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MEDEIA: MODERNIDADE E BARBÁRIE

1. Tragédia versus entretenimento

Não é fácil para um ocidental contemporâneo, habituado ao conceito e à prática do entretenimento, conceber o significado da tragédia para os gregos. Tentá-lo, porém, é necessário, a fim de fazer frente ao prazeroso desafio colocado por um número crescente de excelentes traduções diretas, das quais a mais nova é a Medeia de Eurípides por Trajano Vieira em edição bilíngue, com posfácio e notas do tradutor e “Comentário” de Otto Maria Carpeaux (São Paulo, 34, 2010) – que vem se somar à não menos excelente tradução de Jaa Torrano em edição também bilíngue, com apresentação de Filomena Hirata (São Paulo, Hucitec, 1991).

Entretenimento tem a ver com entreter, com passar o tempo, com divertir. Divertir tem a mesma raiz de divergir, e significa desviar, sair da via, do caminho. O “caminho” em questão é o do trabalho, que delineia e define a vida e a pessoa: um indivíduo é, fundamentalmente, aquilo que faz profissionalmente. Daí os meios de comunicação usarem o trabalho para apresentar e resumir indivíduos: “o ator Y”, “o empresário X”, “o mecânico Z”. Se alguém não tem trabalho, isso ainda o define: “o desempregado W”. Em uma existência definida pela inserção na produção, o divertimento é uma ocupação ociosa – além de atomizada e pessoal –, mas uma ocupação, pois o ócio verdadeiro, à semelhança da tragédia, é virtualmente inconcebível (assim, a outra forma mais difundida de passatempo, a prática de esportes, é uma prática, enquanto as demais atividades são modos de consumo: não se sai de casa sem gastar). Além de ocupação, o entretenimento é também, obviamente, consumo, fechando o círculo produtivo: o salário de cada profissional deve voltar ao mercado pela compra de bens ou de serviços. Já o teatro grego era gratuito, bancado pela pólis.

Na verdade, o teatro grego, em especial a tragédia (e em particular em Atenas), era criado pela pólis, em mais de um sentido: porque resultava de uma encomenda da cidade, através de um concurso público; porque o concurso era ligado a uma data importante do calendário público; porque seus temas eram definidos pelo concurso; e porque versavam sobre a história, mítica e/ou real, da própria pólis. O teatro, portanto, era por natureza político.

Há aqui, porém, o risco de uma falsa compreensão. Pois ao dizer político em português, digo na verdade algo muito distinto e distante do que significava politikós em grego. Em português, a política remete ao Estado, e este, por sua vez, refere-se a uma estrutura administrativa permanente e profissionalizada com a função fundamental de prestar serviços à sociedade. Ocorre que apesar da expressão “cidade-Estado”, que se refere principalmente à autonomia geopolítica da cidade em relação a outros poderes (à diferença, por exemplo, de uma cidade egípcia ou persa, parte de um império), a pólis na verdade ficava a meio caminho entre o Estado e a tribo. Se havia cargos públicos, se existiam conselhos de anciãos etc., inexistiam estruturas formais permanentes de poder. Tratava-se, de certa forma, de uma anarquia organizada, tanto mais anárquica (inclusive em termos denotativos, de falta de governo) quanto mais pacífico e seguro o momento, e tão mais organizada quanto mais ameaçador ou inseguro. Em tempos normais, alguns poucos cargos ou funções essenciais eram exercidos por voluntários ou por indivíduos escolhidos em referendos públicos por curtos períodos. Politikós, em suma, não se refere à política como meio para ocupar cargos estatais, nem se reduz à política estrito senso, como atividade profissional separada da vida do cidadão comum. A política era a própria vida do cidadão. Mesmo porque, como política vem de pólis, cidadão vem de cidade. O oposto complementar de politikós, citadino ou comunitário, era idiotés, privado, particular, relativo à casa. O fato de idiotés ter originado nosso idiota dá a exata medida de seu significado original: só havia vida inteligente, vida plena, vida verdadeira, no âmbito politikós. Em que a tragédia tinha um papel central.

