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O direito materno

Introdução e tradução[1]: Tomaz Amorim Izabel[2]

A história de recepção de “O direito materno” (Das Mutterrecht) de J. J. Bachofen é tão interessante quanto as diversas fases da pré-história que o livro teoriza. Do campo dos estudos clássicos e da história do direito, a obra de Bachofen foi retirada de sua modesta posição acadêmica na Basiléia e trazida ao intenso campo político por Friedrich Engels em seu clássico “A origem da família, da propriedade privada e do estado”. Engels reconheceu no trabalho de Bachofen a imagem de uma espécie de comunismo primitivo, tanto denunciando a subjugação do gênero feminino, como sua contribuição para a evolução da civilização humana. Ainda no campo da esquerda, foi Paul Lafargue em seguida quem aprofundou e disseminou a leitura de Bachofen feita por Engels através de uma ideia revolucionária de matriarcado. Mas outras leituras, mais místicas e essencialistas, como a de Ludwig Klages, também ofereceram material à extrema direita que já no começo do século XX se apropriou da obra, diminuindo os aspectos emancipatórios e celebrativos da contribuição das mulheres, e focando sobretudo nas representações essencialistas dos gêneros, ao gosto quase romântico da época de Bachofen. Julius Evola é um dos nomes associados ao fascismo em ascensão que marcaram essa recepção. De novo no campo da esquerda, Erich Fromm e Walter Benjamin foram outros que buscaram disputar a obra de Bachofen com a direita e seu pensamento conservador. Benjamin elogia sobretudo seu equilíbrio, seu gesto arqueológico e seu método de “cientista diletante”, comparando-o com as investigações botânicas e físicas de Goethe.

Na mesma época no Brasil, foi Oswald de Andrade, provavelmente a partir da tradução em francês, quem se apropriou da ideia de um passado primitivo em que estava abolida a dominação patriarcal e, associando este primitivismo à experiência histórica dos povos indígenas brasileiros e ao primitivismo estético do movimento modernista, mobilizou a potente ideia de um matriarcado indígena – o Matriarcado de Pindorama – contra o patriarcado ocidental, em uma crítica a um só tempo contra a propriedade privada e a dominação masculina. A ideia de um Matriarcado de Pindorama, como mencionado celebremente no Manifesto Antropófogo, foi desenvolvida posteriormente décadas depois na tese “A crise da filosofia messiânica” e é central no pensamento oswaldiano, em sua tentativa humorística e crítica de desmontar os grandes sistemas ideológicos do Ocidente. Nesta imagem de um matriarcado por vir, atualização a partir da lembrança ativa dos diversos matriarcados que já houve, misturam-se e explodem tensões de classe, raça e gênero em uma perspectiva claramente anticolonial e de gesto emancipatório. Saem os velhos deuses e sacerdotes, papais e papaizinhos “messiânicos”, como Oswald os chama, e entram atualizadas as figuras das amazonas pré-históricas, desta vez não as guerreiras gregas (libertadores das mulheres na fase hetaírica da pré-história, segundo Bachofen), mas as índias da Amazônia, deglutindo Antiguidade e presente, produzindo uma imagem de futuro emancipado.

 

          Direito materno: Prefácio e Introdução

            O presente tratado discute uma descoberta histórica que, tendo sido observada por poucos, não foi investigada em sua inteireza por ninguém. A ciência da Antiguidade até agora não nomeou o direito materno [Mutterrecht][3]. A expressão é nova, e a situação familiar que ela descreve é desconhecida. A maneira de lidar com tal objeto tanto apresenta estímulos, como oferece dificuldades incomuns. Não apenas faltam trabalhos significativos, mas a pesquisa até o momento não apresentou absolutamente nada para o esclarecimento do período cultural ao qual o direito materno pertence. Nós adentramos um terreno que aguarda seu primeiro cultivo. Partindo dos tempos conhecidos da Antiguidade, nos encontramos em períodos anteriores, partindo do mundo de pensamento familiar até agora para nós, recuamos até outro completamente diferente. Aqueles povos cujos nomes costumam estar associados à glória da grandeza antiga ocupam apenas o plano de fundo. Outros, que nunca atingiram o nível da cultura clássica elevada, tomam seu lugar. Um mundo desconhecido se abre diante de nossos olhos. Quanto mais profundamente o penetramos, mais peculiar tudo se torna à nossa volta. Em todos os lugares surgem oposições às ideias de uma cultura desenvolvida, em todos os lugares surgem visões mais antigas, uma era de costumes próprios, uma moralidade que só pode ser julgada de acordo com sua própria lei fundamental. O direito familiar ginecocrático permanece estranho não apenas para o nosso de hoje, mas já para a consciência antiga. Estranha e em posição singular ao lado da helênica, surge aquela lei da vida original a qual pertence o direito materno, a partir da qual ele surgiu e exclusivamente a partir da qual ele pode ser explicado. A maior intenção da pesquisa a seguir é estabelecer o princípio motor da era ginecocrática e apontar a sua verdadeira relação, por um lado, com uma camada da vida mais profunda e, por outro, com uma cultura mais desenvolvida. A minha pesquisa se coloca, portanto, uma tarefa mais ampla do que parece indicar o título escolhido. Ela se espalha por todas as partes da moralidade ginecocrática, procura determinar seus traços individuais e, em seguida, a ideia básica na qual eles se unem, reconhecendo assim a imagem de um nível cultural que foi reprimido ou completamente superado pelo desenvolvimento subsequente da Antiguidade. O alvo está colocado bem alto. Mas somente através da ampliação do campo de visão é possível alcançar a verdadeira compreensão e assim o pensamento científico pode ser levado à clareza e perfeição que formam a essência do conhecimento. Quero tentar apresentar claramente o desenvolvimento e o escopo de meus pensamentos e, assim, preparar e facilitar o estudo do tratado a seguir.

            De todos os relatos que prestam testemunho à existência e à disposição interna do direito materno, os relativos ao povo lício são os mais claros e mais valiosos. Os lícios, relata Heródoto, não nomeavam seus filhos de acordo com seus pais, como os helenos, mas exclusivamente de acordo com suas mães; destacavam apenas a linha ancestral materna em todos os dados genealógicos e julgavam o status dos filhos exclusivamente de acordo com o da mãe. Nicolau de Damasco complementa essa informação enfatizando os direitos de herança exclusivos das filhas, que ele atribui ao direito consuetudinário da Lícia, a lei não escrita e dada pela própria divindade, de acordo com a definição de Sócrates. Todos esses costumes são expressões de uma mesma visão fundamental. Heródoto não vê nada mais do que um desvio peculiar dos costumes helênicos, mas a observação de sua coerência interna, por outro lado, deveria conduzir a uma compreensão mais profunda. Somos confrontados não com falta de regras, mas com sistema, não com arbitrariedade, mas com necessidade, e como qualquer influência de uma legislação positiva é expressamente negada, a suposição de uma anomalia sem sentido perde a aparência última de autenticidade. Ao lado do princípio paterno helênico-romano entra um direito familiar que é completamente oposto em sua base e em sua construção, e, comparando-os, as peculiaridades de cada um surgem sob uma luz ainda mais clara. Essa concepção é confirmada pela descoberta de visões semelhantes em outros povos. O direito exclusivo de herança das filhas, de acordo com a lei lícia, corresponde à obrigação igualmente exclusiva das filhas de alimentar os adultos mais velhos, de acordo com o costume egípcio sobre o qual testemunha Diodoro. Se esta prescrição parece consumar a expansão do sistema lício, uma mensagem recebida por Estrabão sobre os cantábricos leva-nos a uma outra consequência desta mesma visão básica, a eleição da cônjuge e o pagamento do dote dos irmãos pelas irmãs. Se todos esses traços se unem em um pensamento comum, eles também contêm uma instrução muito mais geral. Eles fundamentam a convicção de que o direito materno não pertence a nenhum povo em particular, mas a um nível cultural que, pela uniformidade e regularidade da natureza humana, não pode ser condicionado ou limitado ao parentesco com qualquer povo, e que, finalmente, é preciso ter em vista menos a igualdade das manifestações específicas do que a conformidade da visão básica. Além da série desses pontos de vista gerais, a consideração dos relatos de Políbio sobre as cem casas nobres de genealogia materna do Lócrio epicefírio acrescenta dois outros pontos ligados mais internamente, cuja correção e importância se comprovaram no curso da pesquisa. O direito materno pertence a um período cultural mais antigo que o sistema de paternidade, seu florescer pleno e intacto entra em decadência a partir da formação vitoriosa deste último. De acordo com isso, formas de vida ginecocráticas são particularmente evidentes nas tribos que se opõem aos povos helênicos como raças mais antigas; elas são parte integrante dessa cultura original, cujo caráter peculiar está tão intimamente relacionado ao principado da maternidade [Muttertum], quanto o do Helenismo ao domínio da paternidade [Paternität].

Esses princípios, retirados de um pequeno número de fatos, recebem uma confirmação irrefutável no curso da pesquisa por uma infinidade torrencial de fenômenos. Se os “lócrios” nos levam aos “léleges”, rapidamente eles se juntam aos cários, etólios, pelasgos, cáucones, árcades, epeios, mínios, telebeus, e, em todos eles, o direito materno e os costumes baseados nele emergem em uma grande variedade de traços individuais. O surgimento do poder e da grandeza femininos, cuja contemplação despertou espanto já nos antigos, dá a cada um dos retratos individuais dos povos – por mais peculiares que sejam suas cores – o mesmo caráter consistente de grandeza antiga e um tipo de originalidade diferente da cultura helênica. Nós reconhecemos a ideia básica que segue o sistema genealógico das “Naupáticas”, das “Eeas” e do “Catálogo de Mulheres”[4]; que surge da relação de mães imortais com pais mortais, da ênfase nos bens e no nome materno, da intimidade representada pela irmandade de mãe; finalmente, que é baseada no nome “mãe terra” (Mutterland), na santidade maior das sacrificadas e, por fim, na inexpiabilidade do matricídio.

Aqui, onde não se trata de especificar o individual, mas de ressaltar pontos de vista abrangentes, deve ser enfatizada a importância da tradição mítica para nossa pesquisa. A ligação preferencial do direito materno com as tribos mais antigas do mundo grego significa que é precisamente essa primeira forma de tradição que é de particular importância para o conhecimento da ginecocracia, e também pode-se esperar desde o início que a posição do direito materno tenha grande importância no mito, que corresponda na vida o mesmo que o centro de toda uma cultura. A questão surge com mais urgência: que importância atribuímos em nosso âmbito a essa forma originária de tradição humana e que direito temos de fazer uso de seus testemunhos? A resposta para isso deve ser preparada considerando um único exemplo pertencente ao círculo das lendas lícias.

Ao lado do testemunho completamente histórico de Heródoto, a história mítica da realeza oferece um caso de direito de herança materna: não os filhos de Sarpedão, mas Laodâmia, a filha, é que tem o direito de herdar e transferir o reino para seu filho, que termina por excluir os tios maternos. Uma história contada por Eustáquio dá a esse sistema hereditário uma expressão simbólica na qual a ideia básica do direito materno pode ser reconhecida em sua sensibilidade. Se tivéssemos perdido os testemunhos de Heródoto e Nicolau, o ponto de vista predominante tentaria primeiro invalidar a história de Eustáquio, com a objeção de que sua autenticidade não pode ser demonstrada por fontes antigas ou mesmo contemporâneas; em seguida, seu próprio mistério seria dado como prova de invenção por algum mitógrafo bobo e, finalmente, o fato, ao redor do qual o mito se juntou como uma fruta em volta da semente, seria invertido, como uma invenção do mito e, tal como lixo inútil, atribuído a essas notas inutilizáveis, cujo número crescente diariamente expressa o progresso destrutivo do chamado exame crítico do material da tradição. A comparação do relato mítico com o relato histórico mostra toda a injustiça desse procedimento sob sua luz mais clara. Confirmada pela prova de fatos historicamente estabelecidos, a tradição mítica é reconhecida como verdadeira a partir do testemunho dos tempos pré-históricos – isenta da influência de uma fantasia que cria livremente – e a prerrogativa de Laodâmia sobre seus irmãos deve ser considerada como prova suficiente do direito materno lício. É difícil descobrir um traço pertencente ao sistema ginecocrático que careça de uma semelhante prova de verdade, mesmo que ele nem sempre possa ser deduzido da história dos mesmos povos. Mesmo o caráter geral da cultura ginecocrática não precisa de forma alguma desse paralelo: ambos são resultado da preservação, pelo menos parcial, do direito materno até tempos tardios. Nas tradições míticas e nas tradições estritamente históricas, encontramos de maneira consistente as peculiaridades do mesmo sistema. Surgem lado a lado aparições dos tempos mais antigos e aparições posteriores, às vezes de períodos muito novos, surpreendem pela harmonia e fazem esquecer das grandes lacunas temporais que as separam. Que influência esse paralelismo deve exercer sobre toda a visão da tradição mítica? Como ela torna insustentável a posição da pesquisa atual e a distinção já vacilante entre os tempos históricos e pré-históricos, especialmente para a parte mais importante da história: o conhecimento das visões e condições antigas? A tradição mítica, respondendo agora às perguntas acima, aparece como manifestação fiel da lei da vida daqueles tempos, em que o desenvolvimento histórico do mundo antigo tem seus fundamentos; aparece como a manifestação da forma de pensamento original, como revelação histórica imediata e, portanto, como fonte histórica verdadeira da mais alta confiabilidade.

A prerrogativa de Laodâmia sobre seus irmãos leva Eustáquio à constatação de que tal favor pelas filhas em detrimento dos filhos contradiz as visões helênicas. Essa afirmação merece tanto mais atenção, quanto mais jovem a fonte em que a encontramos. Ao contrário dos partidários da crítica de hoje, o bizantino instruído não suspeita da anomalia que a lenda parece conter, e, menos ainda, modifica o que foi transmitido. Essa submissão fiel à tradição, sem garantias, tratada frequentemente como transcrição irrefletida, é a melhor garantia de confiabilidade, mesmo em relatos posteriores. Em todas as áreas de pesquisa da Antiguidade, há a mesma fidelidade e precisão na manutenção e reprodução da tradição, o mesmo cuidado ao meter a mão nos restos do mundo antigo. Devemos a este cuidado a capacidade de reconhecer com certeza a disposição interior dos primeiros tempos e traçar a história do mundo do pensamento humano até aquele início de onde surgiu seu desenvolvimento posterior. Quanto menor a propensão à crítica e a combinações subjetivas, maior a confiabilidade e mais distante o risco de falsificação.

