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MORALIDADE E ESTADO DE DIREITO

A legitimidade carismática é um obstáculo ao desenvolvimento da democracia e da nítida percepção das instituições. Ela sacrifica o caráter abstrato da isonomia do Direito em nome das características personalíssimas de algum protagonista investido de dons salvíficos. Mas a racionalidade crítica e o deslumbramento com o carisma correm em sentidos opostos: a primeira requer a educação prolongada da cidadania e da opinião pública, o segundo, apenas uma manipulação eficaz dos afetos mais básicos. E é nesse mundo do carisma, continuado pelo universo empático das emoções, que assistimos a uma disputa de narrativas  capaz de transformar a combalida cena pública em uma arena de ódios que movem pesados redutores de complexidade, tais como o fantasma dos “golpes” e as perseguições aos “heróis” injustiçados.

Lamentavelmente, hoje não mais dispomos de homens de Estado capazes de debater a ossatura institucional a partir da qual a própria polarização da política se desenrola. O Estado é tratado como Governo e este, por sua vez, como aparelho. De outro lado, tampouco as narrativas jurídicas e judicias, que se dispõem a fracionar a miséria dos acontecimentos em microepisódios, logram dar conta de algo muito mais profundo e que opera como pressuposto elementar da tomada de posições nesse debate sobre a corrupção: o sentimento de justiça. É a partir das intuições do sentimento de justiça que boa parte dos comportamentos orientam-se segundo máximas e diretrizes suficientemente claras como esta: só os probos podem acusar os ladrões de roubar.  E a estatuição de um tal princípio, ao não admitir a relativização pelo argumento da “seletividade”, acaba colocando dramaticamente em xeque a suposta ascendência ética de certa esquerda para cuidar bem da coisa pública.

Abismado, venho chamando essa argumentação capciosa de “relativismo da probidade”, apontando tal retórica como um erro cometido pela esquerda de modo persistente. O “relativismo da probidade” transforma a moralidade pública em uma questiúncula aparentemente técnica, um tópico rapidamente reclamado pelos especialistas em direito divididos pelos interesses dos réus que são seus clientes e que tantas vezes os remuneram com recursos oriundos do próprio dinheiro do povo. Lula ontem engrossou esse caldo: atuando a partir de uma hábil performance empática, ele silenciou sobre a corrupção praticada por inúmeros atores de seu partido. E esse silêncio de Lula sobre a corrupção reiterou uma ambiguidade cínica e perigosíssima para nossa democracia, coisa que já se vinha manifestando no seguinte regime de encenação: publicamente, vagas críticas e condenações genéricas; internamente, os assaltantes do erário são aclamados como “mártires do projeto” e “heróis do povo brasileiro”.

Quando até os intelectuais, em momentos de crise, agem como claque em vez de serem os faróis da autonomia e do esclarecimento republicano, as perspectivas tornam-se ainda mais sombrias. Mesmo assim, é importante assinalar que toda a vasta sociologia de base marxista, que desde a Europa difundiu-se para a crítica da “seletividade” do sistema penal, tinha como propósito denunciá-lo em sua sistemática de recrutamento privilegiado de pobres e negros para o exercício punitivo do Estado. Que essa denúncia da “seletividade” dos pobres seja agora reclamada, episodicamente, para se defender a corrupção de riquíssimos banqueiros, empreiteiros, publicitários e altos funcionários de governos, causa-me um profundo desapontamento, mas não chega a me espantar por completo.

Quero então enunciar a minha compreensão de alguns fatos para além dos subterfúgios da gramática jurídica que vêm dominando a exposição fragmentária dos episódios: Mensalão, Lava Jato, Zelotes, fundos de pensão, BNDES, Correios e até mesmo o caso Celso Daniel fazem parte de um único e mesmo superesquema de apropriação de recursos públicos. E é absolutamente inútil imaginar que as microssegmentações do Direito Penal possam dar conta de uma narrativa tão intrincada e que ultrapassa em muito o diagrama do varejo interpretativo dos juristas, desenhado na (e para a) tradição liberal da responsabilização de indivíduos singulares. Contudo, até nisso a nossa miséria consegue ir mais longe. Uma vez que é ainda cedo para os historiadores se debruçarem sobre os nexos entre tais esquemas, sequer dispomos de um bom jornalismo investigativo, crível e de alta qualidade, divididos que estamos entre a tradicional mídia das elites e uma assessoria de imprensa do Governo disfarçando-se de cobertura independente enquanto é financiada por recursos públicos. Ademais, aqueles que empregam de modo histriônico e atécnico as palavras “golpe” e “fascismo” – muitos já em um delírio que beira à dissonância cognitiva – silenciam por completo sobre a faustosa remuneração das corporações de mídia mantidas com farta (e desnecessária) publicidade governamental.