O teatro, com tudo o que envolvia, e tomando Atenas por modelo, era na verdade o principal acontecimento cívico-social-cultural, ou, numa palavra, político, apenas comparável a certas festas religiosas e aos eventos esportivos, que têm nas olimpíadas o exemplo mais conhecido. Pois o teatro envolvia, em primeiro lugar, a tecnologia, a economia e o poder da pólis, diretamente arregimentados na construção de seu espaço físico, os semiestádios conhecidos como anfiteatros. Em segundo lugar, sua mitologia, sua história e seu prestígio, sintetizados, publicados e consagrados nas apresentações.

A incorporação mais evidente de tudo isso à linguagem trágica está nas figuras do coro e do protagonista. O coro é um reflexo, uma representação, da própria comunidade, da pólis em si mesma, assim duplicada no momento teatral: pois enquanto participa da ação, representada pelo coro, ao mesmo tempo a acompanha concentrada no anfiteatro, que comumente podia abrigar parcelas significativas da população adulta livre, ou seja, da cidadania. E do mesmo modo como a vida do cidadão se definia na sua inserção política na comunidade, a vida do protagonista (originalmente o único ator individualizado em cena) se delineava na sua relação com o coro.

 

2. Política versus psicologia, ou Medeia versus Édipo

Uma consequência da duplicação ou mimetização da vida individual na figura do protagonista é a construção de sua psicologia, ou seja, de um discurso sobre sua psiquê, sua alma, sua vida interior, que se reflete e manifesta em suas ações e palavras. A construção e a compreensão do indivíduo, do sujeito, da pessoa, nascem da política e da tragédia.

Uma das principais questões envolvendo desde sua época a Medeia de Eurípides vem de certa inversão ou subversão, pelo fato de a psicologia, ou o discurso sobre a vida interior do protagonista, se sobrepor às motivações, circunstâncias, demandas e consequências políticas. Neste sentido, Medeia é ou parece ser a mais moderna tragédia grega, e Eurípides, o mais moderno dos trágicos. Daí se explicam sua relativamente problemática recepção em sua época (terceiro e último lugar em seu concurso, restrições de Aristóteles etc.) e sua relativa popularidade na nossa.

Se as ações de Édipo na tragédia homônima de Sófocles não podem ser compreendidas sem o conceito grego de hybris como descomedimento, como desmedida, em relação não à moral, aos usos e costumes, mas como desafio à própria organização do cosmos conforme determinada por Zeus (daí a hybris poder ser hereditária, caso do próprio Édipo, que a herda de seu pai, Laios), as ações de Medeia não são do campo da hybris, mas da (i)moralidade. Enquanto a hybris, o excesso, o desequilíbrio, tem uma dimensão-conotação cósmica, a moralidade é essencialmente humana, apesar de as leis fundamentais a respeito serem tuteladas pelos deuses.

Se por um lado isso quase inviabiliza a compreensão de uma tragédia como Édipo Rei pelo público contemporâneo, que inevitavelmente vê nas ações do protagonista questões morais, com destaque para o incesto com Jocasta, por outro lado facilita a compreensão das ações de Medeia. Édipo, ao descobrir a verdade sobre seu passado, e daí sobre seu presente e sua vida, de fato descobre o quanto sua existência esteve, desde sempre, determinada, submetida, condicionada por forças e eventos que não apenas não controlava como não compreendia, e dos quais não tinha na verdade consciência, não podendo, então, ter verdadeira consciência de si mesmo, a não ser quando afinal conhece tais forças e eventos no ato mesmo de conhecer sua condição de objeto de seu destino, quando mais se acreditava seu sujeito – daí sua tragédia. Medeia, por outro lado, de fato age, no sentido de ser um agente real de sua busca individual por vingança.