Para o direito materno, em particular, o mito oferece mais uma garantia de autenticidade. Sua contraposição às ideias dos tempos posteriores é tão mais profunda e radical que, sob o domínio deles, não foi possível estabelecer uma imaginação de fenômenos ginecocráticos. O sistema da paternidade segue uma visão para a qual a lei mais antiga aparecia como um enigma, e que, portanto, não foi capaz de dar origem a um único traço do sistema de direito materno. O direito de primazia de Laodâmia não poderia ter sido inventado sob a influência das ideias helênicas, que ele contradiz, e o mesmo vale para os inúmeros vestígios do mesmo modo de vida que podem ser encontrados entrelaçados na pré-história de todos os povos antigos, sem exceção de Atenas e Roma, esses dois representantes mais decididos da paternidade. Cada tempo segue, inconsciente, mesmo em sua poesia, as leis da sua própria vida. É tão grande a violência que elas exercem, que sempre se afirma a tendência natural de redesenhar o tempo anterior e divergente de uma maneira atual. As tradições ginecocráticas não escaparam a esse destino. Encontraremos numerosos casos em que os efeitos retroativos das visões posteriores sobre os vestígios dos antigos e as consequências da tentação de substituir o incompreensível pelo compreensível, ao gosto da própria cultura, vêm à luz em termos muito estranhos. Traços antigos são substituídos por novos, as nobres figuras do pré-mundo ginecocrático são apresentadas aos nossos contemporâneos no espírito de sua própria existência, as expressões duras são retratadas sob uma luz mais branda, com direito, também as atitudes, razões, paixões são julgadas de acordo com os pontos de vista hoje reinantes. Não é incomum que novos e velhos, de repente, se encontrem próximos um do outro; em outros lugares, acontece o mesmo fato, a mesma pessoa em uma visão dupla, do mundo primitivo e do tardio: lá, sem culpa, aqui, criminosa; lá, cheia de grandeza e dignidade, aqui, um alvo de repulsa, depois causa de uma palinódia. Em outros casos, a mãe cede lugar ao pai, a irmã ao irmão, que agora entra na lenda ao invés ou no lugar dela, em uma fórmula, a nomeação feminina do masculino – esta é a consequência da visão materna para as reivindicações da teoria formada da paternidade. Quanto mais longe em espírito se imagina uma cultura que foi superada, perdida, mais o tempo tardio se esforçará por estender o domínio das próprias ideias a fatos e fenômenos estranhos a ele. Esta é a maior garantia de autenticidade de todos os vestígios míticos da era ginecocrática. Eles têm a força de evidências perfeitamente confiáveis. Naqueles casos que não conseguiram escapar da influência deformadora da posteridade, o mito contém uma fonte de conhecimento ainda mais rica. Como as mudanças surgem com frequência muito maior de um ceder inconsciente às ideias da época, e apenas mais rara e excepcionalmente de uma hostilidade deliberada contra os antigos, a lenda, em suas mudanças, se torna a expressão viva dos estágios de desenvolvimento do povo, com o qual ela caminha no mesmo passo, e se torna, para o observador capaz, reflexão fiel de todos os períodos de sua vida.

A posição que esta pesquisa da tradição mítica toma para si, espero, agora se tornará tão clara, quanto justificada. A riqueza de resultados para os quais ela conduz, no entanto, só pode ser reconhecida a partir do exame particular. Nossa moderna pesquisa histórica, que se concentra exclusivamente na determinação de eventos, pessoas e relações temporais, estabeleceu uma oposição entre o tempo histórico e o tempo mítico. E o afastamento indevido deste último dos estudos clássicos abriu um caminho no qual um entendimento mais profundo e coerente acaba não sendo alcançado. Onde quer que entremos em contato com a História, as condições são tais que pressupõem estágios anteriores da existência: em nenhum lugar o começo, por todo lugar a continuação, em nenhum lugar a mera causa, sempre, ao mesmo tempo, a consequência. A descoberta verdadeiramente científica consiste então não apenas em responder à pergunta sobre “o que”? Sua completude só se dá quando é possível descobrir o “de onde” e saber ligá-lo ao “para onde”. O saber só é elevado ao conhecimento quando consegue abranger origem, progresso e fim. Mas o começo de todo o desenvolvimento está no mito. Qualquer pesquisa mais profunda sobre a Antiguidade, portanto, conduzirá inevitavelmente a ele. É ele que carrega em si as origens, só ele é capaz de revelá-las. As origens, no entanto, determinam o progresso tardio, dão a linha que ele segue, sempre segundo sua direção. Sem conhecer as origens, o saber histórico nunca pode se completar. Essa separação entre mito e história, fundamentada na medida em que descreve a diferença entre os modos de expressão dos acontecimentos na tradição, não tem, portanto, nem significado, nem justificativa, diante da continuidade do desenvolvimento humano. Ela deve ser abandonada no nosso campo de pesquisa. Todo o sucesso da pesquisa depende fundamentalmente disso. As formações do direito familiar nos tempos conhecidos da Antiguidade não são condições originais, mas consequências de estágios anteriores de vida. Vistas isoladamente, elas aparecem apenas em sua realidade, não em sua causalidade, são fatos isolados, mas, como tal, são, no máximo, objeto do saber, nunca do conhecimento. Pela severidade com que se produz, o sistema de paternidade romano aponta para um sistema anterior, que deve ter sido combatido e renegado. A alta paternidade, revestida com a pureza da natureza apolínea, na cidade da filha sem mãe de Zeus, Atena, aparece nada menos do que como o ápice de um desenvolvimento cujos primeiros estágios devem ter pertencido a um mundo de pensamentos e condições muito diferentes. Como podemos entender o fim, se os princípios são um mistério para nós? Onde eles podem ser encontrados? Não há dúvidas sobre a resposta. No mito, a imagem fiel dos tempos mais antigos; aqui ou em lugar nenhum.

A necessidade de conhecimento coerente não raramente levou a tentativas de encontrar alguma satisfação através da construção de especulações filosóficas na busca pelo conhecimento das origens, e assim preencher com figuras sombrias de um jogo mental abstrato as grandes lacunas abertas pelo sistema dos tempos. Estranha contradição, rejeitar o mito por sua poesia e, ao mesmo tempo, abandonar-se com tanta confiança às próprias utopias! A pesquisa a seguir evitará cuidadosamente todas as tentações deste tipo. Cuidadosamente, talvez seguindo timidamente demais o continente, seguindo todas as curvas e baías da costa, evitando assim o alto mar, seus perigos e acasos. Onde não há experiência prévia, o específico deve ser examinado acima de tudo. Somente a riqueza do detalhe oferece as comparações necessárias, e através delas é possível distinguir o legítimo do acidental, o legitimamente geral do local; somente tal riqueza fornece os meios para alcançar pontos de vista cada vez mais abrangentes. O mito é acusado de ser como a areia movediça, que não permite que os pés se mantenham firmes em nenhum lugar. Mas esta reprovação não se aplica às coisas, mas ao modo de tratamento. Multifacetado e mutável em sua aparência externa, o mito, no entanto, segue certas leis, e não é menos rico em resultados seguros e firmes do que qualquer outra fonte de conhecimento histórico. Produto de um período cultural em que a vida dos povos ainda não tinha abandonado a harmonia com a natureza, ele compartilha com ela aquela legitimidade inconsciente que sempre falta nos trabalhos de livre reflexão. Em todos os lugares, Sistema, em todos os lugares, conjunção, em todas as especificidades individuais, a expressão de uma grande lei fundamental que, na riqueza de suas manifestações, possui a mais alta garantia de verdade interior e necessidade natural.

           

A cultura ginecocrática mostra a uniformidade de um pensamento dominante em um grau particularmente alto. Todas as suas peças são de uma mesma forja, trazem a marca de um estágio de desenvolvimento autônomo do espírito humano. O principado da maternidade na família não pode ser pensado como um fenômeno isolado. Uma ética, como a que contém em si o florescimento do Helenismo, é incompatível com ela. A mesma oposição que impera sobre os princípios da paternidade e do direito materno deve necessariamente permear toda a estrutura da vida que envolve cada um dos dois sistemas. A primeira observação em que essa consistência do pensamento ginecocrático prova o seu valor está na preferência pelo lado esquerdo sobre o lado direito. A esquerda pertence à potência natural do feminino enfermiço, a direita à potência natural do masculino ativo. O papel que a mão esquerda de Ísis representa nas terras do Nilo, majoritariamente ligadas ao direito materno, é suficiente para deixar clara a ligação ressaltada. Outros fatos então afloram em grande número, assegurando-lhe toda a sua importância, universalidade, originalidade e independência da influência de especulações filosóficas. Nos costumes e hábitos da vida civil e cultural, nas peculiaridades do vestuário e do penteado, também no sentido das expressões individuais, a mesma ideia se repete sempre, a maior honos laevarum partium[5] e sua ligação interna com o direito materno. Não menos importante é uma segunda expressão da mesma lei fundamental, a primazia da noite sobre o dia, que nasce do ventre dela. O mundo ginecocrático foi totalmente anteposto à parte contrária. Já os antigos colocavam em uma mesma linha a preferência pela noite com a preferência pela esquerda e ambas com o princípio da maternidade; e o cálculo do tempo pelas noites também se mostra em costumes e tradições antigas; a escolha do tempo noturno para lutar, para aconselhar, para falar da lei; também a preferência pelo escuro nos exercícios rituais mostra que não estamos tratando de pensamentos filosóficos abstratos de surgimento posterior, mas da realidade de um modo de vida inicial. A busca pelo mesmo pensamento leva a outros reconhecimentos imediatos como características indispensáveis da era materna do mundo, como a preferência cúltica pela lua diante do sol, pela terra receptora diante do mar fertilizante, pelo lado escuro da morte da vida natural diante da luz do devir, pelo morto diante do vivo, pelo luto diante da alegria, e todos esses traços adquirem no decorrer da pesquisa uma comprovação sempre nova e um significado cada vez mais profundo.

Já temos diante de nós um mundo de pensamento em cujo âmbito o direito materno já não aparece como uma forma de vida estranha e incompreensível, mas sim como figura homogênea. O quadro das lacunas e manchas escuras ainda oferece algo a mais, no entanto. Mas é do poder peculiar de toda percepção mais profundamente fundada atrair rapidamente tudo o que está relacionado ao seu círculo e saber encontrar o seu caminho a partir do mais óbvio até o mais obscuro. Os apontamentos silenciosos dos antigos são então frequentes o bastante para revelar novos olhares. A distinção entre a posição da irmã e o nascido mais novo é um exemplo instrutivo. Ambos pertencem ao princípio materno do direito familiar, ambos são adequados para expandir sua ideia fundamental em novos desdobramentos. O significado da posição da irmã é revelado por uma observação de Tácito sobre a visão germânica dela, e uma nota correspondente de Plutarco sobre os costumes romanos prova que também aqui não estamos lidando com uma visão aleatória, local, mas com a consequência de uma ideia geral fundamental. No “Heróico” de Filóstrato, um trabalho, ainda que tardio, dos mais importantes para o esclarecimento das ideias mais antigas, a distinção do filho mais novo é a mais reconhecida. Ambos os traços logo se envolvem com um grande número de exemplos individuais – alguns dos quais, em parte retirados da tradição mítica, em parte retirados das condições históricas dos povos antigos ou ainda vivos – provam ao mesmo tempo sua universalidade e originalidade. Não é difícil perceber qual lado do pensamento ginecocrático é seguido por um e qual pelo outro. A “distinção da irmã diante do irmão” só empresta uma nova expressão à da filha diante do filho, enquanto a distinção do filho mais novo vincula a continuidade da vida àquele ramo da tribo-mãe que, por ter sido criado por último, também será alcançado por último pela morte.

Preciso agora indicar quais novas perspectivas essas percepções abrem? Como o julgamento humano seguindo as leis da vida natural, que leva à preferência pelo rebento da última primavera, concorda com a parábola lícia sobre as folhas das árvores? Como ele nos apresenta o próprio direito materno como a lei do corpo-material, não da vida espiritual superior? E o mundo do pensamento ginecocrático em geral como emanação da visão materna-telúrica, não da visão paterna-urânica da existência humana? Ou, por outro lado, é preciso chamar a atenção para quantos ditados dos antigos, quantas aparições de estados ginecocráticos são esclarecidas a partir do relato de Tácito sobre o pensamento germânico e o efeito de longo alcance da unidade familiar assentada na irmã, e que estão disponíveis para uso no desenvolvimento do nosso trabalho? O amor maior à irmã nos introduz a um dos aspectos mais dignos da existência fundada sobre o princípio materno. Tendo primeiramente enfatizado o lado legal da ginecocracia, entramos agora em contato com o seu significado moral. Se essa lei, ao contrário do que estamos acostumados a considerar como lei natural da família, nos surpreendeu e nos atormentou com sua incompreensão inicial, esse sentimento natural, que não é estranho a nenhuma época, encontra um apelo que, por assim dizer, nos ajuda imediatamente a compreendê-lo. Nos níveis mais profundos e obscuros da existência humana, o amor que liga a mãe aos nascidos do seu útero forma o ponto luminoso da vida, a única iluminação das trevas morais, a única bem-aventurança no meio da profunda miséria. A observação de povos ainda vivos de outras partes do mundo, ao trazer este fato à consciência novamente, também colocou em sua devida luz a importância daquelas tradições míticas que os primeiros chamam Filopatores[6] e que enfatizam seu aparecimento como um importante ponto de inflexão na moralidade humana. A ligação íntima do filho com o Pai – o sacrifício do Filho por seu criador – exige um grau de desenvolvimento moral muito superior ao do amor materno, esse poder misterioso que permeia igualmente todos os seres da criação terrena. Ela vem à tona mais tarde do que ele e mostra seu poder. Aquele vínculo, em que a humanidade se eleva primeiro à moralidade, aquele que serve de ponto de partida para o desenvolvimento de toda virtude, para a formação de todo aspecto nobre da existência, é a magia da maternidade, que em meio a uma vida cheia de violência se torna efetiva como princípio divino do amor, da unidade e da paz. No cultivo do fruto do ventre, a mulher aprende mais cedo do que o homem a estender seu cuidado amoroso a outros seres além dos limites do seu próprio eu, e a direcionar toda a criatividade que seu espírito possui para a preservação e o embelezamento da existência do outro. Dela emana agora toda elevação da moralidade, dela, toda boa ação na vida, toda devoção, todo cuidado e todo lamento pela morte.

