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“Meus livros são teus livros”: Santa Rosa

Sintetizar um texto de valor artístico conservando e até lhe enfatizando a poesia é tarefa difícil. No entanto, movida pelo desejo de partilhar da singular construção ensaística de um artigo de Otto Maria Carpeaux de 1947, arrisco-me aqui a retomar as imagens por ele então criadas, inspiradas num conto de Mark Twain.

No ano 9000, arqueólogos descobrem, em meio a ruínas do Rio de Janeiro, restos de livros. Surpreendentemente, na capa de todos, figura o mesmo “hieróglifo misterioso”: “SR”. Estupefatos, os estudiosos concluem que toda a literatura brasileira da época teria sido escrita por apenas um homem.

Então, debruçados sobre a questão, novos arqueólogos verificam que o “misterioso SR” contara com colaboradores, os quais, no entanto, necessitavam de várias páginas para construir um sentido que “SR” conseguia sintetizar por meio de um desenho na capa.

E tais desenhos garantiram o estudo da literatura brasileira dessa época remota. Por exemplo, os arqueólogos compreenderam A bagaceira, de José Américo de Almeida, e O quinze, de Rachel de Queiroz, graças às imagens do cacto e dos retirantes nas capas. Conheceram, ainda, os negrinhos e meninos impossíveis do Nordeste de Jorge de Lima. Também apreciaram a chaminé “solitária e melancólica”, símbolo de Usina, do colaborador José Lins do Rego, que permitiu a “SR” criar um ciclo de obras sobre sua região.

Como se vê, é poética a forma como Carpeaux apresenta aos leitores o papel fundamental do pintor Santa Rosa para a literatura brasileira de sua época. Impossível não transcrever, em especial, duas passagens do ensaio. A primeira é a síntese em que se encontram as artes do crítico Carpeaux, do ilustrador Santa Rosa e do romancista Graciliano Ramos:

 

Outra vez, “SR” se revelou através do personagem complexo de Graciliano Ramos, ao qual foi dado sonhar com brutalidades terríveis, angústias tremendas, idílios trágicos, produtos de imaginação de um grande intelectual isolado no deserto; escreveu Insônia, e logo “SR” desenhou um relógio em meio da escuridão noturna[1].

 

A segunda passagem é o momento em que Carpeaux aclara o “hieróglifo misterioso”, desvendando, inteligente e sensível, o nome do pintor da poesia de Drummond:

 

E numa hora triunfal que emergira das trevas “SR” desenhou a Rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, o grupo de populares em torno da rosa que desabrocha no asfalto da rua: a “santa rosa” do povo.

 

Otto Maria prossegue com a sátira aos arqueólogos do ano da “graça ou desgraça” de 9000, apontando a falta de perspicácia da especialização científica: como se dera em relação a Homero, nem acreditavam na existência de um artista enciclopédico como “SR”. O crítico ressalta a riqueza da singularidade do pintor: “um artista plástico de cultura literária, capaz de interpretar os mais diferentes estilos e personalidades”, “mistura encantadora de talento, inteligência, coração e impontualidade”. Relembra que “SR” pintou os cenários de Vestido de noiva e que homéricos foram seus esforços para criar uma escola de artes gráficas.

Por fim, Carpeaux destaca outra descoberta dos arqueólogos: simbolizada por uma palmeira e assinada por “SR”, a coleção Documentos Brasileiros, da “época de José Olympio”, tinha por autores Lúcia Miguel Pereira, Octávio Tarquínio de Sousa, Álvaro Lins, Gilberto Freyre, Afonso Arinos de Melo Franco e Sérgio Buarque de Holanda.

Assim, de modo comovedor, Carpeaux expressa toda a sua simpatia por “SR”, símbolo do Brasil. Revela como a arte de Santa Rosa foi o “denominador comum das aspirações artísticas da sua geração”. Significativamente, Santa pertenceu ao grupo da Novidade, semanário de Maceió que teve 24 números, de abril a setembro de 1931. Tendo por lema “Novidade não é essencialmente literária nem essencialmente política”, a revista combatia chavões na arte e na política: voltava-se contra o lugar-comum linguístico, a frase feita, e contra a violência e a miséria generalizadas. Criticava a persistência do quadro de miséria depois da chamada revolução de 1930: a seca, a fome, o analfabetismo, a exploração do trabalho, a indústria das santas milagreiras, a política personalista e o banditismo.

A Novidade não durou muito tempo, mas reuniu vários colaboradores que se tornariam grandes intelectuais e artistas brasileiros, e se reencontraram posteriormente no Rio de Janeiro, em especial na Livraria José Olympio. Entre os mais velhos estavam Graciliano Ramos e Jorge de Lima, ambos com quase quarenta anos, e José Lins do Rego, com trinta anos. A maioria dos colaboradores eram moços, entre dezoito e vinte anos. Foram chamados de “meninos impossíveis” devido à sua admiração pela poesia moderna de Jorge de Lima, iniciada com “O mundo do menino impossível” (1927). No poema, o menino quebra os brinquedos importados, antigos (como a poesia parnasiana), e cria brinquedos próprios, simples, a partir de objetos do cotidiano. Esses jovens tinham também como central a figura de Graciliano, daí ele ser chamado de “velho Graça”. Os fundadores da revista, autores alternadamente dos editoriais, eram Valdemar Cavalcanti, crítico literário, e Alberto Passos Guimarães, que se tornou historiador. Também contribuíram na Novidade, entre outros, os poetas Aloísio Branco, que faleceu jovem, José Auto, primeiro marido de Rachel de Queiroz, e Aurélio Buarque de Holanda, depois filólogo e contista.