Enquanto nas tragédias tradicionais a vingança costuma envolver uma reação divina a um ato de desmedida, em Medeia a vingança é uma ação humana por um gesto de ofensa. A psicologia e a moralidade modernas fazem sua estreia teatral – ainda que as ações de Medeia pareçam quase incompreensivelmente arcaicas em sua crueldade: mas mesmo isso não reduz, ao contrário, sua sedução para plateias modernas.

 

3. Civilização versus barbárie

A história é conhecida. Jasão parte com seus argonautas para a distante Cólquida (na atual Geórgia), a fim de obter o precioso velocino (ou couro) dourado de um animal mítico, de propriedade do rei local, Eeta. Depois de várias peripécias envolvendo forças primitivas, como dragões e gigantes, que deveriam derrotá-lo, ele afinal tem sucesso com a ajuda da filha do rei, a princesa e feiticeira Medeia – que ao se envolver com Jasão, trai seu pai e sua pátria. Ao fugir com ele, Medeia mata seu irmão menor, que levara de refém, a fim de esquartejar seu corpo e o lançar aos pedaços no mar, forçando o barco do rei que os persegue a se atrasar para recolher os despojos.

Ao retornar para sua cidade, Iolco, onde deveria ter direito ao trono, Jasão é vítima de um golpe sucessório, o que resulta em mais um gesto cruel de Medeia, ao induzir as filhas do usurpador a matá-lo e esquartejá-lo. O terrível parricídio os obriga a se exilar na cidade de Corinto.

Despossuído e ameaçado, Jasão encontra na possibilidade de desposar a filha do rei de Corinto a irrecusável oportunidade de se reerguer à sua condição real, além de reassumir uma posição de poder e segurança (é aqui que a peça de fato começa, quando Medeia toma conhecimento desse arranjo).

Mas se os atos de Jasão são não apenas compreensíveis como defensáveis (e ele realmente os defende perante a própria Medeia, incluindo a proteção dos filhos de ambos), as ações de Medeia em sua vingança pela traição de Jasão (o assassinato de sua nova mulher e de seu novo sogro, além do assassinato de seus próprios filhos com ele) não são nem defensáveis nem compreensíveis. Não são compreensíveis porque desproporcionais, e não são defensáveis porque incluem o mais monstruoso dos crimes, o assassinato dos filhos pela própria mãe.

A explicação dominante apoia-se na contraposição entre a civilização grega e a barbárie asiática. Capaz de comungar poderes místicos, que envolvem potências e leis “naturais”, ou seja, não políticas nem racionais, a princesa cólquida é ao mesmo tempo incapaz de submeter suas emoções e seus desejos à sua força de vontade, ou as paixões às leis.

Medeia é posta em relevo, e o que ela representa: o bárbaro em oposição ao grego, o irracional em oposição ao racional. [1]

O segundo termo da equação, o irracional versus o racional, parece de fato encontrar apoio no próprio texto:

[Medeia] é a paixão. Eurípides bem sabe o que é preciso entender por isso. Medeia também o sabe. Trata-se de uma força irracional, mais poderosa que a razão. “Sim, compreendo quais males farei” – diz Medeia, quando vai matar seus filhos – “O furor é superior à minha decisão” (v. 1078 ss). [2]

Trajano Vieira, porém, discorda dessa interpretação. O interesse em discutir mais a fundo sua discordância reside no fato de que essa questão, de certa forma, concentra toda a discussão sobre a protagonista, e portanto, sobre a compreensão de seus atos.

4. Causas versus efeitos

Medeia não age por ciúme da nova mulher de Jasão, logo, não age por amor, ou seja, não se trata de crimes passionais, como tende a concebê-los a visão popular.

Não estamos diante de um crime motivado por ciúme, pois não fica evidente a existência de uma elo afetivo forte entre ela e Jasão. Não é da manifestação afetiva que Medeia sente falta, mas da manutenção do compromisso. A traição decorre do fato de o ex-esposo não preservar o conjunto de favores proprocionados por ela em seu périplo bem-sucedido. [3]

Em meio a dores e desepero, desponta a invocação à justiça pela quebra dos juramentos por parte de Jasão. […] A vingança deverá satisfazer sua cólera. Nesse sentido, a mulher assume dimensão heroica, aproximando-se dos grandes heróis que, feridos na honra, alimentam a vingança, pois não suportam a vergonha. [4]

Injustiça, ingratidão, vergonha. Numa palavra, indignação. Uma indignação tão intensa (porque de caráter heroico) que leva à fúria, ao furor.