A expressão que essa ideia encontrou no mito e na história é múltipla. Isso aparece quando o cretense estabelece o mais alto grau de amor pela pátria natal através da expressão metropolis[7]; quando o comunal do ventre materno é enfatizado como vínculo mais íntimo, verdadeiro e originalmente único entre irmãos; quando assistir a mãe, protegê-la, vingá-la, aparece como o dever mais sagrado; quando ameaçar sua vida significa perder qualquer esperança de expiação, mesmo que isso tenha sido feito à serviço da paternidade ferida. Devo me perder em mais detalhes? Estes são suficientes para despertar nossa adesão à disposição moral da cultura a que pertence o direito materno. Quão significativos parecem agora todos aqueles exemplos em que a fidelidade é assegurada pelas mães, pelas irmãs, em que o perigo ou a perda das irmãs leva a grandes dificuldades, em que, finalmente, os pares de irmãs assumem tipicamente uma posição geral. Mas o amor que vem da maternidade não é apenas íntimo, mas também geral e engloba círculos mais amplos. Tácito, que aponta para este pensamento limitando-se à “relação das irmãs” [Geschwisterverhältnis] entre os germanos, dificilmente terá compreendido todo seu significado e a grande extensão em que ele é historicamente verdadeiro. Se no princípio paterno está a limitação, no princípio materno está comunalidade; se aquele traz consigo o cerceamento a círculos mais estreitos, este não conhece cercas, como tampouco as conhece a vida natural. Da maternidade [Muttertum] parturiente se origina a fraternidade geral de todos os homens, cuja consciência e reconhecimento desaparecem com a formação da paternidade [Paternität]. A família fundada sobre o direito paterno termina em um organismo individual, enquanto a família do direito materno, por outro lado, tem aquele caráter típico comunal com o qual todo desenvolvimento começa e que distingue a vida material de uma vida espiritual superior. Cada ventre feminino que presenteia com mais irmãos e irmãs aos nascidos das outras mulheres se torna imagem morta da mãe terrestre, Deméter: a terra natal que só conhece irmãos e irmãs, e isto até que, com a formação da paternidade, a uniformidade das massas se dissolva e a indiscriminação seja superada pelo princípio da divisão. Nos estados maternais, este lado do princípio materno encontrou expressões diversas e mesmo reconhecimento formulado legalmente. Sobre ele repousa o princípio geral da liberdade e da igualdade que muitas vezes encontraremos como característica fundamental da vida dos povos ginecocráticos; sobre ele repousa a filoxenia[8] e uma aversão resoluta a barreiras restritivas de qualquer tipo; sobre ele repousa o significado abrangente de certos conceitos, que, como o parricidium romano, só mais tarde substituíram o sentido natural-geral pelo sentido individual-limitado; e, finalmente, sobre ele repousa o louvor especial do espírito de parentesco, e uma sympatheia[9] que, não conhecendo fronteiras, abraça todos os membros do povo igualmente. A ausência de discórdia interna, a aversão ao conflito, é particularmente elogiada em estados ginecocráticos. Aqueles grandes panegíricos, nos quais todas as partes do povo se regozijam com o sentimento de fraternidade e costumes comuns, tornaram-se neles a prática mais antiga, a mais belamente desenvolvida. O crime específico que é a violência corporal contra semelhantes, e até de todo o reino animal, não é menos característica, e nos costumes essa disposição interior do princípio materno encontra sua mais bela tradição na realidade da vida: como nos costumes das romanas de implorar à grande mãe não pelos próprios filhos, mas pelos filhos da irmã, de rogar por um marido para elas; como nos dos persas, de sempre pedir à divindade apenas para todo o povo; como nos dos cários, de preferir antes de todas as virtudes a sympatheia pelos parentes. Um traço de humanidade mais leve – que já se vê emergir nas expressões faciais das esculturas egípcias – permeia a moralidade do mundo ginecocrático e lhe confere um caráter no qual tudo o que o espírito materno de bem-aventurança carrega dentro de si pode ser reconhecido. À luz da inocuidade saturnal aparece para nós aquele gênero humano mais antigo, que, na subordinação de toda a sua existência à lei da maternidade, deu à posteridade as características principais para a pintura da Idade de Prata da humanidade. Quão compreensível se torna para nós então na descrição de Hesíodo a ênfase exclusiva na mãe, seu cuidar preocupado, nunca interrompido, e a eterna imaturidade do filho, que cresce mais fisicamente do que espiritualmente – a paz e a abundância que a vida da agricultura oferece – e que se alegra até a velhice nas mãos da mãe; como corresponde àqueles quadros de uma felicidade, para a qual o domínio matriarcal sempre serve de centro e que depois desapareceu; o quanto corresponde àquelas archaia phyla gynaikon[10], com as quais também desapareceu toda a paz da Terra. A historicidade do mito encontra aqui uma surpreendente comprovação. Toda a liberdade de imaginação, toda a riqueza do embelezamento poético com que a memória sempre se rodeia não foram capazes de esconder o núcleo histórico da tradição, nem de obscurecer a característica principal da sua existência anterior e do seu significado para a vida.

 

Se me for permitido, vou repousar por um momento neste ponto da pesquisa e interromper a continuação no meu desenvolvimento das ideias para fazer algumas considerações mais gerais. A busca consequente da ideia ginecocrática fundamental abriu nossa compreensão para um grande número de fenômenos e informações individuais. Se misteriosos em seu isolamento, quando conectados elas adquirem o caráter de uma necessidade interna. A obtenção de tal resultado depende principalmente de uma condição prévia. É exigido do pesquisador que seja capaz de renunciar completamente às ideias de seu tempo, às visões com as quais elas preenchem seu espírito, e de se colocar no centro de um mundo de pensamento bem diferente. Sem esse auto-desinvestimento, é impensável um verdadeiro sucesso no campo de pesquisa da Antiguidade. Aqueles que escolhem como ponto de partida os pontos de vista das gerações posteriores são cada vez mais distraídos por eles da compreensão dos anteriores. O abismo se amplia, as contradições crescem; quando todos os meios de explicação parecem esgotados, oferecem-se a suspeita e a dúvida e, no final, a negação firme é a forma mais segura de resolver o nó górdio. Esta é a razão pela qual toda pesquisa, toda a crítica dos nossos dias não é capaz de produzir resultados grandes e duradouros. A crítica verdadeira repousa apenas na própria coisa; não conhece outra medida que a lei objetiva, nenhum outro fim que a compreensão do que é estranho, nenhuma outra prova do que o número de fenômenos explicados pela sua visão fundamental. Onde houver a necessidade de distorções, dúvidas e negações, a falsificação estará sempre ao lado do pesquisador, não das fontes e tradições, sobre as quais a estupidez, a imprudência e o vão auto-endeusamento tão prontamente põem a culpa. Todo pesquisador sério deve ter sempre em mente que o mundo com o qual ele se ocupa é infinitamente diferente daquele em cujo espírito ele vive e opera, e que seu conhecimento em sua maior extensão é sempre limitado. Além disso, sua própria experiência de vida, em grande parte imatura, está sempre fundada na observação de um lapso de tempo imperceptível. O material que lhe é oferecido, no entanto, é um amontoado de detritos e fragmentos individuais, que muitas vezes, quando vistos de um certo lado, parecem mesmo ser falsos, mas mais tarde, trazidos para o contexto certo, envergonham o julgamento anterior precipitado. Do ponto de vista do direito paterno romano, o surgimento das Sabinas em meio às linhas de batalha é tão inexplicável quanto a disposição genuinamente ginecocrática do pacto sabino oferecida por Plutarco, sem dúvida, extraída de Varro. Levando em conta relatos muito semelhantes dos mesmos acontecimentos entre povos antigos e povos ainda vivos de um nível mais profundo de cultura, e de acordo com a ideia básica sobre a qual repousa o direito materno, ele perde todo o mistério e se desloca da região da invenção poética, à qual foi relegado precipitadamente pelo julgamento guiado por condições e costumes do mundo moderno, de volta ao reino da realidade histórica, onde agora afirma seus direitos como consequência natural da soberania, da inviolabilidade e da consagração religiosa da maternidade. Quando na aliança de Aníbal com os gauleses a decisão dos conflitos é confiada às matronas gaulesas, quando em tantas tradições da pré-história mítica as mulheres surgem – isoladas ou unidas em coligações – julgando às vezes sozinhas, às vezes ao lado dos homens, votando em assembleias populares, pedindo o cessar fogo entre linhas de batalha conflituosas, mediando a paz, fixando seus termos e oferecendo tanto a flor carnal, quando a vida em sacrifício para a salvação do país: Quem, então, se atreverá a lutar contra o argumento da improbabilidade, da contradição contra tudo o que se conhece, da incompatibilidade com as leis da natureza humana tal como elas nos aparecem hoje, ou, mesmo, quem chamará de esplendor poético o que é irradiado dessas memórias dos tempos primitivos contra o seu reconhecimento histórico? Isso significaria sacrificar os tempos pré-históricos ao presente, ou, para citar Simônides, remodelar o mundo com pavio e lâmpada; significaria lutar contra milênios e degradar a história a um jogo de opiniões – fruto imaturo de sabedoria imaginária – a fantoche das ideias do dia. A improbabilidade é contrariada: mas as probabilidades mudam com os tempos; o que é incompatível com o espírito de um nível cultural corresponde ao de outro; o que ali é improvável, ganha probabilidade aqui. Contradição contra tudo o que se conhece: mas a experiência subjetiva e as leis subjetivas do pensamento têm tão pouca justificativa no campo histórico quanto a admissão da atribuição de todas as coisas às proporções reduzidas de uma visão particular e limitada. É preciso dar uma resposta especial àqueles que invocam contra nós o olhar poético dos tempos primevos? Quem quisesse negá-lo seria imediatamente levado ao silêncio, tanto pela velha, quanto pela nova poesia, que toma emprestado o seu material mais belo e mais chocante justamente daquele mundo pré-histórico. Sim, como se a poesia e a escultura tivessem competido pelo troféu da criatividade, tudo o que é antigo, em particular os tempos primitivos, possui em alto nível o poder de emprestar asas à alma do contemplador e de elevar seus pensamentos muito acima do mundano. Mas essa qualidade repousa na natureza da coisa, faz parte de sua essência e, portanto, é ela própria objeto de pesquisa como meio de contestação.

A era ginecocrática do mundo é de fato a poesia da história. Torna-se assim pelo sublime, pela grandeza histórica, mesmo pela beleza a que eleva a mulher, pela promoção da bravura e do modo cavalheiresco entre os homens, pelo significado que empresta ao amor feminino, pela disciplina e castidade que exige do jovem: uma união de qualidades que a fazia parecer para a Antiguidade sob a mesma luz com que a grandeza cavalheiresca do mundo germânico se apresenta ao nosso tempo. Como nós, os antigos também perguntam, para onde foram aquelas mulheres cuja beleza imaculada, cuja castidade e cujas atitudes elevadas foram capazes de despertar até mesmo o amor dos imortais? Onde estão as heroínas, cujo elogio foi cantado por Hesíodo, poeta da ginecocracia? Onde estão as ligas de mulheres, com as quais Dike gostava de conversar à parte? Mas onde estão também aqueles heróis sem temor e mácula, que, como o lício Belerofonte, combinaram grandeza cavalheiresca com vida impecável, bravura com reconhecimento voluntário do poder feminino? Todos os povos guerreiros, observou Aristóteles, obedeciam à mulher, e a observação de eras posteriores ensina a mesma coisa: desafiar o perigo, buscar toda aventura e servir à beleza são virtudes sempre unidas à juventude plena. Poesia, tudo isso se torna mesmo poesia à luz das condições atuais. Mas a maior poesia, mais rica e mais chocante do que toda imaginação, é a realidade da história. Maiores destinos já passaram por sobre a raça humana do que nossa força de imaginação pode conceber. A era do mundo ginecocrático, com suas figuras, ações e choques, é inalcançável para a poesia de tempos mais instruídos, porém mais fracos. Nunca esqueçamos: com a força da ação, o voo do espírito também se desgasta, e a decadência que se inicia sempre se revela ao mesmo tempo em todas as áreas da vida.

           

Os princípios segundo os quais procedo, os meios pelos quais procuro obter uma compreensão, até agora relegada ao reino obscuro do poético, das primeiras formas de existência humana, ganharam, espero, nova luz através das últimas observações. Retomo agora a apresentação interrompida do mundo do pensamento ginecocrático, não para me perder nos detalhes multiformes e sempre surpreendentes de sua disposição interior, mas muito mais para voltar minha atenção exclusiva para o fenômeno mais importante, aquele em que todos os outros encontram sua conclusão e justificativa.

A fundação religiosa da ginecocracia nos mostra o direito materno em sua forma mais digna, liga-a aos aspectos mais elevados da vida e abre uma visão profunda da grandeza daqueles tempos pré-históricos que o Helenismo só foi capaz de superar no brilho da aparência, não em profundidade e dignidade de concepção. Aqui, ainda mais do que antes, sinto o tremendo contraste que separa a minha visão da Antiguidade das ideias dos dias atuais e da moderna pesquisa histórica guiada por elas. Garantir à religião uma aprofundada influência na vida dos povos, reconhecer-lhe o primeiro lugar entre as forças criadoras que estruturam toda a existência, buscar em suas ideias iluminação sobre os lados mais obscuros do pensamento do mundo antigo, tudo isso aparece como uma predileção assombrosa pelas visões teocráticas, características de um espírito incompetente, parcial e preconceituoso, uma recaída lamentável na noite profunda de um tempo obscuro. Todas essas acusações eu já experienciei, mas ainda me domina o mesmo espírito de reação, ainda prefiro ser antigo do que moderno no campo da Antiguidade, prefiro ser verdadeiro em sua exploração do que agradar às opiniões da ordem do dia, implorando a esmola de seus aplausos. Existe apenas uma única e poderosa alavanca de toda a civilização: a religião. Cada elevação e cada rebaixamento da existência humana nasce de um movimento que tem sua origem neste mais elevado dos campos. Sem ela, nenhum lado da vida antiga é compreensível, o primeiro dos tempos, sobretudo, se torna um enigma impenetrável. Do início ao fim dominada pela fé, esta geração vincula toda forma de existência e toda tradição histórica ao pensamento fundamental do culto, vê todo evento apenas à luz religiosa e se identifica com o mais perfeito do seu mundo divino. O fato de que a cultura ginecocrática deva carregar preferencialmente essa marca hierática é garantido pela disposição interna da natureza feminina, aquela profunda precursora da consciência de Deus que, fundindo-se com o sentimento de amor, empresta à mulher, especialmente à mãe, a mais poderosa consagração religiosa, no mais selvagem dos tempos. A elevação da mulher sobre o homem desperta nosso espanto, pois contradiz a relação de força física entre os sexos. A lei da natureza entrega ao mais forte o cetro do poder. Se ele é arrancado por mãos mais fracas, então outros lados da natureza humana devem ter atuado, poderes mais profundos devem ter exercido sua influência. Não é necessária a ajuda de testemunhas antigas para trazer à consciência o poder que conquistou essa vitória de forma geral. Em todos os tempos, através da direção de seu espírito para o sobrenatural, o divino, a evasão da lei e o milagroso, o feminino tem exercido maior a influência sobre o sexo masculino, sobre a educação e a moralidade do povo. Da particular disposição das mulheres à eusebeia[11], o seu chamado preferencial para o cultivo do temor a Deus, Pitágoras faz o ponto de partida de seu discurso às mulheres crotonianas, e Estrabão, segundo Platão, enfatiza em um ditado notável que desde tempos imemoriais todo a deisidaimonia[12] tem sido espalhado pelo sexo feminino para o mundo masculino, crendo que toda superstição tem sido cultivada, nutrida e fortificada por elas. Fenômenos históricos de todos os tempos e povos confirmam a veracidade desta observação. Assim como a primeira revelação foi confiada em tantos casos às mulheres, também na propagação da maioria das religiões as mulheres tomaram a parte mais ativa, frequentemente bélica, às vezes encorajadas pelo poder dos estímulos sensíveis. A profecia feminina é mais antiga que a masculina, mais constante na fidelidade da preservação, a alma feminina é “mais dura na fé”; a mulher, embora mais fraca do que o homem, é capaz, no entanto, em certos momentos de lançar-se muito acima dele, é mais conservadora especialmente no campo do culto e na preservação do cerimonial. Por toda parte se revela a tendência das mulheres em ampliar constantemente sua influência religiosa, e esse anseio de conversão tem um poderoso impulso no sentimento de fraqueza e no orgulho da subjugação dos fortes. Dotado de tais poderes, o sexo mais fraco é capaz de lutar contra o mais forte e de prevalecer. À força física superior do homem, a mulher antepõe a poderosa influência de sua consagração religiosa, ao princípio da violência, aquele da paz, à inimizade sangrenta, a reconciliação, ao ódio o amor, e assim consegue conduzir a existência selvagem dos primeiros tempos, não domesticada por nenhuma lei, para o caminho daquela moralidade gentil e amistosa no centro da qual ela agora se senta entronizada, como portadora do princípio superior, como revelação do mandamento divino. Aqui está enraizada aquela violência mágica da aparição feminina que desarma as paixões mais selvagens, que abre espaço entre as linhas de batalha, que assegura a proclamação reveladora e jurídica da declaração de inviolabilidade da mulher e que em todas as coisas dá o prestígio da lei mais elevada. O culto quase divino à Arete, rainha dos feácios, e à sacralidade de sua palavra foi considerado já por Eustáquio como embelezamento poético de um conto de fadas maravilhoso, completamente relegada ao campo da poesia: e, ainda assim, ela não é uma aparição isolada, mas sim a expressão perfeita da ginecocracia, totalmente baseada no culto, com todas as bênçãos e beleza que ela foi capaz de trazer à existência popular.