 

 

É de um companheiro da Revista o artigo “Santa”[2], publicado em livro em 1961, também impregnado de lirismo e de uma afetividade já contida no título. Valdemar Cavalcanti, inconformado com a morte do amigo Santa Rosa (1909, Paraíba – 1956, Índia[3]), imagina que ele logo entrará em sua casa para retomarem uma conversa de mais de vinte anos, cheia então de reminiscências. À medida que faz desfilarem essas recordações, Valdemar presentifica aos olhos do leitor gestos de uma amizade e momentos significativos de um percurso intelectual e artístico, partilhados desde os anos 1930 em Alagoas.

A lembrança inicial surge sobre a mesa de trabalho de Valdemar, num monte de papéis e livros, e ele crê que o amigo gostará de vê-la, pois talvez nem se recorde mais dela. Trata-se de seu primeiro ensaio de pintor, uma pequena tela a óleo feita ainda em Maceió, “dia de domingo em quarto de pensão, como um derivativo para o seu tédio miúdo de funcionário do Banco do Brasil”.

Tendo Valdemar acompanhado o tédio de funcionário e o entusiasmo de criador de Santa Rosa, revê a primeira exposição deste no Instituto Histórico de Alagoas: os quadros que pregaram juntos à noite, a desconfiança e surpresa dos convidados, a palestra em que apresentava o pintor aos meios artísticos da província, prognosticando-lhe o êxito, com a “arrogância própria dos jovens”.

A integração do paraibano Santa Rosa com o grupo em Maceió ocorreu em fevereiro de 1932, por intermédio de Diégues Júnior. A exposição rememorada por Valdemar Cavalcanti integrou a Festa de Arte Moderna, promovida pela Liga contra o Empréstimo de Livros, evento marcante do modernismo alagoano[4]. Diégues Júnior falou na abertura da exposição sobre música moderna, e Valdemar Cavalcanti apresentou Santa Rosa numa palestra sobre o modernismo na pintura.

A recordação seguinte de Valdemar é justamente sobre a Novidade:

 

Por falar em Maceió, mostrar-lhe-ei [Valdemar Cavalcanti a Santa Rosa] a coleção, que possuo, do semanário Novidade, onde publiquei poemas seus.

 

Se a poesia de Santa Rosa Júnior com palavras permaneceu restrita a Alagoas, a poesia dos desenhos expandiu-se do Rio de Janeiro a partir de julho de 1932. Após a exposição modernista de Maceió, ele decidiu deixar seu emprego no Banco do Brasil, no qual recebia dois contos de réis, e embarcou para o Rio, onde dividiu um quarto simples com José Lins do Rego. De 1932 é Cacau, de Jorge Amado, publicado pela Ariel, de Gastão Cruls, com capa e ilustrações de Santa Rosa, as primeiras do desenhista que revolucionaria os livros brasileiros.

Valdemar Cavalcanti revela a grandeza humana e técnica do pintor, cuja atuação no cenário artístico brasileiro foi marcada por simplicidade e inteligência, traços de um observador compreensivo. Valdemar imagina novo diálogo sobre soluções artísticas para a capa de um livro: mais uma vez, o amigo ensinaria o que é uma discussão intelectual, não movida por vaidade, mas pelo gosto do exercício da inteligência. O crítico valoriza que Santa Rosa soubesse discutir com tranquilidade, sem querer impor suas ideias, antes predisposto a aceitar as ideias dos outros. Conforme se evidencia em “Das estátuas”[5], desagradavam visceralmente a Valdemar as “estátuas ou bustos”, pessoas marcadas por imobilidade intelectual e por orgulho ou soberba. Ao contrário destas, o desenhista era “unidade humana extremamente sensível”, cuja personalidade se definia pela “ânsia de amar e de compreender, [pel]o espírito de pesquisa e de entendimento, [pel]a gratuita generosidade”.

Então, Valdemar Cavalcanti pensa que diria ao amigo – e efetivamente diz aos leitores – como o nome de Santa Rosa, com as famosas iniciais S.R., está de forma definitiva vinculado à história do livro no Brasil, ilustrado ou não, graças a seu papel de inovador. Ressalta que ele impôs aos livros em geral uma “renovação em matéria de bom gosto tipográfico”. Destaca a excelência da apresentação gráfica das publicações oficiais brasileiras, conquista dos esforços do pintor junto aos serviços do Ministério da Educação e Cultura e também do Ministério das Relações Exteriores.

Por fim, essencial, a referência às capas criadas pelo desenhista para as “velhas edições José Olympio”: a primeira fora a de Banguê, de José Lins do Rego, em 1934; e, ao todo, mais de 220 capas para a editora[6]. Os amigos folheariam as primeiras edições de José Lins, as de Graciliano, de Lúcio Cardoso, de Jorge Amado, também de Alencar e Dostoievski e de várias coletâneas de poesia.

 

Até que, noite alta, Santa resolva ir embora e me diga (é assim que sempre faz): “Vai lá no meu ateliê ver as coisas que estou fazendo agora”.

Depois que ele sair, estou certo de que a casa ficará como neste momento, impregnada de sua voz, de seu espírito de compreensão e de sua grandeza humana como a indestrutível presença.

 

Dessa forma, os retratos pintados por Otto Maria Carpeaux e Valdemar Cavalcanti expressam o valor humano de Santa Rosa, síntese de sensibilidade e “espírito de compreensão”, sublinhando a importância desse artista para a cultura do país, principalmente para a história do livro no Brasil. Poeta na revista alagoana em 1931, como criador das capas da José Olympio Santa Rosa condensou o espírito da literatura brasileira dos anos 1930 e 1940, o que sinaliza o valor da geração da Novidade no quadro intelectual e artístico brasileiro.