O verso [1.079] admite duas traduções: “A ira (thymós) é mais forte que meus planos” ou “A ira (thymós) impõe-se aos meus planos”. O dualismo filosófico racionalismo/irracionalismo está implicado na primeira leitura, segundo alguns críticos, que o traduzem assim: “Minha fúria é mais forte que minha razão” […]. Ocorre que buleúmata tem sentido específico, concreto […]: “planos”, com referência direta ao infanticídio. Foi com base nesse raciocínio que Hans Diller propôs uma leitura mais convincente. Os planos de Medeia não seriam opostos a seu thymós, mas estariam sujeitos a ele. O thymós impõe-se (esse o sentido de […] “mais forte”) aos projetos que Medeia está para realizar. É disso que Medeia se dá conta, conforme sugere o verbo mantáno (“compreendo”) do verso anterior: “compreendo que tipo de males vou cometer, e a fúria impõe-se aos projetos”. […] Medeia compreende racionalmente […] que o projeto que está para executar […] é motivado por uma dimensão não racional de sua estrutura psíquica, pela pulsão furiosa (thymós) (vv. 1074-80):

Dobrou-me o mal, mirar os dois não é
possível: ide, entrai! Não é que ignore
a horripilância do que perfarei,
mas a emoção derrota raciocínios,
e é causa dos mais graves malefícios.

A sabedoria (sophía) de Medeia está em não se iludir com a chave dualista razão/desrazão e em não se colocar como joguete de uma força que escapa a seu controle e que conduz seus atos, mas em vislumbrar no próprio movimento de construção de seu intelecto a motivação emocional que se lhe entrelaça […]. [5]

Talvez seja então frutífera uma comparação do furor (thymós) de Medeia com a cólera (mênis) de Aquiles. O herói homérico é injustamente humilhado em plena assembleia dos chefes gregos, ou seja, entre seus iguais, por Agamêmnon, e a injustiça e a humilhação explicam sua cólera. A cólera, por sua vez, explica sua reação, de levar a mão ao punho da espada, pronto para matar Agamêmnon. Mas Aquiles não o mata. Não porque pondere, o que a própria cólera impede, alimentada pela percepção da justiça de sua reação. Mas porque é interrompido pela aparição de Atenas. Atenas, a deusa encefálica da sabedoria, que emergiu da cabeça de Zeus, e personifica aqui a própria voz da razão. Pois ela de fato arrozoa para Aquiles motivos para não ceder à cólera, ou seja, cometer a “injustiça” maior, ou hybris, de matar o comandante supremo grego, seu superior hierárquico, em plena assembleia, na qual deve prevalecer a palavra e não a espada. Ela o incita, então, a se conter e se submeter à humilhação injusta, prometendo vingar sua honra no futuro, e de modo adequado, ao que Aquiles aquiesce. A submissão de um Aquiles encolerizado – ele que era o maior guerreiro grego –, já com a mão na espada e em meio a uma assembléia armada de guerreiros, é uma cena tremenda por sua reversão (será portanto a força desse reversão que, como uma mola, impulsionará o restante da narrativa da Ilíada).

Sofrer o furor e a cólera igualam Aquiles e Medeia. Aquiles, portanto, não é em si mais comedido ou racional do que ela. O que os diferencia é poder Aquiles ser salvo de sua própria ira pelos deuses. Não o salva uma maior racionalidade, mas afinal um maior comedimento, que se lhe é externo, ou exercido de fora para dentro, apesar disso lhe pertence, porque Aquiles pertence a uma ordem maior, que o transcende e integra. Medeia, por outro lado, apesar mesmo de sua origem divina (é neta do Sol), está existencialmente sozinha. E é em sua solidão existencial que “a emoção derrota raciocínios”.