A ligação íntima da ginecocracia com o caráter religioso da mulher é revelada em muitas manifestações individuais. Uma das mais importantes delas é a determinação lócria de que nenhum menino, mas apenas uma menina, pode realizar o ritual da fialeforia[13]. Políbio posiciona este costume entre as provas do direito materno epicefírio, reconhecendo assim sua conexão com a ideia fundamental da ginecocracia. O sacrifício lócrio de uma menina como expiação pela fúria de Ajax confirma a relação e ao mesmo tempo mostra qual a ligação entre as ideias a que a disposição sacral geral, de que todos os sacrifícios femininos agradam mais à divindade, deve a sua origem. A busca por este ponto de vista nos leva àquele lado da ginecocracia através do qual o direito materno adquire tanto o seu fundamento mais profundo, quanto seu maior significado. Seguindo o exemplo de Deméter, a mãe terrena se torna ao mesmo tempo a representante mortal da mãe primeva telúrica, sua sacerdotisa e, como hierofante, a encarregada da gestão do seu mistério. Todos esses fenômenos provêm de uma única peça e não são nada além de expressões diferentes de um mesmo nível cultural. O princípio religioso da maternidade parturiente leva ao princípio correspondente da mulher mortal, a relação exclusiva de Deméter com Cora leva à não menos exclusiva relação sucessória entre mãe e filha, finalmente, a conexão interna do mistério com os cultos ctônicos-femininos leva à hierofania da mãe, que aqui aumenta sua consagração religiosa ao mais alto grau de sublimidade. Deste ponto de vista, abre-se uma nova visão sobre a verdadeira natureza daquele nível cultural a que pertence a prerrogativa materna. Reconhecemos a grandeza interior da moralidade pré-helênica que, na religião demétrica, em seu mistério e ao mesmo tempo em sua ginecocracia cultural e cívica, possuíam um germe reprimido da mais nobre disposição. Considerações tradicionais, há muito mantidas com prestígio canônico, como as da crueza do mundo pelasgo, a incompatibilidade do domínio feminino com os modos fortes e nobres do povo e, especialmente, o desenvolvimento tardio dos mistérios na religião, são jogados para fora do trono dos olímpicos, e sua recuperação seria uma vã esperança. Atribuir os fenômenos mais nobres da história aos motivos mais baixos tem sido há muito uma ideia favorita dos nossos pesquisadores da Antiguidade. Como poderiam poupar o campo da religião? Como reconhecer a parte mais alta dela, a direção para o sobrenatural, o outro mundo, o místico, em sua conexão com as necessidades mais profundas da alma humana? Somente a falsificação e o engano de alguns profetas mentirosos e egoístas poderiam escurecer o céu transparente e claro do mundo espiritual helênico com tais nuvens escuras, conduzindo em caminhos tão errados ao tempo da decadência. Mas o mistério constrói a verdadeira essência de toda religião, e onde quer que a mulher esteja na vanguarda do culto e da vida, é precisamente o mistério que ela prefere cultivar. Isto é garantido por sua disposição natural de sempre ligar inseparavelmente o sensível e o suprassensível; isso é garantido por sua estreita relação com o material e a vida natural, cuja morte eterna desperta nela, primeiro, a necessidade de um pensamento consolador e, depois, através da dor mais profunda, a esperança mais elevada; isso é garantido especialmente pela lei da maternidade demétrica que se revela através das metamorfoses da semente, e que através da interrelação entre morte e vida representa a queda como condição prévia para um renascimento mais elevado, como a epikteis tes teletes[14]. O que surge assim, por conta da própria natureza da maternidade, é plenamente confirmado pela história. Onde quer que nos deparemos com a ginecocracia, o mistério da religião ctônica se liga a ela, quer ela tome o nome de Deméter, ou quer ela dê à maternidade encarnação em outra divindade de igual valor. A conjunção entre os dois fenômenos é muito clara na vida dos povos lício e epicefírio: duas tribos cuja adesão excepcionalmente longa ao direito materno se explica justamente pelo rico desenvolvimento do mistério tal como manifesto entre eles nas suas expressões mais dignas de nota e nunca ainda compreendidas. A conclusão a que este fato histórico conduz é absolutamente certa. Pois se não se pode negar a originalidade do direito materno e sua ligação com um nível cultural mais antigo, o mesmo deve valer para o mistério, pois ambos os fenômenos formam apenas dois lados diferentes da mesma moralidade, são sempre irmãos gêmeos. Este resultado é tanto mais certo quanto não se pode ignorar que das duas expressões de ginecocracia mencionadas anteriormente, a civil e a religiosa, esta última é a base da primeira. As ideias cúlticas são as originais, os modos de vida civis são sua consequência e expressão. Da ligação de Cora com Deméter, surgiu a preferência da mãe sobre o pai, da filha sobre o filho, e não o contrário, a preferência abstraída desta para aquela. Ou, para adaptar minha expressão com ainda mais fidelidade às ideias da Antiguidade: dos dois significados da kteis[15] materna, o cúltico-misterioso é o original, dominante; o civil, legal, é a consequência. Numa visão muito sensível-natural, o sporium feminino aparece primeiro como uma representação do mistério demétrico, tanto em seu profundo valor físico, quanto em seu elevado valor sobrenatural, mas também conseqüentemente como uma expressão do direito materno em sua forma civil, tal como o encontramos no mito lício de Sarpedão. Fica então refutada a afirmação dos neófitos de que tudo o que é misterioso é próprio dos tempos de decadência e de uma degeneração tardia do Helenismo. A história assume a posição diretamente oposta: o mistério materno é o antigo, o Helenismo é um estágio posterior do desenvolvimento religioso; não aquele, senão esse, o Helenismo é que aparece à luz da degeneração e de uma planificação religiosa que sacrifica o além ao aqui, que sacrifica a escuridão misteriosa da esperança superior à clareza da forma. Se descrevemos antes a era ginecocrática como a poesia da história, podemos agora somar a este elogio um segundo, ainda com mais justeza e intimidade: é, ao mesmo tempo, o período preferencial de aprofundamento e de prenúncio religioso, o período de eusebeia, deisidaimonia, sophrosyne, eunomia[16]: estas qualidades que fluem todas da mesma fonte e são elogiadas com notável concordância por todos os antigos povos maternos. Quem pode deixar de reconhecer a ligação intrínseca entre todos esses fenômenos? Aqueles que esquecem que a era predominantemente feminina do mundo também deve ter uma participação em tudo o que distingue a disposição natural das mulheres da dos homens; deve ter participação naquela harmonia que os antigos preferiam chamar de gynaikeia[17]; naquela religião em que a necessidade mais profunda da alma feminina, o amor, se eleva à consciência da sua conformidade com as leis básicas do universo; naquela sabedoria natural irrefletida que – expressa por nomes tão eloquentes como Autonoe, Filonoe, Dinonoe[18] – reconhece e julga com a instantaneidade e a certeza da consciência; finalmente, naquela continuidade e naquele conservadorismo de toda a existência nos quais a própria mulher é prefigurada pela natureza. Todas estas características do ser feminino tomam forma justamente em diversas particularidades do mundo ginecocrático, cada uma correspondendo a traços históricos, cada uma a fenômenos que agora se apresentam em sua correta contextualização psicológica e histórica.

Este mundo é hostil ao mundo do Helenismo. Com a queda do princípio da maternidade, caem também suas consequências. O desenvolvimento da paternidade traz à tona um lado completamente diferente da natureza humana. A ela estão ligados modos de vida completamente diferentes, todo um novo mundo de pensamento. Heródoto reconhece na civilização egípcia o oposto direto dos gregos, especialmente dos áticos. Em contraste com os egípcios, os áticos lhe parecem um mundo ao contrário. Se, da mesma maneira, o pai da historiografia tivesse colocado lado a lado os dois grandes períodos do desenvolvimento grego, a diferença o teria levado a expressões semelhantes de espanto e surpresa. O Egito é a terra estereotípica da ginecocracia, toda sua educação é baseada essencialmente no culto à mãe, no primado de Ísis sobre Osíris e está, portanto, em surpreendente harmonia com muitos fenômenos do direito materno que a vida das tribos pré-helênicas oferece. Mas a história faz questão de nos mostrar ainda em um segundo exemplo a oposição entre as duas civilizações em toda sua acuidade. Em meio ao mundo helênico, Pitágoras leva a religião e a vida de volta às suas antigas fundações, e tenta, através da recuperação dos mistérios dos cultos ctônicos-maternos, dar nova consagração à existência, tenta satisfazer a profunda necessidade religiosa despertada. A essência do Pitagorismo não está no desenvolvimento do Helenismo, mas na luta contra ele. Pitagorismo que, segundo a expressão peculiar de uma de nossas fontes, tem um toque da mais alta Antiguidade. Sua origem não se encontra tanto na sabedoria dos gregos, quanto na sabedoria antiga do Oriente, nos imóveis mundos africano e asiático. Ele também busca sua implementação especialmente entre aqueles povos que parecem oferecer uma adesão fiel a um maior contato com o antigo e o tradicional, sobretudo entre as tribos e cidades daquela Hespéria que, na esfera religiosa, parece ter sido escolhida até hoje para ser a cuidadora das fases da vida superadas em outros lugares. A esta preferência tão evidente por uma visão antiga da vida se une um reconhecimento imediato e decisivo do principado demétrico materno, que dá preferência ao cuidado e ao desenvolvimento do misterioso, do sobrenatural, do suprassensível na religião, mas acima de tudo dá preferência à emergência resplandecente de figuras femininas nobres e sacerdotais. Quem então pode deixar de reconhecer a unidade interior destes fenômenos e sua ligação com a moralidade pré-helênica? Um mundo anterior se levanta do túmulo, a vida tenta voltar aos seus começos. Os amplos espaços entre eles desaparecem, e como se não tivesse havido mudanças nos tempos e nos pensamentos, as gerações mais novas se unem àquelas dos tempos primordiais. Para as mulheres pitagóricas não há outro ponto de referência além do mistério ctônico-materno da religião dos pelasgos; sua aparência e a orientação do seu espírito não se deixam explicar pelas ideias do mundo helênico. Separado deste fundamento cúltico está o caráter consagrado de Teano, “a filha da sabedoria pitagórica”, um fenômeno sem contextualização, cujo mistério doloroso se tenta em vão solucionar apontando para o caráter mítico das origens pitagóricas. Os antigos confirmam esta relação através da combinação de Teano, Diotima e Safo. A seguinte pergunta nunca foi respondida: qual é a razão da semelhança entre três fenômenos separados temporal e etnicamente? Onde mais, eu respondo, senão no mistério da religião materno-ctônica? A vocação sagrada da mulher pelasga aparece em seu mais rico e sublime desabrochar nestas três figuras femininas fulgurantes da Antiguidade. Safo pertence a um dos grandes centros da religião órfica dos mistérios, Diotima pertence à Mantineia arcade, particularmente conhecida por sua cultura antiga e pelo culto samotraciano a Deméter. Aquela pertence à tribo eólica, esta à tribo pelasga, ambas faziam parte, portanto, de uma cultura popular que permaneceu fiel aos fundamentos da moralidade pré-helênica na religião e na vida. Em uma mulher de nome desconhecido, entre um povo intocado pelo desenvolvimento do Helenismo – gozando possivelmente da reputação de ter uma vida antiquada – um dos maiores sábios encontra aquele grau de esclarecimento religioso que a brilhante educação da tribo ática não lhe poderia oferecer. O que busquei enfatizar desde o início como um pensamento guia, a correlação de toda essa especificidade feminina com a cultura e religião pré-helênica, encontra sua mais brilhante confirmação precisamente naqueles fenômenos que, quando vistos desconexos e externamente, apenas segundo as circunstâncias da época, parecem ser os que mais testemunham contra ele. Onde quer que a antiga e séria religião do mistério seja preservada ou desperte para um novo florescer, lá a mulher emerge de novo da obscuridade a qual ela foi condenada pela esplêndida servidão da vida iônica, e proclama em voz alta onde devem ser procurados os fundamentos da ginecocracia anterior e a fonte de todas aquelas boas ações que ela espalhou por toda a existência dos povos que honravam o direito materno. Sócrates aos pés de Diotima, seguindo com dificuldade o voo entusiasmado de sua revelação mística, confessando sem pudor que o ensino da mulher é indispensável para ele: onde a ginecocracia encontraria uma expressão mais sublime? Onde o parentesco íntimo do mistério pelasgo-materno com a natureza feminina encontraria um testemunho mais belo? Onde o fundamento ético da moralidade ginecocrática, o amor, esta consagração da maternidade, encontraria um desenvolvimento lírico-feminino mais completo? A admiração que todas as épocas tiveram por esta imagem é infinitamente elevada se reconhecermos nela não apenas a bela criação de um espírito poderoso, mas, ao mesmo tempo, sua conexão com ideias e práticas da vida cúltica – se reconhecermos nela a imagem da própria hierofantia feminina. O que foi enfatizado antes mostra seu valor novamente: a poesia da história é maior do que a poesia da livre invenção.