 

Santa, a flor do suor

Na Apresentação d’ A vida ilustrada de Tomás Santa Rosa, de Cássio Emmanuel Barsante[7], Rachel de Queiroz sublinha como o desenhista era adorado e respeitado por todos. Professor de estética, era “mestre nos vários ofícios que lhe demandassem talento e informação”, “homem de pensamento e estudo, de opiniões brilhantes e inovadoras”.

E do retrato de Santa Rosa traçado pelo amigo e inspirador Portinari, a quem auxiliou no acabamento de vários murais, sobressai a conjugação de talento e trabalho, voltados para a renovação cultural brasileira:

 

Foi o renovador do livro nacional como de nossa cenografia, dando às edições literárias e ao teatro a contribuição do seu talento e bom gosto. Na pintura, na ilustração e na crítica, Santa Rosa foi sempre o trabalhador honesto e infatigável. Como crítico, destacou-se pela maturidade e segurança de seus juízos, mantendo-se à altura de um homem empenhado, honradamente, em servir à arte e à nossa cultura[8].

 

Esse talento avultou logo aos nove anos: finda a Primeira Guerra, Santa Rosa homenageou os aliados desenhando as bandeiras dos países. Impressionado, o governador da Paraíba propôs pagar-lhe os estudos na Europa, porém a mãe do menino teve de recusar, não querendo longe o único filho homem vivo. Aos doze anos, mesmo sem educação artística formal, ele ganhava dinheiro pintando bandeiras para procissões religiosas[9].

Trabalhador “honesto e infatigável”, Santa Rosa fundou em 1938 o grupo teatral Os Comediantes, do qual foi cenógrafo, pintor, diretor artístico e coordenador; e, em 1944, integrou o Teatro Experimental do Negro. Primeiro cenógrafo moderno brasileiro, foi premiado pela Associação Brasileira dos Críticos de Arte pelos cenários das peças Vestido de noiva (1943, Nelson Rodrigues, direção de Ziembinski), A morte do caixeiro viajante (1951, Arthur Miller, direção de Esther Leão, Companhia de Comédias Jaime Costa) e Senhora dos afogados (1954, Nelson Rodrigues, direção de Bibi Ferreira, para a Companhia Dramática Nacional).

Segundo Álvaro Lins, sem a colaboração de Santa Rosa e de Ziembinski, Vestido de noiva não teria o enorme êxito que alcançou. O crítico destaca Santa Rosa como “artista puro” e também “homem de ação na vida artística”: era o centro vital do grupo Os Comediantes, empenhado somente pela seriedade na arte, dedicado a criar um autêntico teatro brasileiro[10].

Em 1945, Santa Rosa trabalhou como crítico de arte para o Diário de Notícias. Imaginou para Sérgio Porto o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, inspirado no personagem Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade[11]. Em 1946, dirigiu o curso de artes gráficas na Fundação Getulio Vargas, onde Fayga Ostrower estudou. Lecionou ainda na Escola Nacional de Belas Artes e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, onde também dirigiu o Departamento de Teatro. Entre 1952 e 1954, integrou a Comissão Nacional de Belas Artes, dirigindo o Conservatório Nacional de Teatro.

Além da obra teatral, foi considerado o maior produtor gráfico de livros do Brasil, “responsável, quase sozinho, pela transformação estética do livro brasileiro nos anos 30 e 40”[12]. Conforme Hallewell, autor de O livro no Brasil, o desenhista exerceu uma “influência tríplice”: a contribuição como produtor gráfico e ilustrador, sobretudo para as editoras Schmidt e José Olympio; a revolução no aspecto físico das publicações do governo federal, principalmente do Serviço de Documentação do Ministério da Educação; a influência como professor de artes gráficas.

Santa Rosa deixou inéditas as ilustrações para o livro infantil O pinto pelado, velho conto popular. Em 1939, venceu o concurso do Ministério da Educação com o livro O circo. Em carta a Heloísa, de 3 de março de 1937, passado exato um ano de sua prisão, Graciliano elogia as ilustrações desse livro:

 

Depois do almoço caí no ramerrão diário. Fui à livraria, encontrei Zélins, Santa, Jardim. Fomos ao Ministério levar os álbuns de figuras dos dois últimos e os contos de Bárbara [Julieta Bárbara, mulher de Oswald de Andrade]. Os desenhos de Santa, um circo de cavalinhos, estão maravilhosos, mas também gostei dos de Jardim, uma história de bichos muito engraçada. José Olympio acha isso admirável, o que já se fez de melhor para crianças no Brasil[13].

 

Mas a amizade entre Graciliano e o desenhista iniciou-se nos anos 1930 em Maceió, tanto que Caetés (1933) lhe foi dedicado, bem como a Jorge Amado e a Alberto Passos Guimarães. Impossível não citar esta saborosa narrativa de Jorge Amado, em que se descobre outro motivo por que Santa Rosa foi fundamental para a literatura brasileira:

 

O poeta e desenhista Santa Rosa, risonho mulato paraibano recém-chegado ao Rio – via Maceió, onde servira no Banco do Brasil – trouxera notícia de um literato alagoano, ex-comerciante, ex-prefeito de cidade do interior, por fim funcionário público, na ocasião, se não me engano, Diretor da Imprensa Oficial. Os textos dos extraordinários relatórios, apresentados por ele ao deixar a Prefeitura de Palmeira dos Índios, circularam de mão em mão no limitado território literário da então capital da República e das letras pátrias (Maceió, 1933 – visita)[14].

 

Unindo as pontas da vida de Graciliano, veja-se como a história de Santa Rosa se prende também à da Livraria José Olympio. Como já dito, fez mais de 220 capas para a editora, na qual não só ilustrava como paginava, diagramava e escolhia os tipos de letras. Partilhando do pensamento de outros companheiros da Novidade, desagradavam-lhe os excessos do modernismo: julgava que a abolição da letra maiúscula em títulos e nomes próprios redundava numa “socialização dos caracteres, sem gosto e sem engenho”[15].