Não porque nos quatro séculos que medeiam entre Homero e Eurípides os deuses tenham abandonado a Terra: o Sol faz sua aparição ao final da tragédia, para levar Medeia a Atenas em seu carro alado. Os deuses, porém, estão agora menos presentes. Seu lugar é ocupado, entre homens civilizados, pela introjeção, pela incorporação do comedimento através da razão, da ponderação, do autocontrole. Daí o Jasão de Eurípides parecer um herói apequenado (justamente porque comedido, razoável, e portanto afeito aos seus interesses mais do que à sua glória) quando comparado aos de Homero – mas também se comparado à própria Medeia. A questão é o que o heroísmo de Medeia, no sentido grego de alguém que enfrenta até o final as consequências de suas circunstâncias, parece invertido.

Pois o heroísmo tradicional normalmente leva à morte do herói, destino comum de Aquiles, Pátroclo, Heitor, Héracles etc., enquanto o heroísmo de Medeia leva ao assassinato. Medeia é portanto, dentro dos próprios parâmetros gregos de heroísmo, uma heroína às avessas, uma anti-heroína. Isso me parece responder a outra questão importante que cerca a tragédia, o motivo de Eurípides deixá-la viva, apesar da monstruosidade de seus crimes.

Não se deve atribuir a uma hipotética tendência antirreligiosa de Eurípides a ausência de mecanismos tradicionais de punição, mas a seu interesse em expor facetas inéditas de motivações psíquicas. [6]

Creio, porém, que além disso Medeia não pode ser punida com a morte porque sua morte em consequência de seus atos a igualaria aos heróis clássicos, que ao pagar com a vida por seu heroísmo consumam sua existência elevada. Daí ela poder, e na verdade dever, cometer o maior dos crimes, o filhicídio, e sair impune. Um herói “verdadeiro” mata-se em seu heroísmo, Medeia não se mata, assassina, porém, especularmente, assassina o que há de mais próximo à sua própria existência, sua descendência. Assim invertendo a lógica gloriosa do heroísmo, e a tornando uma lógica monstruosa.

Daí eu acreditar que a explicação de Filomena Hirata (entre outros) para esse fato ser insuficiente:

É fundamental que a própria mãe os mate, para que a progressão trágica não seja quebrda e a têmpera heroica de Medeia esvaziada. Aqui reside o trágico. O vingador sofre igualmente a vingança. [7]

Isso porém não explica que Medeia, por causa justamente de seu sofimento, não se mate, mas, em vez disso, seja capaz de articular uma trama para enganar Egeu, o rei ateniense de passagem por Corinto, a fim de lhe fazer prometer asilo, a despeito dos crimes horrendos que está para cometer.

O argumento que Medeia apresenta par a morte dos dois filhos – evitar que sofressem punição dos inimigos – é falso, pois nada a impede de levá-los consigo à cidade hospitaleira para a qual acaba partindo no final da peça, na carruagem de seu avô, o Sol […]. É sem dúvida impressionante esse desfecho, imagem que sugere antes a luminosidade e o futuro alvissareiro do que o pesar e a puniçào pelo ato macabro, a que estamos acostumados.  [8]

Impressionante, de fato, mas talvez não simplesmente por Eurípides “não privilegiar certa noção de coerência em detrimento do tormento psicológico e da ação dele decorrente”, como prossegue a argumentação de Vieira. A grande questão parece ser o motivo de o heroísmo de Medeia ter de ser monstruoso – o que a impunidade final ilumina enormemente –, fazendo-a uma das mais poderosas personagens da literatura grega. E a resposta talvez esteja no fato de ele ser um heroísmo deslocado, fora de lugar e do tempo.

Fora do tempo, pois o tempo do heroísmo é o da nómos divina, a ordem cósmica que envolve e baliza o herói, o condena, define e redime. Porém a época de Eurípides não é a da épica, mas a da filosofia, vale dizer, da nómos civil, da lei política. Os deuses não respondem mais, através de suas intervençães, pelas ações humanas, que devem responder por e a si mesmas.