Não quero mais perseguir o fundamento religioso da ginecocracia; ele aparece em sua maior profundidade na vocação iniciática da mulher. Quem irá agora perguntar por que a devoção, por que o direito, por que todas as qualidades que adornam as pessoas e a vida, são chamadas femininas, parecem personificadas como femininas, por que Telete surge personificada como mulher? Não foi a arbitrariedade ou o acaso que determinou a escolha, mas sim a verdade da história que encontrou nessa concepção sua expressão linguística. Vemos os povos maternais se distinguirem pela eunomia, eusebeia, paideia[19], as mulheres como guardiãs estritas do mistério, do direito, da paz, pois será que poderíamos deixar de reconhecer a correspondência entre estes fatos históricos com aquela aparição? A primeira elevação da raça humana, o primeiro progresso rumo à moralidade e a uma existência regulamentada, especialmente a primeira educação religiosa, tudo isso está ligado à mulher, e com ela o gozo de todo bem superior. Mais cedo do que no homem, desperta nela o desejo de purificação da existência, e, em maior grau do que ele, ela tem a capacidade natural de realizá-la. Sua obra é toda a moralidade que segue a primeira barbárie; seu dom, como sua vida, é tudo o que constitui o deleite; seu, o primeiro conhecimento das forças da natureza, suas, a intuição e a garantia da esperança que vence a dor da morte. Vista sob esta luz, a ginecocracia aparece como testemunha do progresso da cultura, tanto como fonte, como garantia de seus frutos, quanto como período necessário de formação humana e, portanto, como a própria realização de uma lei natural que afirma seus direitos não apenas sobre cada indivíduo como sobre os povos.

O círculo de desenvolvimento das minhas ideias está voltando ao seu início. Tendo começado enfatizando a independência do direito materno de qualquer estatuto positivo e daí seu caráter de universalidade, estou agora autorizado a anexar-lhe o atributo de verdade natural no campo do direito familiar e a completar sua caracterização. Partindo da maternidade grávida, representada em sua imagem física, a ginecocracia está completamente sujeita à matéria e aos fenômenos da vida natural, dos quais ela tira as leis de sua existência interior e exterior; ela sente mais vivamente do que as gerações posteriores a unidade de toda a vida e a harmonia do universo, do qual ela ainda não se emancipou; ela sente mais profundamente a dor da perda da morte; e por causa daquela fragilidade da existência telúrica, à qual a mulher, a mãe em particular, dedica seu lamento, ela busca com mais ânsia por um consolo maior, ela o encontra nos fenômenos da vida natural e ela o amarra por sua vez ao ventre grávido, ao amor materno que recebe, cuida e nutre. Obediente a todas as leis do ser físico, ela prefere virar seu olhar para a terra, colocando os poderes ctônicos acima daqueles da luz uraniana, identificando o poder masculino preferencialmente com as águas telúricas, e subordinando a umidade geradora ao gremium matris[20], o Oceano à Terra. Completamente material, ela dedica seu cuidado e força ao embelezamento da existência material, à praktike arete[21], e alcança uma perfeição admirada pelas gerações posteriores no cultivo dos campos – inicialmente favorecido pela mulher – e na construção de muralhas, que os antigos tão intimamente associavam aos cultos ctônicos, de uma perfeição admirada pelas gerações tardias. Nenhum tempo colocou tanta ênfase na aparência externa do corpo, um peso tão predominante na inviolabilidade do corpo, tão pouca ênfase no momento espiritual, quanto o tempo da maternidade [Muttertum]; nenhum tempo realizou de forma tão consistente no direito o dualismo materno e o ponto de vista factual-possessivo; nenhum tempo cultivou com igual carinho o entusiasmo lírico, este afeto preferencialmente feminino, com o sentimento da natureza enraizada no humor da alma. Em uma palavra: a existência ginecocrática é o naturalismo organizado, sua lei do pensamento é o material, seu desenvolvimento é predominantemente físico: trata-se de uma etapa da cultura tão ligada ao direito materno, quanto necessariamente estranha e incompreensível para o tempo da paternidade [Paternität].

 

A tarefa principal da pesquisa a seguir e o modo de solucioná-la deve ter sido suficientemente estabelecido pelos comentários feitos até agora. Uma segunda tarefa é agora apresentada, mas de forma alguma segunda em importância e dificuldade, de certa forma, até mesmo superior à primeira na diversidade e peculiaridade dos fenômenos. Enquanto o desenvolvimento interno do sistema ginecocrático e toda a moralidade ligada a ele foram objeto dos meus esforços até o momento, a pesquisa agora toma uma direção diferente. O estudo da essência da cultura do direito materno é seguido por uma contemplação sobre sua história. Aquela nos revelou o princípio da ginecocracia, esta última procura determinar sua relação com outros níveis culturais: de um lado, os estados mais antigos e mais profundos, do outro, as visões mais elevadas do período tardio, por fim, ambos em sua luta com os direitos maternos regulados demetricamente. Uma nova página na história do desenvolvimento humano se oferece à pesquisa. Grandes transformações e enormes revoltas entram no círculo de contemplação e apresentam os altos e baixos do destino humano sob uma nova luz. Cada ponto de inflexão no desenvolvimento das relações de gênero é cercado por eventos sangrentos. A transformação continuada regular e pacífica é muito mais rara do que a derrocada violenta. Ao ir aos extremos, cada princípio leva à vitória do contrário, o abuso em si se torna a alavanca do progresso, o mais alto triunfo se torna o início da derrota. Em nenhum outro lugar se destaca tanto a tendência da alma humana de submeter as massas e sua incapacidade de manter de forma duradoura uma grandeza artificial, mas também em nenhum outro lugar se vê a capacidade do pesquisador de, quando colocado severamente à prova, entrar no meio da grandeza selvagem de povos grosseiros porém poderosos e de se tornar amigo de visões e formas de vida bastante estranhas.

Quanto mais variados são os fenômenos individuais nos quais se revela a luta da ginecocracia contra outras formas de vida, mais certo é o princípio geral de desenvolvimento ao qual eles estão subordinados. Assim como o período do direito materno é sucedido pelo domínio da paternidade [Paternität], ele também é precedido por um período de Hetairismo desordenado. A ginecocracia ordenada demetricamente adquire assim aquela posição intermediária na qual se apresenta como ponto de passagem da humanidade do estágio mais profundo da existência até o mais elevado. Com o primeiro, ela compartilha o ponto de vista material-materno, com o segundo, a exclusividade do casamento; o que a distingue de ambos é a regulação demétrica da maternidade, pela qual ela se eleva acima da lei do Hetairismo, e aqui a preferência é dada ao ventre grávido, no qual ela anuncia, como forma de vida mais profunda, a próxima, superior, do sistema paterno. Esta sequência de estados determina a ordem da seguinte apresentação. Primeiro temos a relação da ginecocracia com o Hetairismo, depois examinamos o progresso do direito materno para o sistema paterno.

A exclusividade da união conjugal parece tão intimamente relacionada e tão indispensável à nobreza da natureza humana e ao seu destino superior que é considerada pela maioria como um estado original, sendo a reivindicação de relações de gênero [Geschlechtsverhältnisse] mais profundas e desreguladas relegada ao reino dos sonhos, como uma triste aberração fruto de especulações inúteis sobre o início da existência humana. Quem não gostaria de se juntar a esta opinião e poupar nossa raça à memória dolorosa de uma infância tão indigna? Mas o testemunho da história nos proíbe de ouvir os sussurros do orgulho e do amor do próprio e de questionar o progresso extremamente lento da humanidade em direção à moralidade conjugal. A legião de notícias integralmente históricas se lança esmagadoramente contra nós, tornando impossível qualquer resistência, qualquer defesa. As observações dos antigos estão ligadas às das gerações posteriores e mesmo em nossos tempos o contato com povos de condições culturais mais profundas tem demonstrado a verdade da tradição através da experiência da vida. Em todos os povos investigados pela seguinte pesquisa, e muito além deste círculo, encontram-se os traços mais claros das formas de vida originalmente hetaíricos e, em muitos aspectos, a luta destes povos com as leis demétricas superiores pode ser identificada em uma série de fenômenos significativos que penetram profundamente a vida. Não se pode negar: a ginecocracia foi formada, fortificada e reverberou em toda parte através da resistência consciente e contínua das mulheres ao Hetairismo que as degradava. Indefesa contra o abuso do homem e, como descreve uma tradição árabe preservada por Estrabão, mortalmente exausta pelo seu desejo, ela sente mais profundamente e antes de tudo o desejo de condições reguladas e de uma moralidade pura, cuja coerção este homem está relutante em aceitar, pois também está consciente de sua força física superior. Sem levar em conta esta relação de troca jamais será reconhecida uma das características distintivas da existência ginecocrática em todo seu significado histórico: a rigorosa disciplina da vida, sem a qual a lei suprema de todo mistério, a castidade conjugal, jamais será apreciada em seu devido lugar na história do desenvolvimento da moralidade humana. Para ser claro, a ginecocracia demétrica exige condições anteriores mais cruas – a lei fundamental de sua vida é uma oposta a ela – com as quais ela luta e de onde ela surge. Assim, a historicidade do direito materno é uma garantia para a historicidade do Hetairismo.

Mas a maior prova da exatidão desta visão está no contexto interno dos fenômenos individuais nos quais a lei da vida antidemétrica se revela. Um exame mais atento destes fenômenos revela em todos os lugares um sistema, o que por sua vez leva a uma ideia fundamental que, enraizada na crença religiosa, está protegida contra qualquer suspeita de casualidade, arbitrariedade ou apenas vigência local isolada. Os defensores da visão de uma necessidade original do casamento como ligação entre os gêneros não podem ser poupados de uma embaraçosa surpresa. O pensamento da Antiguidade não é apenas diferente do deles, é o seu completo oposto. O princípio demétrico aparece como a violação de um princípio original oposto, o próprio casamento como violação de um mandamento religioso. Esta relação, por mais incompreensível que pareça para a nossa consciência hoje, tem o testemunho da história ao seu lado, e só ela pode explicar satisfatoriamente uma série de fenômenos dos mais curiosos que nunca foram reconhecidos em seu verdadeiro contexto. Só por ela se explica a ideia de que o casamento exige uma expiação diante daquela divindade cuja lei se infringe com a exclusividade. Não é para murchar nos braços de um indivíduo único que a mulher é dotada pela natureza de todos os encantos que ela comanda: a lei da matéria rejeita toda limitação, odeia todos os grilhões e considera toda exclusividade como um pecado contra sua divindade. Disso se explicam todos aqueles costumes nos quais o casamento em si é combinado com práticas hetaíricas. Elas são múltiplas em sua forma, mas uniformes na ideia. Através de um período de Hetairismo, o desvio do casamento das leis naturais da matéria deve ser expiado, e a boa vontade da divindade deve ser conquistada de novo. O que parece estar eternamente separado, o Hetairismo e a lei matrimonial estrita, entra agora na mais justa relação: a própria prostituição se torna garantia da castidade conjugal, cuja santificação exige o cumprimento prévio por parte da mulher de sua vocação natural. É claro que na luta contra tais visões, que são apoiadas pela própria religião, o progresso em direção a uma moralidade mais elevada só poderia ser lento, porque foi sempre ameaçado por coisas novas. A variedade de estados intermediários que descobrimos prova de fato o quão inconstante e mutável foi a luta que tem sido conduzida neste campo por milhares de anos. Apenas muito excepcionalmente o princípio demétrico avança para a vitória. Com o passar do tempo, o sacrifício feminino de expiação é reduzido a uma medida cada vez menor, a uma performance cada vez mais leve. A gradação das etapas individuais merece a maior atenção. A oferenda anual dá lugar a uma única performance, o Hetairismo das matronas é seguido pelo das moças, a prática durante o casamento também, a entrega indiscriminada a todos é seguida pela entrega a personalidades indicadas. Essas limitações são seguidas pela consagração de hieródulas especiais: assim, ela reivindica a culpa de todo um gênero para uma classe particular e com este preço o Matronato se liberta totalmente de sua obrigação de entrega, o que se torna bastante relevante para a elevação da sua situação social. A forma mais leve de performance pessoal parece ser a oferenda do cabelo da cabeça, que em exemplos individuais é denominado como o equivalente à flor corporal, mas desde a Antiguidade é associada em geral com a irregularidade da procriação hetaírica e é colocada em contato com parentescos naturais internos, em especial com a vegetação do brejo, seu protótipo natural. Todas essas fases de desenvolvimento deixaram para trás numerosos vestígios não apenas no campo do mito, mas também no da história, entre povos muito diferentes, e até receberam expressão linguística em nomes de localidades, divindades e famílias. Sua consideração nos mostra a luta do princípio demétrico e do hetaírico em sua grave realidade, como fato ao mesmo tempo religioso e histórico, e empresta a um número não insignificante de mitos conhecidos uma compreensão de que até agora eles não podiam se vangloriar; finalmente, ela permite que a vocação da ginecocracia surja em toda sua importância na conclusão da educação dos povos, através da observação estrita do imperativo demétrico e da resistência continuada à qualquer retorno à lei puramente natural. Para relembrar um detalhe importante, gostaria de chamar a atenção para a relação entre as concepções desenvolvidas e os dizeres dos antigos sobre a importância do dote das moças. Há quanto tempo se dizia entre os romanos que a indotata não vale mais do que a concubina, e quão pouco esta ideia, que contradiz todas as nossas crenças, faz sentido hoje. Seu ponto de contato histórico correto pode ser encontrado em um lado do Hetairismo cuja importância é evidente de muitas maneiras, a saber, na aquisição de dinheiro ligada à sua prática. A vitória do princípio demétrico foi particularmente dificultada pelo ganho do próprio dos[22], que está ligado à adesão ao ponto de vista puramente natural; se fosse para o Hetairismo ser erradicado completamente, seria absolutamente necessário remover a moça dos laços de sua família. Daí a desconsideração pela “indotata”, e a ameaça legal de punição ainda tardiamente para toda união conjugal sem dote. Vê-se que na luta do modo de vida demétrico e do modo de vida hetaírico, a execução do dote ocupa um lugar muito importante, de modo que não pode surpreender sua ligação com as mais altas ideias religiosas da ginecocracia, com a eudaimonia[23] após a morte assegurada pelo mistério, e com a atribuição da obrigatoriedade legal do dote por uma conhecida princesa, tal como ela aparece em um mito lésbico-egípcio muito extraordinário. Agora se torna compreensível, a partir de uma nova perspectiva, a relação bastante profunda que o direito de herança das filhas [Töchtererbrecht] tinha com a ideia demétrica de ginecocracia, quais pensamentos morais encontraram nela expressão, que influência finalmente ela teve que exercer sobre a elevação moral do povo, e sobre aquela sophrosyne[24], particularmente elogiado pelos lícios. O filho, diziam os relatos antigos, recebe lança e espada do pai para estabelecer sua existência, nada mais é necessário para ele; a filha, por outro lado, não herda nada, possui apenas a flor de seu corpo para ganhar a fortuna que é garantida ao homem. Prestam homenagem a esta mesma visão ainda hoje aquelas ilhas gregas cujos antigos habitantes reconheceram a lei da ginecocracia, e os escritores áticos também encontram, ao lado do alto desenvolvimento que seu povo emprestou à paternidade, a determinação natural de toda a propriedade materna ao dar o dote da filha que, assim, é salva da degeneração. A verdade e a dignidade interna dos pensamentos ginecocráticos não surgem em nenhuma outra manifestação prática de maneira mais bela do que nesta que acabamos de considerar; em nenhuma outra, não apenas a posição social, mas especialmente a dignidade interior e a pureza das mulheres, encontrou o suporte mais poderoso.