Na crônica “A livraria José Olympio”[16], Graciliano desnuda-a como matéria excelente para um romance. O escritor destaca que, desaparecidas as fronteiras sociais, havia camaradagem, um ar de família entre os críticos, ficcionistas, sociólogos, ensaístas e pintores que se encontravam à rua do Ouvidor 110. Fervilhavam discussões no fundo do estabelecimento, que reunia homens de diferentes crenças e partidos, “em carne e osso” ou nas paredes cobertas de livros. Com sua expressão compreensiva e crítica, Graciliano reconhece a importância do editor “liberal” José Olympio, que publicava livros da esquerda, da direita e do centro e acolhia amigavelmente “pessoas de cores diferentes ou sem nenhuma cor”. Realça os nomes de Santa Rosa e Portinari, além de Octávio Tarquínio, Amando Fontes, José Américo, Lins do Rego, Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz, Lúcio Cardoso, Luís Jardim, Murilo Mendes. E os amigos alagoanos Valdemar e Aurélio também frequentavam a livraria.

Desse modo, o percurso de Santa Rosa é revelador de uma história de amizades iniciadas no grupo de Maceió nos anos 1930 e continuadas no Rio de Janeiro nos anos 1940, especialmente na Livraria José Olympio. A capacidade do pintor de ser amigo e de condensar a literatura brasileira nas capas dos livros, flagrada por Carpeaux e Valdemar Cavalcanti como a “indestrutível presença” inscrita nas iniciais “SR”, foi também sintetizada pela poesia de Drummond, de que recolho estes versos:

 

Meus livros são teus livros, nessa rubra

capa com que os vestiste, e que entrelaça

um desespero aberto ao sol de outubro

à aérea flor das letras, ritmo e graça[17].

 

Ideal seria apreender o estilo de Santa Rosa analisando conjuntamente as capas e o teor dos livros por ele ilustrados. Constituiria inspiração para esse estudo a leitura que Antonio Candido fez da capa de Caetés. O crítico percebeu como o desenhista exprimiu graficamente as ambiguidades que estruturam o romance, decorrentes da “ironia criadora” de Graciliano[18].

No entanto, nos limites deste artigo, o caminho trilhado foi descobrir a trajetória do pintor por intermédio de ensaios poéticos de Carpeaux e de Valdemar Cavalcanti e de depoimentos de Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Portinari, Graciliano Ramos e Drummond.

Delineado o perfil do desenhista, é instigante ler na Novidade o poeta Santa Rosa Júnior: “Bucólico” (n. 11, p. 11); “Momento”, “Memória” (n. 9, p. 11).

“Bucólico” é bem o poema de um pintor, atraído pelas cores e luzes da natureza, e de um jovem da Novidade, dotado de olhar crítico para as incongruências do mundo.

A vocação inserida no poema, Santa Rosa parece desenhar com as palavras um quadro, em que ressalta, desde o título – “Bucólico” –, a integração feliz do eu lírico com a natureza. Tal desejo pelo pictórico e harmonioso se confessa em primeira pessoa nos versos iniciais:

 

Esse gosto bom dos sentidos!

Acho daqui a paisagem completa.

 

A frase nominal exclamativa anuncia a plenitude estética do observador que frui satisfeito a paisagem.

Eis que, entre parênteses, o poeta imagina uma combinação de movimentos cujo brilho reforçaria a completude da paisagem: ante o alarido de cores de um trem passando, os homens que trabalhavam ao sol ergueriam seus corpos reluzentes.

 

(Se o trem passasse agora

os caboclos empinariam os torsos lustrosos

brilhando no sol!)

 

Entretanto, sendo o trem desejo do poeta, o que seus olhos acompanham é a placidez do contorno verde dos morros, que se encontram com o branquejar das casas. Tal panorama luminoso mas estático, de montanhas e casas, somente em cujo fundo estão caboclos suando com enxadas, proporciona uma “alegria campestre” ao eu lírico. Novamente em primeira pessoa, ele se declara encantado pela claridade do verde. Veja-se a sequência de versos:

 

Mas a quietação ondula

pelos morros verdoengos

e bate de encontro às casas branquejando na luz.

Apenas

quebra a vista das cousas paradas

o movimento rítmico das enxadas dos que estão trabalhando

longe…

Sinto a alegria campestre do verde bem claro.

 

Finalmente, na última estrofe, vem a síntese dessa composição pictórica, com verdadeira pincelada de lirismo. Inebriado da feliz comunhão com a paisagem, o poeta pisa sem querer nas “flores pequeninas”. Ao gesto involuntário de ferir o belo da natureza, o tempo todo visceralmente apreciado, sucede um vocativo a Deus – singelo desejo de redenção de um inocente que então se culpa:

 

Vou tão feliz

que piso nas flores pequeninas,

meu Deus, até sem ser por maldade.

 

Sensível e crítico, Santa Rosa expõe o dilema dos artistas que, na busca pelo Belo, não podem ignorar as mazelas da realidade. Mais do que isso, seu poema condensa como a potencialidade da beleza e a consciência dos limites / da fragilidade compõem a força da arte. Paradoxo da poesia, o “gosto bom dos sentidos” carrega as “flores pequeninas” pisadas.

Nesse sentido, é possível reler a imagem dos caboclos, identificando a tensão nela contida, que quebra o quadro bucólico. Traduz o apreço do artista pela beleza plástica – a luminosidade solar, refletida nos corpos suados – e, a um tempo, a sensibilidade crítica do poeta quanto aos conflitos dos trabalhadores. Ele se aproxima deles, ávidos de distração, de fuga (“Se o trem passasse agora / os caboclos empinariam os torsos lustrosos / brilhando no sol!”), mas sabe que permanecem trabalhando ao longe, maquinalmente (“o movimento rítmico das enxadas”).