Em Sófocles […], mesmo quando os deuses não são nomeados no ápice de uma catástrofe, percebemos sua presença enigmática, o que não se dá em Medeia. A autonomia humana nos sugere um universo novo, em que a punição não é decorrência necessária da ação desmedida. [hybris]  [9]

Fora de lugar, porque a pólis de Eurípides não é, portanto, a Tebas arcaica, ou heroica, de Sófocles em Édipo Rei, ainda próxima demais dos deuses, com sua mítica esfinge plantada à sua porta e pragas divinas devastando-a, mas a Atenas histórica de seu próprio tempo. A morte da nova mulher de Jasão por um véu envenenado que a queima, presente de Medeia, é comumente comparada à morte de Héracles por um manto dado por um centauro. A diferença é que esse manto é obra de um ser mítico, enquanto o véu de Eurípides é obra de uma mulher. Se por um lado não há mais lugar para monstros míticos na tragédia (eles de fato existiam na lenda que lhe deu origem, na forma de gigantes e dragões enfrentados por Jasão na saga dos argonautas, porém ficam, literalmente, fora de cena e da trama), a persistência de véus envenenados tem de se dar por alguém capaz de monstruosidades. Dito de outra forma, sua existência em plena pólis civilizada é em si uma monstruosidade. Daí ser obra de uma estrangeira, de uma bárbara.

5. Barbárie versus modernidade

Evidencia-se então certo anacronismo de se ver em Medeia uma heroína com características modernas (apesar de continuar verdadeiro o fato de a psicologia e a moralidade modernas começarem a nascer com os trágicos): ela era, na verdade, uma heroína com características bárbaras (somos nós modernos que, tão faltos da dimensão politikós grega quanto um bárbaro, tomamos eventualmente os bárbaros por modernos). É da barbárie de sua protagonista que provavelmente advém a “revolução” conceitual de Eurípides em Medeia, ao eliminar a inserção de sua heroína na nómos divina, a lei maior do cosmos olímpico, cujo desafio caracteriza a hybris (pois sequer à nómos civil, à lei civilizada da pólis, um bárbaro estava sujeito). Daí tanto o caráter verdadeiramente pessoal de suas ações quanto sua monstruosidade.

Eurípides porém foge ao senso comum de seu tempo ao não simplesmente vilanizá-la, apesar de toda a vilania de seus atos – e de sua inquestionável responsabilidade pessoal por eles, ao contrário de um Édipo. Poder-se-ia objetar que ela não é, apesar de tudo, inteiramente responsável, mas sim sua cultura, ou seja, sua barbárie. Mas Eurípides não é um sociólogo, sequer um ideólogo da civilização grega. Apesar de – ou justamente por – ser profundamente grego em seu distanciamento “analítico” (daí outra vez se aproximar da modernidade).

Desde as invasões persas do território grego, que apesar de afinal rechaçadas chegaram a ameaçar a própria sobrevivência de Atenas, os bárbaros estavam não apenas próximos, mas presentes. O isolamento, e portanto a autonomia (literalmente, lei própria) da pólis eram coisa do passado. O que coincidiu, talvez não por acaso, com um grande desenvolvimento do pensamento grego e em particular ateniense, obrigado a ampliar, aprofundar e complexizar suas reflexões.

Se isso resultou no incremento do racionalismo pela filosofia do período clássico, também tornou o racionalismo, em confluência com o respeito às leis (racionais) da cidade um valor maior da civilização grega, em particular ateniense, do qual Medeia obviamente não compartilha. Eurípides, no entanto, vê nessa diferença algo necessariamente a conhecer, e não a simplesmente rechaçar. Não porque fosse um multiculturalista avant la lettre: ele não tenta relativizar a crueldade e a infâmia dos atos de Medeia (o que deveria servir de exemplo aos que hoje tentam, em nome justamente do multiculturalismo, de algum modo relativizar atos de infâmia e crueldade de outras culturas, em especial do islã, como a condenação legal de homossexuais e “adúlteras”).