Em um futuro próximo, os cientistas sociais independentes que restarem dignificando seus ofícios terão também um tarefa hercúlea envolvendo o atual momento: rastrear as tomadas de posições e cruzá-las, não com os lindos discursos teoréticos e apologéticos, mas com as tomadas de ações efetivas desses mesmos agentes no terreno da jurisdição que envolve casos de corrupção, revelando assim as práticas concretas e os interesses que subjazem às ávidas buscas por prestígio e distinção entre os notáveis do direito. Aliás, uma coisa que eu aprendi com alguns cientistas sociais veteranos é que, em matéria de uma sociologia rigorosa, a última coisa que se deve fazer é acreditar apenas no que os atores dizem a respeito de si próprios e perante seus respectivos grupos de legitimação.

Pagamos um preço altíssimo pelo colapso do nosso sistema de virtudes públicas. Nesse quadro, a ideologização maniqueísta é apenas mais uma face da brutal mediocrização do pensamento público brasileiro. Não só não temos mais homens de Estado, como aqueles poucos que tivemos sequer são lembrados pela lógica do inimigo que captura a política em uma bolha de disputas que transforma o povo em uma referência nominal e completamente exterior, exceto em dias de eleições. Entretanto, como se ouvirá na gravação mais adiante disponibilizada, isso chega a ser até uma característica do nosso processo de formação histórica, no qual se registram sucessivos abandonos da sociedade pelo Estado e seus Governos, assim como é também característica nossa um conjunto de resistências heroicas que permitem  ao povo desorganizado sobreviver a despeito das artimanhas e do egoísmo dos poderosos em desacordo entre si.

É muito fácil falar de Estado Democrático de Direito lembrando violações individuais de figuras proeminentes, sempre (e mesmo assim) condenáveis. Difícil mesmo é lembrar que, desde junho de 2013, pessoas morrem, são presas e sofrem as mais bárbaras e sistemáticas violências por protestarem nas ruas contra aquela que já pode ser apresentada como a mais degradante megaoperação entre governos e o setor privado no Brasil: o planejamento de se desviar bilhões de dólares para se realizar uma Copa do Mundo e uma Olimpíada mediante a contratação superfaturada de obras por empreiteiras, erigindo-se um conjunto de equipamentos inacabados e/ou sem nenhuma urgência por todo território de um país de terceiro mundo cuja infraestrutura encontra-se praticamente em frangalhos. A respeito disso, Lula declarou o seguinte: “tem gente que acha que não pode fazer Olimpíada porque não tem hospital. Olha, sinceramente, eu acho isso um retrocesso, sabe?”.

A crítica à afirmação acima não merece ser aprofundada. Haja ou não o impeachment, esse Governo, com ou sem Lula, sistematicamente teve por parceiros decisivos do seu projeto os seguintes atores: o bispo Edir Macedo, a enlameada FIFA, o latifúndio escravista e exportador do agronegócio, a devastação ambiental das mineradoras, os lucros estratosféricos dos bancos e das empreiteiras e uma base aliada originalmente integrada por Cunha, Renan Calheiros e Delcídio do Amaral. E àqueles que acham que eu não estou apontando os erros ou desmandos da direita,  só tenho uma coisa a dizer: pilhar o Estado é a própria vocação histórica dessa direita. E dado o nível de subdesenvolvimento do capitalismo brasileiro, a grande acumulação de riqueza é praticamente impossível entre nós sem essa promiscuidade com a coisa pública. Simples assim. Mas na medida em que a esquerda aceita relativizar tais práticas de atentado ao bem comum em nome do seu sucesso eleitoral, ela iguala-se organicamente à própria direita que deixa de combater, perdendo por completo a superioridade ética que lhe dava guarida nos enfrentamentos mais decisivos a respeito das desigualdades. Tal esquerda deixa inclusive de ser concebida, por setores do capital, como uma genuína força de ameaça, passando a ser tratada como uma atrevessadora comissionada às vezes servil, outras vezes inconveniente.