O conjunto dos fenômenos que abordamos até agora não deixa dúvidas sobre a visão fundamental da qual todos eles se originam. Juntamente com a elevação demétrica da maternidade, revela-se com ela uma concepção mais profunda e original, a naturalidade total, ainda não sujeita a nenhuma restrição, do puro telurismo abandonado a si mesmo. Nós reconhecemos o contraste entre a cultura agrícola e a iniussa ultrónea creatio[25], como ela se apresenta aos olhos do homem na vegetação selvagem da Mãe Terra, sobretudo em sua forma mais rica e exuberante na vida pantanosa. O modelo desta última se associa ao Hetairismo da mulher, o modelo da primeira se associa à lei demétrica-rígida do casamento da ginecocracia desenvolvida. As duas etapas da vida repousam sobre o mesmo princípio básico, o domínio do corpo grávido; sua diferença está apenas no grau de fidelidade à natureza com que elas concebem a maternidade. O nível mais profundo da materialidade se associa à região mais profunda da vida telúrica, o nível mais alto à região mais alta da vida agrícola. Aquele vê a representação de seu princípio nas plantas e animais dos solos úmidos, aos quais preferencialmente oferece veneração divina. Já este último oferece veneração à espiga e à semente, que ele eleva à posição de símbolo mais sagrado de seu mistério materno. Em um grande número de mitos e ritos aparece de maneira significativa a diferença entre estes dois estágios da maternidade, e em todos os lugares aparece sua luta como fato ao mesmo tempo religioso e histórico, o progresso de um para o outro como uma elevação de toda a vida, como poderoso florescimento em direção a uma moralidade mais elevada. Em Esqueneu, o homem-junco, no fruto dourado de Atalanta e na derrota de Cálamo por Carpo, há o mesmo contraste e o mesmo princípio de desenvolvimento, que é enfatizado no campo da vida humana pelo culto pantanoso de raízes maternas dos iosídios [Ioxiden], herdado apenas via linha materna, e por seu retrocesso diante do serviço eleusino superior. Em todos os lugares, a natureza tem guiado o desenvolvimento da humanidade, tendo-a, de certa forma, tomado em seu colo e determinado seu progresso histórico através das etapas que seus fenômenos oferecem. O peso que o mito coloca sobre o primeiro fundamento da exclusividade conjugal, o esplendor com que envolve este ato cultural com o nome de Cécrope, a ênfase cuidadosa no conceito de filho legítimo como aparece nos mitos, no teste do anel de Teseu, na prova de Hórus por seu pai, na associação da palavra etéos[26] com os nomes de indivíduos, famílias, divindades e povos: Tudo isso, como o patrem ciere[27] romano, não surge da vã tendência da lenda à especulação, nem da poesia sem pontos de referência; está muito mais na memória, depositada nas mais diversas formas, de um grande ponto de inflexão na vida dos povos que não pode faltar na história humana. Toda a exclusividade da maternidade que não conhece nenhum pai, que vê os filhos como “anátopes[28] ou em seu sinônimo de polypátores[29], como spurii, Spartoi, ou em seu sinônimo de unilaterales, o próprio produtor que aparece como Oydeis[30], Sertor, Semo é tão histórica quanto o domínio da mesma sobre a paternidade, tal como apresentado no direito materno demétrico; de fato a formação desta segunda etapa familiar pressupõe tanto a primeira, quanto a teoria completa da paternidade pressupõe a própria paternidade.

O desenvolvimento da nossa raça como um todo não dá em lugar nenhum saltos, em lugar nenhum há progressos súbitos, em todos os lugares há apenas transições graduais, em todos os lugares há uma pluralidade de etapas, cada uma das quais traz dentro de si a anterior e a subsequente. Todas as grandes mães da natureza, nas quais o poder grávido da matéria tomou nome e forma pessoal, unem em si ambos os graus da maternidade, a mais profunda, puramente natural, e a superior, ordenada conjugalmente, e foi somente no curso do desenvolvimento e sob a influência das condições sociais-individuais que predominou aqui uma e ali a outra. A série de provas do caráter histórico de uma etapa pré-matrimonial da vida se fecha com peso definitivo nesta última. A purificação sucessiva da ideia de divindade manifesta uma elevação correspondente da vida, e só pode mesmo ter ocorrido em ligação com ela, assim como, inversamente, qualquer recaída em estados mais sensuais e mais profundos encontra sua expressão correspondente no campo da religião. Seja o que for que as entidades divinas carregam dentro de si, uma vez dominada a vida, elas deixam sua marca em um período cultural humano. É impossível pensar em uma exceção; a religião baseada na contemplação da natureza é necessariamente a verdade da vida e, seu conteúdo, portanto, é a história da nossa raça. Nenhum dos meus pontos de vista básicos encontrará confirmação tão frequente e tão arrebatadora no decorrer da pesquisa a seguir, nenhum deles lançará uma luz tão clara sobre a luta entre Hetairismo e a ginecocracia conjugal. Duas etapas da vida se confrontam, e cada uma delas repousa sobre uma ideia religiosa, cada uma se nutre de visões cúlticas. A história interna dos lócrios epicefírios é mais adequada do que a de qualquer outro povo para confirmar a correção histórica de todo o círculo de ideias que apresentei até agora. Em nenhum deles a elevação vitoriosa da ginecocracia demétrica sobre a ius naturale afrodítica original é expressa de forma mais extraordinária; em nenhum deles é tão tangível como o florescer nacional depende da derrota do Hetairismo, e em nenhum deles é tão instrutiva a violência indestrutível das ideias religiosas anteriores e seu despertar em tempos posteriores.

Vai contra nosso modo de pensar atual enxergar nas condições e nos eventos que atribuímos aos círculos silenciosos e ocultos da vida familiar uma influência de tão longo alcance em toda a vida estatal – no seu florescer e no seu declínio. Na pesquisa do curso interno de desenvolvimento da humanidade antiga também não foi dada a menor atenção àquele lado que ocupa nossa reflexão. Mas é justamente o contexto das relações entre os gêneros e o grau de sua concepção, mais profunda ou elevada, com o todo da vida e o destino dos povos que entra em ligação direta com as questões mais elevadas da história por meio da pesquisa que se segue. O primeiro grande encontro entre o mundo asiático e o mundo grego é representado como uma luta entre o princípio afrodítico-hetaírico e o princípio heráico-matrimonial, a Guerra de Troia como causada pela violação do leito conjugal, e, prosseguindo no mesmo pensamento, finalmente a derrota total da mãe de Eneias, Afrodite, pela Juno matronal no tempo da segunda Guerra Púnica, ou seja, colocada no período em que a grandeza interna do povo romano estava no seu auge. A conexão entre todos esses fenômenos não pode ser ignorada e é agora completamente compreensível. A história atribuiu ao Ocidente a tarefa de conduzir o elevado princípio da vida demétrica à vitória duradoura através da disposição natural mais pura e casta de seus povos, libertando assim a humanidade dos grilhões do mais profundo telurismo, no qual se mantinha presa pela magia da natureza oriental. Roma deve à ideia política do Imperium, com a qual entrou na história mundial, ter sido capaz de levar a bom termo este desenvolvimento da humanidade antiga. Como os lócrios epicefírios, Roma fazia parte da maternidade hetaírica da Afrodite asiática, e estava muito mais ligada à pátria distante, especialmente na religião, do que ao mundo helênico anterior e completamente emancipado; estava intimamente ligada através da família real tarquiniana à visão da cultura etrusca, que era completamente materna, e dos tempos das tribulações quando o oráculo profetizou que lhe faltava uma mãe que só a Ásia poderia dar; sem o apoio de sua ideia política de dominação, a cidade, destinada a ser o elo entre o velho e o novo mundo, jamais poderia enfrentar de maneira vitoriosa a maternidade material e sua concepção asiático-natural, a ius naturale, da qual ela mantinha apenas a moldura vazia; nunca poderia celebrar o triunfo sobre a sedução do Egito, que foi glorificado, que recebeu sua representação figurativa, por assim dizer, na morte da última Candace integralmente afrodisíaca-hetaírica do Oriente e na contemplação de seu corpo sem vida por Augusto.

 

Na luta entre o princípio hetaírico e o demétrico, a difusão da religião dionisíaca trouxe uma nova virada e um retrocesso que foi prejudicial a toda moralidade da Antiguidade. Na história da ginecocracia, este evento ocupa um lugar de grande destaque. Dionísio aparece na linha de frente dos grandes guerreiros do direito materno, especialmente em seu crescimento amazônico. Um opositor inconciliável da degeneração antinatural da qual a existência feminina havia sido feito vítima em todos os lugares, ele vinculou sua reconciliação e sua benevolência ao cumprimento da lei do casamento, ao retorno à determinação maternal da mulher e ao reconhecimento da suprema glória de sua própria natureza masculina-fálica. De acordo com este adendo, a religião dionisíaca parece apoiar a lei conjugal demétrica, de fato, ela parece ocupar um dos primeiros lugares entre as causas que promovem a fundação vitoriosa da teoria da paternidade. E de fato, a importância de ambas as relações não pode ser negada. No entanto, o papel que atribuímos ao culto báquico, como o mais forte aliado do modo de vida hetaírico, e a menção a ele nesta ligação é bem fundamentada e plenamente justificada pela história de sua influência sobre todo o modo de vida no mundo antigo. A mesma religião que elevou a lei do casamento ao seu ponto central promoveu mais do que qualquer outra o retorno da existência feminina à plena naturalidade do afroditismo; a mesma religião que emprestou ao princípio masculino um desenvolvimento muito superior ao da maternidade, contribuiu mais para a degradação do homem e sua própria queda mesmo diante das mulheres.

Entre as causas que contribuíram substancialmente para a rápida e vitoriosa difusão do novo Deus, a ascensão amazônica da velha ginecocracia e a inseparável selvageria de toda sua existência ocupam um lugar muito importante. Quanto mais estritamente reinasse a lei da maternidade, menos podia ser permitido à mulher manter a grandeza antinatural de seu modo de vida amazônico: quanto mais alegremente o Deus – duplamente sedutor pela associação do esplendor sensível e suprassensível – tinha que ser recebido em toda parte, mais irresistivelmente o gênero das mulheres tinha que ser inspirado a tomar o seu serviço. Em rápida sucessão, a ginecocracia amazônica-estrita passa da mais resoluta resistência contra o novo Deus para a igualmente resoluta devoção a ele; as mulheres guerreiras, que costumavam se medir na batalha com Dionísio, aparecem agora como seu irresistível séquito, e na rápida sucessão de extremos mostram como é difícil para a natureza feminina manter o equilíbrio em todos os momentos. A base histórica não pode ser ignorada nas tradições que difundem os eventos sangrentos das primeiras religiões báquicas e o choque profundo que eles causaram em todas as relações. Eles retornam, independentemente um do outro, nos mais diversos povos, mas sempre com o mesmo caráter, e estão em contraste tão acentuado com o espírito dionisíaco tardio, apenas preferencialmente voltado para o gozo pacífico e o embelezamento da existência, que a ideia de uma invenção ativa agora pertence ao campo do impossível.

A violência fantástica com que o mestre fálico da vida natural voluptuosa varreu o mundo das mulheres para novos caminhos se revela em fenômenos que deixam para trás não apenas os limites da nossa experiência, mas até mesmo os da nossa imaginação, fenômenos que, para serem dirigidos ao reino da poesia, no entanto, requerem pouca familiaridade com as profundezas obscuras da natureza humana, com o poder de uma religião que satisfaz igualmente as necessidades sensíveis e suprassensíveis, com a excitabilidade do mundo emocional feminino que se liga tão inextricavelmente a este mundo e ao mundo do além, que, finalmente, no entanto, mostra uma completa incompreensão da magia subjugadora da abundância da natureza do sul. Em todas as etapas de seu desenvolvimento, o culto dionisíaco preservou o mesmo caráter com o qual entrou pela primeira vez na história. Através de sua sensualidade e do significado que ele empresta ao mandamento do amor sexual, intimamente relacionado à condição feminina, ele prefere se relacionar com o gênero da mulher, dando uma direção completamente nova a sua vida, encontrando nela sua seguidora mais fiel, sua serva mais zelosa, baseando todo seu poder em seu entusiasmo. Dionísio, no sentido mais pleno da palavra, é o deus das mulheres, fonte de todas as suas esperanças sensíveis e suprassensíveis, o centro de toda a sua existência e, portanto, reconhecido em sua glória primeiro por elas, revelado a elas, difundido por elas, conduzido por elas à vitória. Uma religião que baseia suas maiores esperanças no cumprimento do próprio mandamento sexual, e que liga da maneira mais próxima possível a felicidade da existência suprassensível com a satisfação do sensível, deve, pela direção erótica que transmite à vida feminina, necessariamente minar cada vez mais a severidade e a disciplina do matronato demétrico, e deve finalmente levar a existência de volta àquele Hetairismo afrodítico que reconhece seu modelo na plena espontaneidade da vida natural. Através do peso de seu testemunho, a história apoia a correção desta conclusão. Pela ligação com Afrodite e com outras mães da natureza de mesma disposição, a ligação de Dionísio com Deméter vai sendo cada vez mais empurrada para o segundo plano; os cereais, símbolos da maternidade ordenada, a espiga e o pão, dão lugar à uva báquica, o fruto luxuriante do Deus procriador; leite, mel e água, as oferendas castas dos velhos tempos, dão lugar à excitação, à luxúria sensual e intoxicante do mais profundo telurismo; a procriação pantanosa com todos os seus produtos – os animais não menos que as plantas – adquirem uma preponderância significativa sobre a cultura agrícola superior e seus dons. Estamos convencidos de que a configuração da vida seguiu completamente o mesmo rumo sobretudo pela visão do antigo mundo dos túmulos, que através de seu contraste devastador se tornou a principal fonte de nosso conhecimento sobre a direção bastante sensual-erótica da vida da mulher dionisíaca. Reconhecemos novamente a profunda influência da religião no desenvolvimento de toda a moralidade. O culto dionisíaco deu à Antiguidade a mais alta educação de uma civilização completamente afrodítica, e lhe deu aquele esplendor diante do qual todo refinamento e toda arte da vida moderna empalidecem. Ele soltou todos os grilhões, aboliu todas as diferenças e, ao dirigir o espírito dos povos dando preferência para a matéria e para o embelezamento da existência física, conduziu a própria vida de volta às leis da matéria. Esse progresso na sensualização da existência coincide em todos os lugares com a dissolução da organização política e o declínio da vida do estado. No lugar de uma estrutura rica, se afirma a lei da democracia, da massa indistinguível, e daquela liberdade e igualdade que distinguem a vida natural – pertencente ao lado corpóreo-material da natureza humana – da vida civil-ordenada. Os antigos são completamente claros sobre esta ligação, eles a enfatizam nos ditos mais decisivos e nos apontam através de dados históricos significativos a emancipação carnal e a política como irmãs gêmeas sempre necessariamente ligadas. A religião dionisíaca é ao mesmo tempo a apoteose do gozo afrodítico e da fraternidade geral, ela é, portanto, particularmente cara às classes servis e particularmente favorecida pelos tiranos – os pisistrátidas, os Ptolomeus, César – no interesse de sua dominação, baseada no desenvolvimento democrático. Todos esses fenômenos nascem da mesma fonte, são apenas lados diferentes do que os antigos já chamavam de era dionisíaca. Fruto de uma moralidade essencialmente feminina, se é dado novamente nas mãos da mulher aquele cetro, com o qual Basileia governa a cidade de “As aves” de Aristófanes, então se favorecem seus esforços de emancipação, como representam “Lisístrata” e “As mulheres na Assembleia” em conexão com as condições reais da vida ático-jônica, e assim se estabelece uma nova ginecocracia, a dionisíaca, que se afirma menos nas formas jurídicas do que na força silenciosa de um afroditismo que domina toda a existência.