Assim, a marca de Santa Rosa parece ser uma tensão entre a satisfação pictórica, com as cores e formas da natureza, e o pesar pelos seres pisados, pela fragilidade da vida. E os versos de Drummond o confirmam:

 

Essa alegria de criar, que é tua

explanação maior e mais tocante,

fica girando no ar, enquanto avulta,

em sensação de perda, teu semblante[19].

 

Entre o entusiasmo de criador e o tédio de funcionário de banco, Santa Rosa Júnior também escreveu “Memória” e “Momento”. Igualmente o motor desses poemas, versos livres que flagram cenas cotidianas, é a inquietação entre a amplitude da natureza e os limites humanos. Em “Memória”, é no “azul feliz do céu indiferente” que a lembrança do amor distante “palpita”. Essa oposição entre o “espaço imenso” da natureza, feito de brandura e paz, e a “terra cansada” dos homens se reencontra em “Momento”.

O poeta passeia “ao largo” pelos campos que “se estiram sem fim”, acompanhado da tarde “calada” e de um “perfume de rosas bem perto,/ bem perto…”.

 

Momento (Especial para Novidade)

Passeio ao largo!

A tarde me acompanha calada.

Nem há rumores aqui.

Somente

um perfume de rosas bem perto,

bem perto…

Os campos se estiram sem fim,

 

A combinação entre o silêncio largo do ambiente e a proximidade afetiva do perfume das flores – sugerindo o misto de indiferença e generosidade da natureza – leva à imagem central do poema, que vem entre parênteses: o apagar da árvore grande quando do retorno do eu lírico.

 

(Se apagou aquela árvore grande

quando eu voltei!)

Ah!

foi a noite.

Foi a noite que desceu vertical

por sobre os campos

por sobre as casas

por sobre os homens fatigados.

 

Novamente aqui se entreveem no poeta o pintor e o intelectual crítico. Com o fechamento dos parênteses, ele cria o efeito da escuridão sobre a árvore; e, com a corriqueira e modernista próclise pronominal e o verbo “apagar” tendo por objeto uma árvore, parece desenhar um abajur e insinuar o que há de artificial no hábito moderno de se conceber a luz como elétrica.

Então, reconhecendo a primazia da natureza (“Ah!/ foi a noite”), ele tece a verticalidade da noite por sobre os campos e as casas, por meio de um movimento anafórico que culmina em “por sobre os homens fatigados”. Desse modo, revela a profundidade do anoitecer como o apagar-se, oferta temporária – e definitiva – de descanso para os homens, consumidos em seus trabalhos. Mais uma vez, o artista se curva à natureza, dadivosa e indiferente, e se inquieta com a sorte dos homens, pequeninas flores pisadas. Mais uma vez, Santa Rosa defronta o impasse de criar beleza conhecendo as fragilidades da vida.

 

A geração da Novidade: o empenho pela arte, contra preconceitos

Publicado em 1952, o Roteiro de arte[20], de Santa Rosa, confirma-o um artista enciclopédico, empenhado em aprimorar sempre sua cultura literária e sua técnica, para ser autenticamente ilustrador, ou seja, um intérprete sensível, capaz de encontrar a “ressonância expressiva” do espírito dos textos. Seu roteiro inclui a busca do novo, atento às necessidades do presente, ao valor da tradição e à formação cultural das crianças e dos jovens do país.

Combatendo o preconceito segundo o qual a ilustração seria uma arte subordinada à verdade alheia, Santa Rosa defende-a como arte autônoma e autêntica, paralela à literatura. Sublinha que o desenhista deve fixar o tema sugerido no livro com a força de sua personalidade. Sua difícil tarefa é captar, no tumulto das frases, as imagens plásticas que correspondam ao mesmo sentimento. Às vezes, tem de ir às fronteiras da imaginação e até esclarecer certos mistérios das palavras.

Lamentando que o gosto pelo livro ilustrado fosse quase inexistente no Brasil, julga enorme a tarefa dos “artistas intérpretes, sugestionadores do leitor transeunte”. Alerta para as diferenças entre prosa e poesia, que devem estabelecer modos diversos de se conceber a imagem, expressão da substância do texto. Enquanto o desenho pode apreender da prosa minúcias, uma visão mais concreta das coisas ou a expressão do rosto das personagens, a poesia se afirma por meio de “cristalizações do espírito” em imagens sensíveis, imponderáveis e indiretas. Explica que, para o ilustrador, o que conta não é o descritivo do poema, do conto, do romance, mas a atmosfera espiritual em que se movem os personagens, os ritmos, os sentimentos. Como um cineasta, busca o ângulo em que o assunto mais avulta, melhor se define. Em seu trabalho de análise, cerca os personagens de um romance, para lhes transpor com verdade o caráter e a força e conquistar-lhes a psicologia.

Santa Rosa explicita todo o seu amor aos livros, que para ele são um “milagre da continuidade, da preservação, da comunhão de ideias e sentimentos, chamas vivas do espírito humano” (p. 35). Inquieta-o a baixa qualidade dos livros para crianças e a despreocupação com os meios de trabalho, com as técnicas da ilustração. Critica que os ilustradores trabalhem sobre fotografias, como nos estúdios norte-americanos, o que mata a imaginação e debilita a arte de ilustrar. Considerando a letra uma das mais belas entre as formas criadas, preocupa-se com a escolha dos caracteres, com a necessária harmonia nas capas dos livros, que representam um convite para o leitor.