O que ele faz, e parece mesmo moderno, é não reduzir Medeia à sua irracionalidade (ou loucura: “a fúria do delírio te domina” [v. 873, p. 105]) e à sua barbárie – assim como não engrandece Jasão por sua civilidade e racionalidade. Se Eurípides nada tem de multiculturalista, tem algo de universalista. Isso fica patente na famosa passagem (vv. 230-51 [pp. 45-7]) em que Medeia lamenta sua condição, mas no que ela tem em comum com a condição de todas as mulheres, num discurso inédito pelo realismo e pelo “feminismo”. Incluindo surpreendentes afirmações sobre a submissão ao desejo masculino (no belo e duro torneio retórico que refere o pagamento do dote a fim de se tornar propriedade), sobre a angústia de ignorar como agir na nova casa (em tom irônico, perguntando se as mulheres são “mânticas”, ou adivinhas) e sobre a superioridade da dor do parto em relação à das armas (notar a excelência da tradução, que alia acuidade semântica, precisão rítmica, fluência, síntese e força retórica):

Entre os seres com psique e pensamento,
quem supera a mulher na triste vida?
Impõe-se-lhe a custosa aquisição
do esposo, proprietário desde então
de seu corpo – eis o opróbrio que mais dói!
E a crise do conflito: a escolha re-
cai no probo ou no torpe? À divorciada
a fama de rampeira; dizer não!
ao apetite másculo não nos
cabe. Na casa nova, somos mânticas
para intuir como servi-lo? Instruem-nos?
[…]
Quando a vida em família o entedia,
o homem encontra refrigério fora,
com amigo ou alguém a mesma idade.
A nós, a fixação numa só alma.
“Levais a vida sem percalço em casa”
(dizem) “a lança os põe em risco”. Equivoco
de raciocínio! Empunhar a égide
dói muito menos que gerar um filho.

Medeia transcende aqui suas origens e circunstâncias pessoais para falar do duro status da mulher nas culturas patriarcais, ou seja, em todas as culturas de sua época – e em muitas culturas de nossa própria época, como o islã.

O que aponta para a verdadeira modernidade de Medeia. Pois esta não radica, afinal, no que a tragédia possa ter em comum com nossa época, mas o que nossa época tem de fato em comum com a da tragédia. E isto é, principalmente, a proximidade, a interpenetração e o confronto entre a “rule of law”, o império da lei civil e da sociedade idem da cultura ocidental, e a força dogmática da tradição nas culturas não-ocidentais.

Eurípides fez de uma situação semelhante uma obra de arte maior e uma análise grandemente complexa, marcando afinal uma diferença radical com nosso tempo: nossos artistas são incapazes de grandeza e de complexidade, além de lucidez e coragem, trocadas pela confusão do relativismo, pela submissão militante ao politicamente correto e ao multiculturalismo, e pela condenação masoquista da própria cultura. O maniqueísmo espetacular e espetacularmente infantil de Avatar não poderia ser mais marcante (naturalmente, trata-se de entretenimento, para voltarmos ao início). Não surpreende nossa arte ser hoje tão tragicamente menor, apesar da enormidade das questões contemporâneas.

 

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Notas

[1] Filomena Y. Hirata, “Medeia, uma apresentação”, in Eurípides, Medeia, São Paulo, Hucitec, 1991, p. 22.
[2] Jacqueline Romilly, idem, contracapa (tradução dos versos por Jaa Torrano).
[3] Trajano Vieira, “O destemor de Medeia e o teatro do horror”, opus cit., p. 158.
[4] Filomena Y. Hirata, opus cit., p. 12.
[5] Trajano Vieira, opus cit., pp. 172-3.
[6] Idem, p. 171.
[7] Opus cit., p 22.
[8] Trajano Vieira, opus cit., p. 158.
[9] Idem, p. 170.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).