Sociedade acima do Estado

Há poucos dias, diante da súbita alteração fática do nosso regime de (des)governo, comentei jocosamente a nomeação de Lula como a implementação de umesquizoparlamentarismo cleptocrático de base carismático-midiática. No entanto, deixei de acrescentar algo que me parecia óbvio demais: sem base parlamentar. A ida de Lula para o Governo deve ser interpretada como uma continuação, no Congresso Nacional, das negociatas que também se desenrolam nos acordos de leniência que pretendem manter as empreiteiras corruptas em pleno funcionamento. São as imunizações e a busca de perpetuação de um mesmo sistema viciado. Tivesse o Governo alguma superioridade moral sobre tais quadrilhas que já o sustentam, tais empreiteiras seriam desapropriadas em nome do interesse público e sob o efusivo aplauso do povo, formando-se, com seus espólios e com a ajuda das universidades, uma Empresa Brasileira de Obras Públicas, voltada a gerar empregos e algo hoje desconhecido no panorama brasileiro: a excelência no acabamento, na duração, na funcionalidade e na beleza dos equipamentos urbanos e de infraestrutura. Observe-se ainda que, caso ocorressem tais desapropriações, absolutamente nenhum interesse mais delicado do capitalismo internacional seria aí violado, haja vista que tais empresas lidam com uma tecnologia e um conhecimento do século XIX: cimento, ferro e engenharia civil.

Entre um Governo visceralmente comprometido com a corrupção e os seus opositores que desde sempre também estiveram, não há disjuntiva política ou moralmente aceitável. Entretanto, não devemos temer os caminhos institucionais do Estado de Direito, mesmo que, mediante o aparecimento de provas sólidas, os cenários constitucionais de alternância que se apresentam como possibilidades sejam desalentadores – o impeachment no Congresso Nacional ou a impugnação da chapa no TSE, com convocação de eleições gerais em 90 dias. Em meio aos pedregulhos da corrupção e às miragens do marketing, contemplamos a desertificação causada pela ruína de nosso espírito público. E é nesse panorama que se deve cuidar da terra onde podem germinar novos agentes, em um processo que exige alguma paciência e capacidade de recuperar o solo e as sementes.

O reflorestamento da nossa cena pública não virá do inço e do joio daninhos que competem pelo exaurimento de uma mesma terra. Tudo indica que também não virá de certos partidos satélites que se comportam como seitas de aluguel que afluem à primeira convocação ecumênica  do culto carismático lulopetista. Talvez seja a hora de arrefecermos as paixões, impugnarmos as urgências catastróficas e contemplarmos um pouco o nosso deserto. Precisamos exercer a memória e darmos ouvidos àqueles poucos homens que, em momentos de crises até mais agudas que essa, alcançaram a grandeza de um pensamento sobre as instituições a partir do verdadeiro documento que há de reger a moralidade pública: a Constituição.

A permanência prolongada do PT em diversos governos produziu uma casta burocrática de baixa especialização técnica e que adota um comportamento corporativo já capaz de rivalizar com as elites tradicionais em seus movimentos de autopreservação. Mas essa burocratização ideológica que infla o aparelho de Estado e o converte em máquina eleitoral há muito não se traduz em melhorias da qualidade dos serviços para a população. Nesse quadro, a alta burguesia de São Paulo, representada pelo PSDB, passou a enfrentar a concorrência de um subproduto do sindicalismo de resultados com o qual conviveu prolongadamente: uma elite burocrático-partidária que descobriu o acesso a múltiplas fontes de recursos privados comuns (como os fundos de pensão) e públicos (Petrobras, BNDES) para manter com sucesso as suas estratégias eleitorais. E, no frigir dos ovos, a crise que se instaura pode ser assim resumida: o dinheiro desviado da Petrobras derrotou fragorosamente o da FIESP, e há inconformados nesse processo de concorrência desleal em uma disputa política comandada pelo dinheiro do marketing que tem como pior correlato seu uma cidadania desinformada e controlada pelo consumo.