Dessa forma, enfatiza a necessidade de se encarar seriamente o papel do ilustrador: ao lado da aprendizagem do desenho e das técnicas gráficas, a sua questão prioritária deve ser o “não muito simples problema da cultura”. Como cabe ao artista interpretar as obras, precisa aplicar-se e se identificar profundamente com as suas essências. Seu guia mais seguro é desenvolver o gosto literário. Assim, Santa Rosa julga que o bom ilustrador deve ser de certa forma um literato e traduzir com sua arte somente as obras com as quais tiver afinidade, para que suas criações possuam equivalente força expressiva. Significativamente, sua principal eleição artística foram as obras de Graciliano Ramos e de José Lins do Rego.

Conforme salientado, a livraria José Olympio permitiu à sociabilidade do grupo da Novidade reencontrar-se e se enriquecer com outros artistas e intelectuais no Rio de Janeiro, a partir de meados dos anos 1930 e sobretudo dos anos 1940. É necessário então registrar que vários escritores da Novidade estavam próximos também como colaboradores da Revista do Brasil, em sua terceira fase. Esta durou de 1938 a 1943, com um total de 56 números. Assis Chateaubriand a relançou e entregou sua direção ao historiador Octávio Tarquínio de Sousa. Resgataram-se características da primeira fase (113 números, de 1916 a 1925, adquirida em 1918 por Monteiro Lobato), como a diversidade de assuntos e a preocupação com os problemas nacionais, encarados sob perspectiva ampla[21].

Na seção “Artes Plásticas” desse periódico, no número 8, de fevereiro de 1939, Santa Rosa expõe sua atitude crítica contra vários “Preconceitos” comuns no Brasil[22]. A princípio, combate os preconceitos voltados aos artistas que buscam inspiração no lirismo da vida popular ou nos aspectos vivos da terra. Denuncia a recomendação, sempre feita na ocasião de convites para mostras de arte fora do país, de não se enviarem trabalhos cujo tema fosse a vida do povo, por conterem, consequentemente, negros e mulatos.

Ironiza esse “refinado escrúpulo” nacional de não incluir quadros com motivos de negros em amostras de arte destinadas ao estrangeiro. Repudia tal preconceito, reputando-o um “requinte de culpados”, de quem deseja “encobrir uma verdade das mais simples”. Enfatiza-o incompreensível sobretudo num salão de arte e ressalta a grandeza de caráter da música e da poesia dos negros.

Relata uma anedota terrível: o Brasil não figurou com obras de arte na Exposição Internacional de Paris, porque estava entre as telas destinadas ao evento o Café, de Candido Portinari. A recusa pelos próprios brasileiros decorreu de o quadro trazer a representação de negros no rude trabalho de produzir a riqueza nacional[23].

Expressando justa indignação, Santa Rosa desmascara ser esse preconceito frequente entre os administradores do Brasil. Considera-os homens de semieducação, cujas boas maneiras disfarçam enormes lacunas de conhecimentos, de cultura. Condena que esses sejam os destinados a superintender questões de arte, mesmo desconhecendo sua importância e até os pormenores mais simples. Alheios à natureza da obra de arte, esses administradores, com seu padrão arbitrário de julgamento, trazem consequências desmoralizantes para os artistas.

Então, Santa Rosa indaga por que os próprios artistas, que conhecem os duros momentos do seu trabalho, o seu valor e as suas necessidades, não são chamados para resolverem seus problemas. Com consciência crítica quanto ao papel dos intelectuais e artistas, reclama já ser tempo de se unirem para conquistar seus postos.

Mais um preconceito condenado pelo ilustrador é o dos críticos de arte que, para enaltecer um artista, o afirmam isento de influências. Santa Rosa contesta que exista na história da arte um artista descompromissado com quaisquer escolas. Entende que sempre houve mestres e discípulos, os quais se tornaram mestres carregando muito de seus antecessores. Para ele, o descompromisso decorreria de ignorância e insensibilidade, já que a influência começa na admiração.

Outro preconceito que Santa Rosa combate é a rígida separação entre arte antiga e arte moderna. Segundo entende, não há antigos nem modernos. Existem os estagnados em preconceitos, paralisados em fórmulas que não se ligam com o passado nem com o presente. E há os que, numa “pesquisa incessante”, levam a arte para o futuro, criam obras com os motivos e as formas de seu tempo, com um “espírito de universalidade comunicativo e amplo”.

Em agosto de 1939, Santa Rosa publica um artigo em que retoma o de fevereiro, para comemorar, já no título, “A derrota dos preconceitos”[24]. Após recordar o absurdo veto a telas que incluíssem gente negra, como as de Portinari, conta que esses preconceitos sofreram uma “derrota espetacular” na Exposição do Riverside Museum, de Nova York. O propósito dessa exposição era dar, em seu conjunto, uma ideia da arte nos países latino-americanos.

Em busca de triunfo, não foi escolhido para o evento nenhum modernista brasileiro, e sim um grupo homogêneo, de arte muito comedida e bem educada, intérprete da nossa natureza, “com os seus amarelos de cromo e os seus céus de cobalto, os amantes das belezas do Corcovado e da Lagoa Rodrigo de Freitas, dos flamboyants incendiados, das naturezas-mortas com presunto e tachos de cobre”. Santa Rosa ironiza a crença equivocada desses expositores: enfim, a pintura seria muito bem representada “pelos artistas do Salão, pelos conquistadores, em lutas de café, dos valiosos diplomas que conferem medalhas de ouro e de prata”. E imagina suas falas preconceituosas, convictas de êxito em sua ignorância: “eles iam ver, esses pintores de monstros, de gente suja, do morro!”.

Contudo – para o regozijo, embora de origem melancólica, de Santa Rosa –, ao contrário do que esperavam os expositores, as obras receberam severas críticas: foram chamadas de falsas, convencionais, fora de seu tempo, imitadas do academismo francês, “escolhidas por um taberneiro míope”.