Uma comparação deste domínio feminino tardio com o original é particularmente adequada para colocar a particularidade de cada um sob uma luz clara. Enquanto o original tem o caráter demetricamente casto de uma vida baseada no rigor da disciplina e dos costumes, o tardio repousa essencialmente na lei afrodisíaca da emancipação carnal. Se aquele aparece como a fonte das altas virtudes e de uma existência que, embora limitada a estreitos círculos de pensamento, é, no entanto, firmemente fundamentada e bem ordenada, este esconde, sob o esplendor de uma vida desenvolvida ricamente no material e dinamicamente no espiritual, a decadência da força e uma corrupção da moralidade que levou mais do que qualquer outra causa à queda do velho mundo. Se a bravura do homem anda de mãos dadas com a velha ginecocracia, então a ginecocracia dionisíaca lhe dá uma debilitação e degradação da qual a própria mulher acabe se afastando no final com desprezo. Não é uma das provas de menor importância da força interior dos povos lício e élido que essas duas tribos, de todos os povos originalmente ginecocráticos, há muito tenham conseguido preservar intacta a pureza demétrica de seu princípio materno contra a influência dissolvedora da religião dionisíaca. Apesar do alto desenvolvimento que ela emprestou ao princípio masculino-fálico, quanto mais próxima a doutrina secreta do órfico ficou do velho princípio dos mistérios da mulher, mais próxima ela esteve do perigo da derrota. Com os lócrios epicefírios e os eólicos da ilha de Lesbos, podemos observar com mais clareza a transição e abarcar suas consequências. No entanto, em particular foram os mundos africano e asiático que deram à sua ginecocracia originária o mais completo desenvolvimento dionisíaco. A história confirma múltiplas vezes a observação de que as primeiras condições dos povos voltam a ressurgir na superfície no final de seu desenvolvimento. O ciclo da vida leva o fim, de novo, de volta ao começo. A pesquisa a seguir tem a desagradável tarefa de elevar, através de um novo conjunto de provas, esta triste verdade acima de todas as dúvidas. Especialmente pertencentes aos países orientais, os fenômenos em que esta lei se manifesta não se limitam de forma alguma a eles. Quanto mais avança a dissolução interior do velho mundo, mais decisivamente o princípio materno-material é trazido novamente à tona, e mais resolutamente sua abrangente visão afrodisíaco-hetaírica é elevada acima da demétrica. Mais uma vez vemos que aquela ius naturale, que pertence à esfera mais profunda da existência telúrica, vem à tona, e após a possibilidade de sua realidade histórica ter sido questionada, mesmo para o estágio mais baixo do desenvolvimento humano, a mesma coisa está agora sendo introduzida novamente na vida por último, com a deificação consciente do lado animal de nossa natureza, até mesmo sendo elevada ao centro de doutrinas secretas, e sendo elogiada como o ideal de toda perfeição humana. Ao mesmo tempo, surge um grande número de aparições nas quais as características mais misteriosas da tradição mais antiga encontram paralelos completamente correspondentes. O que encontramos em trajes míticos no início de nossa pesquisa assume no fim a historicidade de um tempo muito novo, e prova através desta ligação como, apesar de toda a liberdade de atuação, o progresso do desenvolvimento humano é realizado com regularidade.

 

Na agora concluída apresentação das várias etapas do princípio materno e na sua luta entre si, enfatizei repetidamente o crescimento amazônico da ginecocracia, apontando assim para o importante papel que este fenômeno tem desempenhado na história das relações de gênero. Na verdade, o Amazonismo tem a mais estreita relação com o Hetairismo. Estes dois fenômenos mais peculiares da vida feminina se condicionam e se explicam um ao outro. De que forma devemos pensar sobre sua interrelação deve ser indicado aqui, novamente, em relação exata com as tradições preservadas. Clearco retoma a aparição amazônica de Ônfale com a observação geral de que um tal aumento do poder feminino, onde quer que ele aconteça, pressupõe sempre uma degradação prévia da mulher e deve ser explicado a partir do câmbio necessário dos extremos. Muitos dos mais famosos mitos, os feitos das mulheres lemnas, das Danaides, até mesmo o assassinato de Clitemnestra, são corroborados por isso. Em todo lugar, é o ataque aos direitos da mulher que provoca sua resistência e que arma sua mão, primeiro para defesa, depois para sangrenta vingança. De acordo com esta lei, que se baseia na natureza dos seres humanos, e especialmente na das mulheres, o Hetairismo deve conduzir necessariamente ao Amazonismo. Desgraçada pelo abuso do homem, a mulher sente primeiro o anseio por uma posição segura e uma existência pura. O sentimento de vergonha sofrido, a ira do desespero a inflama à resistência armada e a eleva a essa grandeza guerreira que, ao parecer ultrapassar os limites da feminilidade, está enraizada apenas na necessidade de sua elevação. Duas conclusões podem ser tiradas a partir desta visão e ambas são confirmadas pela história. O Amazonismo se apresenta como um fenômeno muito geral. Ele não está enraizado nas condições e especificidades físicas ou históricas de uma determinada tribo, mas nas condições e fenômenos da existência humana em geral. Com o Hetairismo, ele compartilha o caráter de universalidade. A mesma causa produz o mesmo efeito em todos os lugares. Os fenômenos amazônicos estão entrelaçados nas origens de todos os povos. Eles podem ser encontrados do interior da Ásia até o Ocidente, do Norte da Cítia até o Oeste da África; além do oceano, eles não são menos numerosos, nem menos certos e têm sido observados mesmo em tempos muito próximos da sequência de vinganças sangrentas contra o gênero masculino. É a regularidade da natureza humana que confere aos primeiros estágios de desenvolvimento o caráter geral mais típico. Um segundo fato se une a este primeiro. Apesar de sua degeneração selvagem, o Amazonismo representa uma elevação essencial da moralidade humana. Se ele é retrocesso e degeneração em meio às etapas posteriores da cultura, em sua primeira formação, no entanto, ele é o progresso da vida para uma configuração pura, e não apenas ponto de passagem necessário, mas também, por suas consequências, ponto de passagem benevolente para o desenvolvimento humano. Nele, o sentimento dos direitos superiores da maternidade enfrenta antes de tudo as exigências sensíveis da força física; nele está a primeira semente daquela ginecocracia que, sob o poder da mulher, funda a moralidade estatal dos povos. É precisamente para isso que a história oferece a confirmação mais instrutiva. Mesmo que não se possa negar que a própria ginecocracia ordenada degenerou gradualmente e retornou ao rigor e aos costumes amazônicos, a regra das relações no entanto é oposta, a configuração amazônica da vida é um fenômeno anterior ao da ginecocracia conjugal, e até mesmo a preparação desta última. Encontramos esta relação especialmente no mito lício que nos apresenta Belerofonte, de uma só vez como o vencedor das amazonas e como fundador do direito materno, ambos como ponto de partida de toda a moralidade do país.

Em contraste com o Hetairismo, portanto, o significado do Amazonismo para a elevação da mulher e, portanto, para toda a existência humana, não pode ser contestado. Nos cultos se mostra a mesma sequência de etapas. Embora o Amazonismo compartilhe com a ginecocracia conjugal uma relação mais íntima com a lua, em cuja predileção ante o sol se reconhece o protótipo da soberania feminina, o Amazonismo empresta à estrela noturna uma natureza que é ao mesmo tempo mais escura e mais severa do que a da ginecocracia demétrica. Para esta, ela é considerada a imagem da união conjugal, a mais alta expressão cósmica daquela exclusividade que domina a união do sol e da lua; para a amazona, por outro lado, em sua aparência noturna-solitária, é a imagem da virgem severa; em seu voo diante do sol, o inimigo em conexão permanente; em seu sorriso, que muda eternamente de feição, a terrível Górgona da morte, cujo próprio nome se tornou uma referência amazônica. Se não se pode negar a idade superior desta diante daquela concepção mais pura, então a posição histórica atribuída ao Amazonismo também está assegurada. Em todas as tradições, a ligação íntima de ambos os fenômenos, do culto e das formas de vida, é evidente; a correspondência necessária entre religião e vida revela novamente seu significado pleno. Essas grandes campanhas de conquista empreendidas por cavaleiras mulheres, cuja fundamentação histórica não se abala pela possibilidade de múltiplas derivações infundadas, se apresentam agora sob uma nova luz. Elas aparecem principalmente como uma propagação bélica de um sistema religioso, levam o entusiasmo feminino de volta à sua fonte mais poderosa – o poder reunido do pensamento cúltico e da esperança de fortificar o próprio eu com o domínio da deusa – e nos mostram o significado cultural do Amazonismo em sua aparência mais poderosa. O destino dos estados que emergiram das conquistas femininas é particularmente adequado para confirmar a verdade de nossa visão e colocá-la no contexto mais íntimo da história do mundo ginecocrático. Tradições míticas e históricas entram em estreita associação, se complementam e se confirmam, revelam uma sequência de condições que pressupõem uma à outra. Da guerra e dos empreendimentos bélicos, as cavaleiras vitoriosas passam para o assentamento permanente, a construção de cidades e o cultivo da agricultura. Das margens do Nilo à costa do Ponto, da Ásia Central à Itália, nomes e feitos amazônicos se entrelaçam nas histórias de fundação de cidades posteriormente famosas. Se a lei do desenvolvimento humano traz necessariamente consigo esta transição da vida migratória para o assentamento doméstico, ela corresponde de maneira especial à disposição da natureza feminina e onde quer que esta disposição exerça sua influência, a transição ocorrerá com velocidade redobrada. A observação de povos ainda vivos não deixa dúvidas de que a sociedade humana é trazida pelos esforços das mulheres para a agricultura, que o homem rejeita há muito tempo. As numerosas tradições da Antiguidade, nas quais as mulheres puseram fim à vida migratória através do incêndio de navios, davam seus nomes preferencialmente às cidades, ou, como em Roma e em Elis, estão intimamente associadas à divisão fundamental mais antiga da terra, têm o direito, pela ideia de que surgem, de serem consideradas como reconhecimento do mesmo fato histórico. Na fixação da vida, o gênero feminino cumpre sua determinação natural. A elevação da existência e de toda a moralidade dependem preferencialmente da fundação e da adornação do lar. É um progresso bastante consequente deste desenvolvimento, quando agora a direção rumo à uma vida pacífica se torna cada vez mais determinada, e o cultivo da eficiência bélica, que no início era a única preocupação, é jogado na mesma medida para segundo plano. Embora a prática com as armas nunca tenha se tornado completamente estranha às mulheres dos estados ginecocráticos, embora ela tenha parecido indispensável para proteger seu poder frente aos povos bélicos, e embora a preferência especial pelo cavalo e seus adornos seja notável ainda tardiamente em características até mesmo cúlticas, ainda assim encontramos que logo a condução à guerra se torna um negócio exclusivo dos homens ou ao menos algo em breve compartilhado com eles. E isso de tal forma que aqui os homens aparecem em exércitos na companhia da cavalaria feminina, ali, como mostra o surgimento da Hiera mísia, de maneira oposta.

Enquanto a direção originalmente predominante da vida está, portanto, recuando cada vez mais, o domínio feminino dentro do estado e na família permanece inalterado por um longo tempo. Mas também aqui não se poderia evitar uma restrição progressiva. Passo a passo, a ginecocracia vai sendo empurrada para círculos cada vez mais estreitos. O progresso deste desenvolvimento mostra uma grande diversidade. Rapidamente, o domínio do estado, que cai primeiro; em seguida, inversamente, o domínio doméstico. Na Lícia, se encontra apenas o último, do primeiro não nos chegou nenhuma notícia, embora saibamos que o poder de domínio também era herdado de acordo com o direito materno. Inversamente, a realeza feminina é mantida em outro lugar, seja de maneira exclusiva, seja ao lado dos homens, enquanto o direito materno deixa de dominar a família. As partes do antigo sistema inextricavelmente ligadas à religião têm resistido por mais tempo ao espírito dos tempos. A sanção superior, que repousa sobre tudo o que é do culto, protege-as da queda. Mas outras causas também agiram. Se para os lícios e epicefírios foi o isolamento de sua localização geográfica, e para o Egito e a África em geral foi a natureza do país que exerceu sua influência, encontramos em outros lugares a realeza feminina protegida finalmente por sua própria fraqueza, ou apoiada por formas artísticas, como se sugere na atribuição das cartas ao exercício das regentes asiáticas fechadas dentro do palácio. Junto a estes restos e fragmentos individuais de um sistema que foi originalmente muito mais abrangente, é de particular interesse o relato dos escritores chineses sobre o estado da mulher no interior da Ásia, que até o século oitavo de nosso calendário soube como preservar intacta tanto a ginecocracia estatal, quanto a ginecocracia civil. Elas estão em total concordância, em todos os traços característicos, com os relatos dos antigos sobre a estrutura interna dos estados amazônicos, no elogio à eunomia e ao alinhamento pacífico à toda a vida do povo, e também com os resultados da minha própria reflexão. Não foi uma destruição violenta que eliminou cedo a maioria das fundações amazônicas, e que tampouco poupou a colônia italiana dos clítios, mas foi a influência silenciosa do tempo e do contato com o poderoso império vizinho que privou o mundo moderno da visão de uma condição social que, para a humanidade europeia, pertence às memórias mais antigas e obscuras de sua história, e que ainda hoje deve ser chamada de pedaço esquecido da história mundial.

Em um campo de pesquisa que, como o atual, se assemelha a um monstruoso campo de escombros, o uso de relatos distantes entre si, em termos de povos e tempos, é frequentemente a única maneira de se obter luz. Somente prestando atenção a todas as digitais podemos colocar a tradição fragmentada em uma ordem adequada. As diversas formas e expressões do princípio materno entre os povos do velho mundo nos parecem agora como tantas etapas de um grande processo histórico que, começando nos tempos primitivos, pode ser seguido até períodos muito tardios, e que ainda está em meio a seu desenvolvimento entre os povos do mundo africano. Partindo dos direitos maternos ordenados demetricamente, penetramos na compreensão dos fenômenos hetaíricos e amazônicos da vida antiga das mulheres. Após contemplar esta etapa mais profunda da existência, somos agora capazes de reconhecer a etapa mais elevada em seu significado verdadeiro e de posicionar a vitória do direito paterno sobre a ginecocracia no seu correto lugar no desenvolvimento da humanidade.

