Num dia 16 de junho de 1924, James Joyce (1882 – 1941) se recuperava de uma quinta cirurgia na vista em Paris, quando, lembra Richard Ellmann, “a melancolia da clínica foi aliviada pela chegada de um ramo de hortênsias, brancas e de um azul pálido [as cores da bandeira da Grécia numa alusão ao Ulisses greco-irlandês de Joyce], que alguns amigos tinham mandado em honra do ‘Dia de Bloom’”. Joyce anotou em seu caderno: “Hoje, 16 de junho de 1924. Vinte anos depois será que alguém vai se lembrar desta data?”.
O fato é que, ainda hoje, ou sobretudo hoje, em diversas partes do mundo, se celebra o Dia de Bloom em homenagem ao protagonista do monumental romance Ulisses, que revolucionou a prosa de ficção no século XX e que, no século XXI, continua inquietando, afugentando e também deleitando os leitores de Joyce.
Segundo Jean François Lyotard, o assunto do livro é “confuso”, o próprio título confunde, uma vez que nenhuma Odisseia de Homero é facilmente perceptível nos relatos de Ulisses, aliás, nenhum personagem chamado Ulisses aparece no romance de Joyce, cujo “herói”, Leopold Bloom, é um angariador de anúncios de inteligência mediana e que, diferentemente do Odisseu/Ulisses grego, é traído pela mulher, não tem um filho – teve um que morreu ainda muito pequeno – nem um cachorro que o reconheça. Se Argos, o cachorro de Ulisses, o reconhece depois de vinte anos, a gata do protagonista do romance joyciano, logo no início do romance, olha-o de maneira dessacralizadora, fazendo com que Bloom, nesse momento, passe a adotar a perspectiva do animal: “Eu me pergunto o que é que eu pareço para ela. Altura de uma torre? Não, ela pode pular por cima de mim.” (Tradução de Bernardina Pinheiro).
O livro conta especialmente a peregrinação de Leopold Bloom pela cidade de Dublin, terra natal de Joyce, durante pouco mais de 17 horas, ou, como diria Vladimir Nabokov, “Ulisses é a descrição de um único dia, a quinta-feira, 16 de junho de 1904, nas vidas misturadas e separadas de inúmeras pessoas que vagueiam, viajam, se sentam, conversam, sonham, bebem e realizam diversos atos fisiológicos e filosóficos, de maior e menor importância, durante este dia e nas primeiras horas da madrugada seguinte em Dublin”. Dentre essas pessoas destaca-se a tríade: Bloom, Marion (Molly) Bloom, sua mulher, e Stephen Dedalus, o professor-filósofo do livro.
Ao contrário de atos heroicos numa batalha, estamos no cotidiano e diante de fatos na maioria dos casos banais ou até escatológicos, como a preocupação do protagonista com o tamanho de suas fezes: “Espero que não seja grande demais para não me provocar novamente hemorroidas. Não justo o tamanho (…). Ele continuou a ler sentado calmamente sobre o seu próprio cheiro que se elevava.” (Tradução de Bernardina Pinheiro).
Bernardina Pinheiro recorda que “realmente tudo acontece naquele bendito dia 16 de junho de 1904: nascimento, morte, frustração, alegria, rejeição, traição, masturbação, menstruação, tudo, enfim, que um ser humano vivencia.” Deparamo-nos, por isso, com um número surpreendente de correntes de pensamento, e tudo vai culminar no famoso monólogo interior de Molly Bloom, um dos momentos cruciais da literatura universal: “ele foi o primeiro homem que me beijou embaixo da muralha dos mouros um namorado quando rapaz nunca tinha entrado em minha cabeça o que significava beijar até que ele pôs a sua língua em minha boca sua boca era doce jovem … .” (Tradução de Bernardina Pinheiro).
Segundo Vladimir Nabokov, “esta técnica da corrente de pensamento tem, é claro, a vantagem da brevidade. Consiste numa série de mensagens sucintas que o cérebro anota. Mas exige do leitor uma atenção e uma compreensão maiores do que uma descrição convencional (…). Os pensamentos íntimos que afloram à superfície movidos por uma impressão exterior conduzem a associações significativas de palavras, a nexos verbais, na mente de quem pensa”.
Assim, no pensamento convulsivo de Stephen, por exemplo, o mar verde-ranho se associa tanto com seu lenço ranhoso quanto com a bílis verde da bacia onde sua mãe vomitara. Afirma Nabokov, “tudo se funde durante um segundo numa única imagem. Isto é Joyce no seu melhor. Em Ulisses, como disse Lyotard, “a aventura está na língua, na sua proliferação, sua dispersão e na libertação de seus horizontes”.
No Bloomsday, hoje festa universal, Dublin espalha-se mundo afora, num cruzamento de culturas que sempre foi muito valorizado por um exilado como James Joyce. Apesar de ter sido um exilado por opção, a Irlanda sempre o “acompanhou” em suas andanças pela Europa continental, o escritor costumava dizer que, se um dia Dublin desaparecesse, poderia ser reconstruída das páginas de seus livros. Se Joyce fazia de Dublin o centro do mundo na sua ficção, o Bloomsday traz a Irlanda para perto de nós, todos os anos: uma Irlanda imaginária, onírica, literária, mutável e poliglota, onde se falam várias línguas, inclusive o português.
No Bloomsday 2011, conforme se lê em Ulisses, certamente mais uma vez “a Irlanda espera que todo homem neste dia cumpra o seu dever”.
* Professora do curso de Artes Cênicas da UFSC. Autora de “Para ler ‘Finnegans Wake’ de James Joyce” (Iluminuras, 2009).