Santa Rosa revela que um crítico do New York Herald elogiou a arte da Argentina, do Chile e de Cuba, em contraste com a amostra brasileira, e explicou não se tratar de deficiência dos nossos artistas, porém dos administradores que fizeram a seleção. E foi um crítico do Time quem criticou a seção brasileira, imitação do academicismo europeu, afirmando-a escolhida por um “myopic bartender” – “taberneiro míope”, segundo a pitoresca tradução de Santa Rosa. O crítico expressou toda a sua decepção por não constar da exposição a obra de Portinari, cujos murais do Rio de Janeiro já conhecia.

Santa Rosa partilha com os leitores o entusiasmo dos críticos de Nova York em relação à arte de Portinari e ao “caráter bem brasileiro” que ela lhes revelou. Rejubila-se com a “excelente lição” dada a um meio onde avultam os preconceitos de arte. Agrada-lhe que, enquanto a arte oficial “empalidecia e desafinava a representação do Brasil”, a música de Villa-Lobos, a arquitetura de Oscar Niemeyer e Lucio Costa e a pintura de Candido Portinari conquistavam seu merecido lugar de relevo. Ressalta que Portinari recebera no Museu de Arte Moderna, ao lado de Cézanne, Renoir, Degas e Picasso, as homenagens que no seu próprio país lhe haviam sido recusadas.

 

Well, well, well! Candido Portinari, o renegado, o pintor dos morros, das festas populares, dos jogos da infância, do café, dos pretos e mulatos, marcou, felizmente, para o Brasil, o único ponto, revelando bem alto, com a sua arte recusada, o nível real da nossa cultura artística.

 

Assim, esses artigos de Santa Rosa formalizam uma inquietação determinante para a geração da Novidade: a consciência crítica quanto à necessidade da arte de combater estereótipos, conciliando a busca de novas formas de expressão com a representação dos problemas brasileiros.

            Reprovando a arte interessada em encobrir as realidades da vida, o ilustrador se solidariza com Portinari, com os “pintores de monstros, de gente suja, do morro”. Impossível não recordar aqui a crônica “Norte e sul”, de abril de 1937[25], na qual Graciliano Ramos ironiza os defensores do “espiritismo literário”, incomodados com a revelação da miséria pelos romances nordestinos:

 

[…] Vamos falar mal de todos os romancistas que aludem à fome e à miséria das bagaceiras, das prisões, dos bairros operários, das casas de cômodos. Acabemos tudo isso.

E a literatura se purificará, tornar-se-á inofensiva e cor-de-rosa, não provocará o mau humor de ninguém, não perturbará a digestão dos que podem comer. Amém.

 

Agora se entendem melhor as imagens dos trabalhadores ao sol e das flores pisadas, responsáveis pela poesia de Santa Rosa. Sua felicidade com a criação pictórica não se desvinculava do olhar sensível e culpado em relação aos sofrimentos dos homens. Frequente em sua pintura era o tema dos trabalhadores, como os pescadores. Para ele, eram fundamentais e indissociáveis a arte e a denúncia de misérias. Daí a veemência com que defendeu o Café, de Portinari. Nesse contexto, vêm à mente as palavras de Graciliano Ramos numa carta de fevereiro de 1946 justamente a Portinari, cuja tela Retirantes é de 1944:

 

A sua carta chegou muito atrasada, e receio que esta resposta já não o ache fixando na tela a nossa pobre gente da roça. Não há trabalho mais digno, penso eu. Dizem que somos pessimistas pois exibimos deformações; contudo as deformações e a miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram.

O que às vezes pergunto a mim mesmo, com angústia, Portinari, é isto: se elas desaparecessem, poderíamos continuar a trabalhar? Desejaremos realmente que elas desapareçam ou seremos também uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos desgraças? […][26].

 

A um tempo, Graciliano demonstra consciência crítica quanto a seu papel de artista, de apontar as misérias da realidade, e sofre o impasse de dedicar a vida a dar forma estética às desgraças que afligem os homens. Santa Rosa partilhava das angústias do romancista. Ele o confessa num pequeno mas significativo bilhete de outubro de 1942, por ocasião do aniversário de cinquenta anos do escritor:

 

Graça querido:

Senti muito não ir ao jantar que os amigos te ofereceram. Não estive entre eles, mas estou entre os que mais te estimam. Esse meio século que cobriste ontem, sei o que te vale, de lutas, sofrimento e angústia. Sinto bem tudo isso e talvez esteja mais perto de ti, por isso mesmo.

Hoje, te envio o meu abraço, nesse começo de posteridade a que já chegaste.

Recebe-o como o do verdadeiro amigo

Santa Rosa

28/10/1942[27].

 

Por fim, novamente recorro às palavras de Drummond, que definem o Santa, a existência da arte e da amizade verdadeiras, a felicidade em meio aos sofrimentos da vida:

 

Por outro lado, não se tratava [a Casa José Olympio] apenas de uma loja simpática. Era também uma editora revolucionária, que lançava com ímpeto nomes conhecidos de pouca gente ou de ninguém. Apresentava um livro diferente e elegante, formato padronizado, capa desenhada por Santa Rosa (o que nem sempre era fácil de conseguir, pois o Santa, como a felicidade, não estava onde o procurassem, ou nunca o procuravam onde poderia estar), e o aspecto gráfico e o prestígio da casa acendiam nos escritores o desejo de figurar em seu catálogo.

Carlos Drummond de Andrade[28].

 


[1] CARPEAUX, Otto Maria. “Significação de ‘SR’” (de Retratos e leituras, 1953). In: Ensaios reunidos 1942-1978, Rio de Janeiro: UniverCidade & Topbooks, 1999, vol. I, pp. 633-6. O ensaio saiu com o título “SR” na Folha do Norte, de Belém, a 28 de setembro de 1947.