Talvez a corrupção ibérica tenha produzido, na pena de Antônio Vieira, o mais elegante e virulento discurso contra a seletividade criminal capaz de distinguir entre a rapinagem dos pequenos e dos graúdos: o Sermão do Bom Ladrão. Nele, Vieira já estabelecia essa disjuntiva: “O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera.”. Com a ousadia e a coragem que a sua genialidade lhe facultavam, Vieira proferiu suas palavras perante o próprio Dom João IV  e sua corte formada por inúmeros funcionários de Estado, na Igreja da Misericórdia de Lisboa, em 1655. Tecendo um libelo contra os desmandos dos áulicos, Vieira chega à ousadia de dizer que a própria palavra ladrão deriva exatamente daqueles que vivem ao redor do Príncipe: “Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se laterones. E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones. E que seria se assim como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa? O que só digo e sei, por teologia certa, é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: Principes tui socii rurum: os teus príncipes são companheiros dos ladrões. E por que? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo.”. 

Em pouco tempo, a História baterá à porta daqueles que se reclamam de esquerda pedindo uma resposta  franca à pergunta decisiva que Antônio Vieira formulara lá no século XVII:  “Se nos vendemos tão baratos, porque nos avaliamos tão caros?”. A probidade é condição de possibilidade da política. E ter a consciência que aí se trata de uma condição necessária, mas jamais suficiente, torna-se indispensável para que a honestidade não se converta em plataforma de coisa alguma. Eis o lugar profundo onde radica a nossa estranha crise: em pleno século XXI, já na era do enfraquecimento do Estado e com uma cidadania de precária educação, ainda nos falta um acordo elementar sobre as condições éticas, materiais e institucionais da competição na Política. Entretanto, com todos os tropeços que uma luta fratricida entre elites antigas e recentes envolve, acho que temos boas razões para enxergarmos algumas flores brotando em nosso deserto. Pela primeira vez  – e apesar de alguns excessos – vimos os poderosos efetivamente sendo condenados e presos. E a estranha sensação de que pode não sobrar ninguém se todos forem punidos não deve nos angustiar, pois o sentido da crise também envolve abrir-se ao desconhecido e dispor-se a combates ainda piores. O certo é que ninguém enfrenta máfias e hordas terríveis com palavras macias e uma flor na boca. Então, esses que forem chamados a responder à pergunta de Vieira perante o Tribunal da História terão também de explicar por que, afinal, preferiram criticar a “seletividade” dos ricos em vez de reconhecerem a ruptura de uma prolongada “imunidade” sob a qual eles sempre viveram e proliferaram as suas riquezas amealhadas do bem comum. O resto todo é aquela parte de Vieira que hoje não mais se sustenta: esperar por Dom Sebastião.

Destaquei abaixo, no discurso de Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição de 1988, as duas premissas fulcrais que falam diretamente ao coração e à mente dos que procuram algum lampejo de lucidez nessa noite dos desgraçados que se abate sobre Brasil: “não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube” e “a sociedade é maior que o Estado”. Que essas palavras do gigante gentil que era Ulysses nos tragam a força para começarmos um movimento que finalmente conduza à capacidade de romper com esses que aí estão. Mesmo que para tanto seja necessário abandonarmos nossos salvadores e enfrentamos um processo traumático de autocrítica, seguido de um reagrupamento em torno de princípios morais bem mais rígidos e de programas efetivamente muito mais concretos em sua radicalidade democrática.

https://soundcloud.com/marcus-fabiano-1/corrupcao-sociedade-e-estado-ulysses-guimaraes


 Sobre Marcus Fabiano Gonçalves

É gaúcho e radicado no Rio de Janeiro, onde é professor de Hermenêutica e Filosofia do Direito na Universidade Federal Fluminense - UFF. Em 2012 saiu, pela editora 7Letras, Arame Falado, o seu segundo livro de poemas. O autor também publica poemas e ensaios no seu blog.