escrita, ele se defronta muitas vezes com um vazio que o próprio movimento produz. Ouïssance [6] é o nome dado por Prigent a esse movimento da língua ritmada e sonorizada [7] . E o poeta, então, vai descobrir, com a sua experiência e trabalho com a língua, um “ponto de poesia” [8] a partir do qual, na tensão da escrita, ele possa simbolizar o impossível da estrutura do real.

No poema de Prigent “Lucrèce à la fenêtre”, o real é parte fundamental. O poema recoloca Lucrécio em nossa época. O poeta latino “vem à janela” e se dirige aos homens do futuro. A janela do tempo nos convoca a uma nova reflexão da poesia a partir do conceito do real. O poema é escrito em francês, mas também tem versos em latim muitas vezes retirados do poema De Rerum Natura de Lucrécio (traduzidos para o francês por Prigent). Logo no início, Prigent põe a falar Lucrécio, em uma partilha do tempo:

(…) homens do futuro, salve!
2
Eu disse: eu vejo as coisas se fazendo em todo o campo do vazio.
Eu vi o real se fazer no vazio, eu vi o real
esvaziar os nomes da língua.
Eu vi o vazio dos nomes face ao movimento de engendramento
das coisas.[9]

Os versos apresentam o real e ao mesmo tempo introduzem as questões pertinentes ao poeta latino Lucrécio, a saber, as coisas e o vazio. Jacques Lacan, em sua reflexão sobre as coisas e o das Ding (a Coisa) freudiano, também faz algumas pontuações interessantes. O psicanalista cria o neologismo moterialisme [10] para dar conta destes temas. Lacan trabalha com as palavras a partir de uma materialidade, levando em conta as coisas. O das Ding também esclarece algo a respeito da concretude das coisas, ainda nos indicando um caminho a seguir. No seminário A ética da psicanálise, Lacan recupera esse termo freudiano e diz que, em francês, diferentemente do alemão que apresenta dois termos para designar a coisa – das Ding e die Sache, “só temos uma palavra, a palavra chose, derivando do latim causa (que também significa princípio e origem)” . [11]

Esta perspectiva moterialista /materialista (moterialiste), introduzida por Lacan, permite também abordar o conceito do real a partir de uma res a ser enunciada. A mesma res que ecoa nas ‘letras’ de Francis Ponge, evocadas pelo psicanalista no seminário O saber do psicanalista. A res que se reporta à coisa, à propriedade, àquilo que exprime o que existe. “Escrevam R.E.S.O.N Escrevam! Concedam-me esse prazer” [12], diz Lacan. O que ressoa nessa grafia pongiana? Será que o que ressoa é a origem da res, daquilo que a realidade é feita? Serão ‘os princípios das coisas’?, indagaria Lucrécio.

Então, Lacan parece evocar Ponge com sua formulação, para também alcançar o ponto do impossível da linguagem, a saber, o real. Há algo mais além nessa interrogação lógica: R.E.S.O.N. E a razão das coisas, o que é ela “senão mais exatamente a réson, a ressonância da fala estendida, da lira estendida ao extremo” [13]. Ponge, nas palavras de Jean-Marie Gleize, é um “teórico da ‘réson’, r, é, s, o, n, ele faz ressoar o logos, linguagem e razão”. [14] Cabe aqui uma pequena divagação pongiana. Para Ponge, os poetas são “os embaixadores do mundo mudo. Enquanto tais, balbuciam, murmuram, afundam na noite do logos – até que, enfim, se encontrem no nível das RAÍZES, onde se confundem as coisas e as formulações”. [15]

Em outro momento do poema de Prigent, que recupero agora, destacamos os versos que falam da proximidade do real com o texto de Lucrécio. Cito:

Homens do futuro, traduzam meu título:
De rerum natura = Do Real (do Inomeável)
(…) Homens de hoje, o que é o real?
Eu disse: rerum natura = começo, engendramento, vazio, movimento.
Não: às coisas feitas. Mas: as coisas em via de nascer. A natureza criadora .[16]

No movimento de engendramento das coisas, o real se mostra como material verbal, real da fonação, “real da escrita detalhada, desossada, em um infatigável labor do extremo da língua”[17] : a materialidade mesma do poema.

Com esta partilha do tempo que me proponho a refletir neste trabalho, Lucrécio apresenta uma concepção de poesia que ressoa também nos poetas contemporâneos. Para ele, a poesia é:

uma arte da linguagem, que toma por matéria, não essa ou aquela função da linguagem (convencer, narrar, dialogar, etc…), mas, aquém de todas essas funções, a própria matéria da linguagem, aquilo de que ela é necessariamente feita: o som das palavras [18].

Além disso, Lucrécio – em seu poema De Rerum Natura [19] – diz que toda a natureza é constituída por duas coisas: os corpos e o vazio. É a matéria da linguagem que está em jogo. No século I a.C o poeta latino afirmava, em sua visão materialista do mundo que

toda a natureza consiste apenas em corpo e vazio. Somente os corpos e o
vazio existem. E o resto? E tudo que nos cerca? Os homens, os cavalos, as
montanhas, a Lua, e também o azul do céu, a suavidade do ar, o pôr do sol,
e a beleza, o amor, a tristeza será que isso não existe? Sim, para Lucrécio,
isso existe, mas não verdadeiramente, não absolutamente. São apenas
propriedades ou ainda acidentes (eventos) dos corpos e do vazio. [20]

A natureza de que trata a concepção lucreciana é a própria materialidade da linguagem. Lucrécio opera com o corpo da linguagem e com o som das palavras manipulando a estrutura da linguagem. Enquanto poeta materialista, ele antecipa todas as pesquisas que partem do ‘materialismo da palavra’. Ao utilizar as letras do alfabeto como modelo para explicar sua teoria sobre o ‘cosmos’, Lucrécio utiliza a palavra latina elementa, que, semelhante à palavra stoicheion (elemento) em grego, ao mesmo tempo em que se aproxima do elemento físico (o átomo), se aproxima da letra e aponta para a dimensão do escrito [21]. Nessa espécie de biblioteca de Babel, o poeta argumenta, em sua teoria atomista, que “todos os elementos indivisíveis que compõem todos os corpos reais ou possíveis dos mundos” [22] são comparáveis “às letras do alfabeto que compõem todas as palavras da linguagem” [23]. Assim, com cerca de vinte e cinco letras, o poeta latino podia escrever “as milhares de palavras de uma língua” [24]. Desta forma, a escrita acontece em meio às letras do alfabeto que se arrumam no espaço branco da página; no espaço vazio.