[2] CAVALCANTI, Valdemar. “Santa”. In: Jornal literário. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960, pp. 143-7.

[3] Em 1956, Santa Rosa foi para a Índia, participar da Conferência Internacional de Teatro, em Bombaim, e, como observador, da Conferência Geral da Unesco para a Educação, a Ciência e a Cultura, em Nova Délhi.

[4] Cf. LEBENSZTAYN, Ieda. Graciliano Ramos e a Novidade: o astrônomo do inferno e os meninos impossíveis. São Paulo: Hedra, 2010, capítulo 3, “A terra dos meninos impossíveis”; SANT’ANA, Moacir Medeiros de. História do modernismo em Alagoas (1922-1932). 2. ed. rev. e aum. Maceió: Edufal, 2003, pp. 235-6; BARSANTE, Cássio Emmanuel. A vida ilustrada de Tomás Santa Rosa. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil: Bookmakers, 1993, p. 17.

[5] CAVALCANTI, Valdemar. “Das estátuas”. In: Jornal literário. cit., pp. 30-1.

[6] Tempos depois da primeira versão deste texto (no capítulo 6, “Novidade literária”, de LEBENSZTAYN, Ieda. Graciliano Ramos e a Novidade: o astrônomo do inferno e os meninos impossíveis, cit.), saiu o livro Capas de Santa Rosa, de Luís Bueno (Cotia, SP; São Paulo: Ateliê Editorial; Edições Sesc, 2016).

[7] BARSANTE, Cássio Emmanuel. A vida ilustrada de Tomás Santa Rosa. cit.

[8] Idem, p. 9.

[9] Idem, p. 15. Cf. também HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. Tradução de Maria da Penha Villalobos e Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: T.A. Queiroz, Edusp, 1985, pp. 377-8.

[10] LINS, Álvaro. “Momento de plenitude: ‘Os Comediantes’” (Janeiro de 1944). In: Os mortos de sobrecasaca. (1940-1960). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963, pp. 301-9.

[11] “Por que Stanislaw Ponte Preta? Ele mesmo contou, em crônica publicada no jornal do Rio Última Hora, a 4 de dezembro de 1956 – crônica de homenagem à memória de Santa Rosa –, que partiu desse artista admirável a ideia da criação desse tipo literário. Na redação do Diário Carioca ele um dia disse a Sérgio Porto: ‘Vamos criar um personagem novo, um tipo cabotino, para comentar notícias sofisticadas, uma mistura de crítica teatral e café society’. E diz Sérgio Porto que Santa Rosa se tomou do maior entusiasmo pelo tipo, fazendo ilustrações para as crônicas e até escrevendo alguns tópicos”. CAVALCANTI, Valdemar. “Dados biobibliográficos do autor”. In: PONTE PRETA, Stanislaw. O melhor de Stanislaw: crônicas escolhidas. Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994, p. viii.

[12] HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. cit.

[13] RAMOS, Graciliano. Carta a Heloísa de Medeiros Ramos. Rio de Janeiro, 3 de março de 1937 (n. 95). In: Cartas. 7 ed. Rio de Janeiro: Record, 1992, p. 184.

[14] AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 1994, p. 24.

[15] Cf. ROSA, Santa. “Sobre a arte do livro”. In: Roteiro de arte. Os Cadernos de Cultura. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação, Ministério da Educação e Saúde, 1952, p. 37; BARSANTE, Cássio Emmanuel. A vida ilustrada de Tomás Santa Rosa. cit., p. 118.

[16] RAMOS, Graciliano. “A livraria José Olímpio”. In: Linhas tortas. 14 ed. Rio de Janeiro: Record, 1989, pp. 118-9.

[17] ANDRADE, Carlos Drummond de. “A um morto na Índia”. (A vida passada a limpo). In: Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964, pp. 297-8.

[18] Cf. CANDIDO, Antonio. “No aparecimento de Caetés”. In: Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, pp. 92-101.

[19] ANDRADE, Carlos Drummond de. “A um morto na Índia”.  (A vida passada a limpo). cit.

[20] ROSA, Santa. Roteiro de arte. cit. Cf. os capítulos “Sobre a arte da ilustração”, pp. 25-33, e “Sobre a arte do livro”, pp. 34-44.

[21] Cf. DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999; Idem. “Revista do Brasil (1938-1943): um projeto alternativo?”. In: DUTRA, Eliana de Freitas; MOLLIER, Jean-Yves (orgs.). Política, nação e edição: o lugar dos impressos na construção da vida política no Brasil, Europa e Américas nos séculos XVIII-XX. São Paulo: Annablume, 2006, pp. 315-334.

[22] ROSA, Santa. “Preconceitos”. Revista do Brasil, fev. 1939, ano II, 3ª fase, n. 8, pp. 96-7.

[23] E essa obra recebeu um prêmio muito honroso para a arte brasileira na Exposição do Instituto Carnegie, em Pittsburg, um dos mais famosos centros de arte do mundo.

[24] Idem. “A derrota dos preconceitos”. Revista do Brasil, ago. 1939, ano II, 3ª fase, n. 14, pp. 95-6.

[25] RAMOS, Graciliano. “Norte e sul”. In: Linhas tortas. cit., pp. 131-2.

[26] Carta de Graciliano Ramos a Candido Portinari. In: RAMOS, Clara. Mestre Graciliano: confirmação humana de uma obra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, pp. 130-1.

[27] Correspondência passiva, Arquivo Graciliano Ramos – Instituto de Estudos Brasileiros, IEB/USP.

[28] ANDRADE, Carlos Drummond de. “A Casa”. (Fala, amendoeira). In: Obra completa, cit., pp. 740-1.