Prigent, partilhando com os princípios de Lucrécio, percorre o vazio das coisas do mundo “em via de nascer”. É como ele explica, de forma enigmática:

Tudo diz o vazio aberto no simbólico e no balanço do sentido (…) Eu sou, ou eu ensaio ser, um ‘escritor’. Eu tento perceber a ‘literatura’ em seus desmoronamentos, os vazios, os anúncios obscuros de um novo mundo de conflitos. [25]

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Notas

[1] LACAN, Jacques. Seminário R.S.I (inédito). Lição do dia 10 de dezembro de 1975.
[2] HALFON, Nélida. Em El nombre de la falta, p. 35.
[3] “J’ai soufflé en vers quelque chose de l’impossible (…) et reserata viget genitabilis aura. PRIGENT, Christian. “Lucrécio na janela” in Salut les anciens.. p. 15
[4] “verbaux, sonorisés, rythmés”. PRIGENT, Christian. L’Incontenable. Op. cit. p. 11.
[5] Definição de Christian Prigent.
[6] Ouïssance é um neologismo inventado por Prigent para falar da voz do poeta, com a sua escuta singular (o verbo ouïr em francês quer dizer escutar) e do gozo (jouissance em francês) que também está implicado neste trabalho de escuta / escrita.
[7] No livro Ceux qui merdRent, Prigent diz que “la litterature est en quête de ce que j’ai appelé ailleurs l’ouissance, c’est-à-dire la jouissance de la langue rythmée et sonorisée, cette ‘musique savant qui manque à notre désir, cet ‘opera fabuleux’et cette ‘parade sauvage’ dont nul, sinon l’auteur, n’a la clef”.
[8] Termo utilizado por Martine Broda, tradutora de PaulCelan.
[9] “(…) hommes du futur, salut! / J’ai dit: per totum video inane geri res. / J’ai vu le réel se faire dans le vide, j’ai vu le réel vider les noms de la langue. / J’ai vu le vide des noms face au mouvement d’engendrement des choses”. PRIGENT, Christian. Salut les anciens/ Salut les modernes. Paris : P.O.L. éditeur, 2000. p. 11-12.
[10] Moterialisme: junção de materialismo e de palavra, dando um estatuto de materialidade para a palavra. No Seminário. Livro 7 – A ética da psicanálise, na parte IV (p. 72) Lacan diz que “em francês a palavra mot tem um peso e um sentido particular. Mot é essencialmente nenhuma resposta. Mot, diz La Fontaine a certa altura, é o que se cala, é justamente aquilo para o qual nenhuma palavra é pronunciada”.
[11] LACAN, Jacques. O Seminário – Livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1991. p. 58.
[12] LACAN, Jacques. Seminário inédito “O saber do psicanalista”. Lição do dia 6 de janeiro de 1972.
[13] “sinon plus exactement la réson, le résonnement de la parole tendue, de la lyre à l’extrême”. PONGE, Francis. Pour un Malherbe. Paris: Éditions Gallimard, 1965. p. 97.
[14] “théoricien de la ‘réson’, r, é, o, n, il fait résonner le logos, langage et raison”. GLEIZE, Jean-Marie. Sorties. France: Questions théoriques. Collection Forbidden Beach, 2009. p. 107.
[15] PONGE, Francis. Métodos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1997. p. 74.
[16] “Hommes du futur, traduisez mon titre: / De rerum natura = Du Réel (de l’Inommable) (…) Hommes d’aujourd’hui, qu’est-ce que le réel ? J’ai dit : rerum natura = commencement, engendrement, vide, mouvement. Pas : gestae res. Mais : res nascentes. Creatrix natura”. PRIGENT, Christian. Salut les anciens/ Salut les modernes. Ibidem. p. 14-16.
[17] BOONS, Marie-Claire. “Paul Celan en Provence” in Cahier de la École du Psycanalyse Sigmund Freud, 2001, p. 95-96.
[18] WOLFF, Francis. “Tudo é corpo ou vazio” in Adauto Novaes (organizador). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 79.
[19] Poema inacabado de Lucrécio (Titus Lucretius Carus), poeta romano do século I A.C. Este poeta nos legou a mais longa obra materialista da Antiguidade, segundo Francis Wolff.
[20] WOLFF, Francis. Os homens que pensaram o mundo. p.69.
[21] Com Lacan, pensamos a dimensão do escrito como efeito de linguagem.
[22] WOLFF, Francis. WOLFF, Francis. “Tudo é corpo e vazio” In Poetas que pensaram o mundo. Ibidem. p. 74.
[23] WOLFF, Francis. “Tudo é corpo e vazio” In Poetas que pensaram o mundo. Ibidem. p. 74.
[24] WOLFF, Francis. “Tudo é corpo e vazio” In Poetas que pensaram o mundo. Ibidem. p. 74.
[25] PRIGENT, Christian. Ceux qui merdRent. P.O.L éditeur, 1991.