 

O progresso da concepção materna para a concepção paterna do humano é o ponto de virada mais importante na história das relações entre os gêneros. Se o estágio demétrico da vida compartilha com o estágio afrodisíaco-hetaírico o princípio da maternidade grávida, que pela maior ou menor pureza de sua concepção leva à distinção entre as duas formas de existência, então, por outro lado, a transição para o sistema da paternidade envolve uma mudança do próprio princípio básico, uma superação completa do ponto de vista anterior. Uma visão completamente nova toma forma. Se a ligação entre mãe e filho repousa sobre um vínculo material, se é reconhecível aos sentidos e é sempre uma verdade natural, então a paternidade geradora carrega em todas as suas partes um caráter de natureza oposta. Sem vínculo visível com a criança, mesmo em relações conjugais, a paternidade nunca pode descartar a natureza de uma mera ficção. Pertencendo ao nascimento somente através da mediação da mãe, a paternidade aparece sempre como a potência mais distante. Ao mesmo tempo, a paternidade carrega em sua essência um caráter imaterial de causalidade despertadora, em contraste com a mãe cuidadora e nutridora que se apresenta como hyle, como chora kai dexamene geneseos, como tilhene[31]. Todas estas características da paternidade levam à conclusão: na ênfase da paternidade está o desligamento do espírito dos fenômenos da natureza, e em sua implementação vitoriosa está uma elevação da existência humana acima das leis da vida material. Se o princípio da maternidade é comum a todas as esferas da criação telúrica, então o humano, através da preponderância que dá à potência geradora, sai desta relação e se torna consciente de seu chamado superior. Acima da existência física, se eleva a espiritual, e a correlação com os círculos mais profundos da criação agora se limita a ela. A maternidade pertence ao lado carnal do humano, e é somente para este lado que sua correlação com os outros seres será doravante registrada; o princípio paternal-espiritual é adequado só para ele. Ele rompe os laços do telurismo e levanta os olhos para as regiões mais elevadas do cosmos. A paternidade vitoriosa está tão decisivamente ligada à luz celestial, quanto a maternidade do nascimento está ligada à Terra que tudo gera, a execução do direito da paternidade é geralmente apresentada como a ação dos heróis solares uranianos assim como, por outro lado, a defesa e a preservação imaculada do direito materno é atribuída às divindades ctônicas como seu dever primeiro.

No matricídio de Orestes e de Alcmeão, o mito interpretou a luta entre o velho e o novo princípio desta maneira, e posicionou o grande ponto de viragem da vida em relação íntima com uma elevação da religião. Também temos que reconhecer nestas tradições a memória de experiências reais do gênero humano. Se o caráter histórico do direito materno não pode ser colocado em questão, então os eventos que acompanham sua queda também são mais do que ficção poética. Nos destinos de Orestes reconhecemos a imagem das convulsões e das lutas a partir das quais emergiu a ascensão da paternidade sobre o princípio ctônico materno. Mesmo que possamos conceder alguma influência à poesia decorativa, a oposição e a luta entre os dois princípios conflituosos, representados por Ésquilo e também por Eurípedes, tem verdade histórica. O ponto de vista da lei antiga é o das Erínias, para quem Orestes é culpado pelo inominável sangue derramado da mãe; Apolo e Atena, por outro lado, levam uma nova lei à vitória, aquela da paternidade superior da luz celestial. Não é uma batalha da dialética, mas da história, que os próprios deuses decidem. Uma era mundial chega ao fim, uma nova se eleva de suas ruínas, a apolínea. Uma nova moralidade se prepara, em oposição à anterior. À divindade da mãe segue a divindade do pai, ao principado da noite o do dia, à preferência pelo lado esquerdo a preferência pelo direito, e é somente através do contraste que a diferença entre as duas fases da vida se torna completamente clara. Enquanto a cultura pelasga recebe seu caráter distintivo pela importância predominante da maternidade, o Helenismo, em oposição, está intimamente ligado ao despontar da paternidade. Lá, o cativeiro material, aqui, o desenvolvimento espiritual; lá, a regularidade inconsciente, aqui, o individualismo; lá, a devoção à natureza, aqui, a elevação sobre si mesmo, o rompimento das velhas barreiras da existência, o esforço e o sofrimento da vida prometeica no lugar da paz insistente, de seu gozo pacífico e da imaturidade eterna em corpo envelhecido. O dom gratuito da Mãe é a maior esperança do mistério demétrico, reconhecido no destino da semente; o helênico, por outro lado, quer alcançar tudo, mesmo o mais alto, para si mesmo. Na luta, ele toma consciência de sua natureza paterna e, lutando, se eleva acima da maternidade à qual ele um dia pertenceu completamente; lutando, ele se esforça para se elevar à própria divindade. Para ele, a fonte da imortalidade não está mais na mulher que dá à luz, mas no princípio criador masculino, que ele agora veste com a divindade que o mundo anterior concedia apenas a ela. Não se pode negar ao povo ático a fama por ter dado o mais puro desenvolvimento à natureza de Zeus do patriarcado [Vatertum]. Se a própria Atena repousa sobre o folclore pelasgo, por outro lado, ela submeteu completamente o princípio demétrico ao apolíneo no curso de seu desenvolvimento, adorou Teseu como um segundo Hércules misógino, em Atenas colocou a paternidade sem mãe no lugar da maternidade sem pai, e mesmo em sua legislação de paternidade garantiu em sua generalidade de princípios aquela inviolabilidade que o antigo direito das Erínias concedia apenas à maternidade. A deusa virgem, em quem o Amazonismo bélico dos tempos antigos é espiritualmente invertido, é chamada de equilibrada e justa por todos os homens, de prestativa a todos os heróis da lei solar paterna – hostil ao Amazonismo e em sua cidade ameaçadora a todas aquelas mulheres que, defendendo os seus direitos do seu gênero, amarram cordas aos navios nas costas da Ática em busca de ajuda. O contraste entre o princípio apolíneo e o princípio demétrico se mostra aqui em sua execução mais afiada. A mesma cidade, em cuja pré-história surgem traços claros de condições ginecocráticas, deu o mais puro desenvolvimento à paternidade e, num exagero unilateral da direção tomada, condenou a mulher a uma subordinação particularmente surpreendente por seu contraste com as bases das ordenações eleusianas.

A Antiguidade é particularmente instrutiva na medida em que completou seu desenvolvimento em quase todas as áreas da vida, emprestando a cada princípio sua perfeita execução. Fragmentada e rasgada em sua tradição, neste aspecto mais importante, no entanto, ela é um todo. Sua pesquisa concede assim uma qualidade que nenhum outro tempo é capaz de oferecer. Ela garante ao nosso conhecimento sua conclusão. A comparação entre o ponto de partida e o ponto final se torna a fonte mais rica de conhecimento sobre a natureza de ambos. É apenas através do contraste que as peculiaridades de cada etapa adquirem sua inteligibilidade total. Assim, se eu dedicar uma reflexão detalhada à formação da paternidade e à transformação da existência ligada a ela, não se trata de uma prolongação indevida, mas sim de uma parte necessária da minha tarefa. A mudança do ponto de vista paterno e materno será seguida particularmente em dois campos, o da incorporação à família por adoção e o da mancia. A adoção de crianças – impensável sob o domínio de condições puramente hetaíricas – deve assumir uma forma bastante diferente diante do princípio demétrico, do que segundo a ideia apolínea. Lá, guiada pelo princípio do nascimento materno, não pode se afastar da verdade da natureza; aqui, por outro lado, carregada pelo significado ficcional da paternidade, ela se elevará ao princípio da procriação puramente espiritual, ela efetivará uma paternidade sem mãe, despojada de toda materialidade, e assim levará a termo a ideia de sucessão em linha reta, que falta na maternidade, levando à imortalidade apolínea da raça. Para a mancia, o mesmo princípio de desenvolvimento pode ser encontrado especialmente na formação da profecia iamídica. Materna-telúrica em seu nível melampódico mais baixo, ela se torna completamente paternal-apolínea em seu nível mais elevado, e se une na ideia da linha de sucessão, que ela agora enfatiza, com a mais alta espiritualização da adoção, que pertence à mesma imagem. Mas sua contemplação se torna duplamente instrutiva na medida em que nos coloca em conexão com a Arcádia e com Elis, duas sedes principais da ginecocracia, e assim oferece a oportunidade de contemplar em estreita proximidade o paralelismo entre desenvolvimento do direito familiar e o da mancia, ou seja, da religião em geral.

Na formação do espírito humano, a regularidade recebe um alto grau de certeza objetiva através da justaposição entre essas diferentes áreas da vida. Em toda parte, a mesma elevação da terra para o céu, da matéria para o imaterial, da mãe para o pai, em toda parte, aquele princípio órfico, que assume uma purificação sucessiva da vida, de baixo para cima, e que mostra particularmente aí sua oposição de princípio à doutrina cristã e ao seu ditado: “ou gar estin anēr ek gynaikos, alla gynē ex andros[32].

 

A segunda direção principal da minha pesquisa, que eu denominei de histórica e que eu relacionei com a luta do direito materno contra níveis de vida mais elevados e mais profundos, encontra seu fundamento mais profundo na reflexão sobre a correlação interna, que liga o progresso gradual do desenvolvimento espiritual do humano a uma sucessão de fenômenos cada vez mais elevados do cosmos. O contraste absoluto entre nosso modo de pensar atual e o da Antiguidade não é tão surpreendente como no campo em que estamos entrando agora. A subordinação das leis espirituais às leis físicas, a dependência do desenvolvimento humano de forças cósmicas parece tão estranha que nós nos sentimos tentados a relegá-la ao reino dos sonhos filosóficos ou a retratá-la “como rosto febril e alto disparate”. E, no entanto, não se trata de uma aberração fruto de velhas ou novas especulações, não é um paralelo sem comparação, não é de forma alguma uma teoria, mas sim, se assim posso me expressar, verdade objetiva, empiria e especulação ao mesmo tempo, uma filosofia auto revelada no desenvolvimento histórico do próprio mundo antigo. Todas as partes da vida antiga são permeadas por ela; em todos os estágios do desenvolvimento religioso ela emerge como um pensamento condutor; cada elevação do direito familiar é baseada nela. Ela carrega e governa tudo, e é a única chave para a compreensão de um grande número de mitos e símbolos ainda não explicados. Já o nosso relato anterior oferece os meios para nos aproximarmos do ponto de vista dos antigos. Ao apresentar a dependência dos diversos estágios do direito familiar a partir de tantas ideias religiosas diferentes, ele leva à conclusão de que a mesma relação de subordinação em que a religião se encontra diante dos fenômenos naturais deve, por consequência, reger as condições familiares. O estudo da Antiguidade traz, a cada passo, novas confirmações dessa verdade. Todas as etapas da vida dos gêneros, desde o Hetairismo afrodítico até a pureza apolínea da paternidade, têm seu modelo correspondente nas etapas da vida natural, desde a vegetação pantanosa selvagem – o protótipo da maternidade não conjugal – até a lei harmoniosa do mundo uraniano, e a luz celeste, que, como flamma non urens[33], corresponde à espiritualidade da paternidade eternamente rejuvenescedora. A ligação é de tal forma lícita que, a partir da predominância de um ou de outro dos grandes corpos espaciais no culto, pode ser deduzida a formação da relação entre os gêneros na vida, assim como, em um dos lugares mais importantes do culto lunar, a designação como masculina ou feminina da estrela da noite pode ser tomada como uma expressão do domínio do homem ou da mulher.

Dos três grandes corpos cósmicos: Terra, Lua e Sol, o primeiro aparece como o portador da maternidade, enquanto o último conduz ao desenvolvimento do princípio paterno; o estágio mais profundo da religião, o telurismo puro, exige o princípio do ventre materno, transfere a base da masculinidade para as águas telúricas e para o poder dos ventos, que, pertencendo à atmosfera terrestre, desempenham um papel importante no sistema ctônico e, finalmente, subordina a potência masculina à feminina, o oceano ao gremium matris terrae[34]. Com a terra se identifica a noite, que é concebida como um poder ctônico, materno, relacionada de maneira especial com a mulher, e dotada com o centro mais antigo. Ao seu lado, o Sol levanta seus olhos para contemplar a glória maior do poder masculino. A estrela do dia conduz a ideia de paternidade à vitória. O desenvolvimento se completa em três etapas, duas delas seguem exatamente o fenômeno natural, enquanto a terceira tenta ir além dele. Ao nascer do sol, a religião antiga associou a ideia da superação vitoriosa da escuridão materna como fundamento de esperanças futuras, tal como ela muitas vezes aparece no mistério. Mas nesta etapa de luz matutina, o filho luminoso ainda é inteiramente dominado pela mãe, o dia é chamado de hemere nykterine[35], e, como no nascimento sem pai da Mater Matuta, esta grande Ilítia, ele está associado a qualidades peculiares do direito materno. A libertação completa da união materna não ocorre até que o Sol atinja o maior desvelamento de seu poder de luz. No auge de seu poder, equidistante da hora do nascimento e da morte, do pastor que chega e do pastor que parte, está a paternidade vitoriosa, diante de cujo esplendor a mãe se subordina tanto quanto domina a masculinidade poseidoniana. Esta é a execução dionisíaca do direito paterno, a etapa daquele deus que é chamado simultaneamente de poder solar desenvolvido da maneira mais rica e de fundador da paternidade. Ambas as expressões de sua natureza correspondem perfeitamente. A paternidade dionisíaca é fálico-geradora, como o Sol em sua masculinidade mais exuberante; sempre em busca da matéria receptora para despertar nela a vida, tanto Sol, como pai. Muito diferente e muito mais puro é o terceiro estágio do desenvolvimento solar, o apolíneo. Deixando o fálico, sempre entre o nascer e o pôr, entre o tornar-se e o desaparecer, emergindo e afundando, o Sol se eleva para a fonte imutável da luz, para o reino do ser solar, e deixa para trás, bem para o fundo, qualquer ideia de procriação e fertilização, qualquer saudade de mistura com a matéria feminina. Se Dionísio apenas elevou a paternidade acima da mãe, Apolo se liberta completamente de qualquer ligação com a mulher. Sua paternidade é sem mãe, é espiritual, como a que existe na adoção, imortal, portanto, não sujeita à noite mortal que Dionísio, porque fálico, sempre contempla. Esta relação entre os dois poderes de luz e as duas paternidades neles fundadas aparece no “Íon” de Eurípides, que, seguindo de perto as ideias délficas, adquire um significado especial para o tema da pesquisa a seguir, em grau ainda maior do que o romance de amor de Heliodoro. Entre os dois extremos, a Terra e o Sol, a Lua ocupa aquela posição intermediária que os antigos chamam de região fronteiriça entre os dois mundos. A mais pura dos corpos telúricos, a mais impura dos corpos uranianos, ela se torna a imagem da maternidade elevada à mais alta purificação pelo princípio demétrico, e como terra celestial oposta ao ctônico, também a mulher demetricamente consagrada em oposição ao hetaírico. Em consonância, o direito matrimonial materno parece sempre e sem exceção estar ligado à preferência de culto pela Lua em relação ao Sol; igualmente em consonância está o pensamento de consagração superior do mistério demétrico, que serve como base da ginecocracia, como um dom da Lua. Luna é mãe e ao mesmo tempo fonte da doutrina, como a encontramos também no mistério dionisíaco e, em ambos, também protótipo da mulher ginecocrática.

Seria inútil perseguir aqui as ideias da Antiguidade sobre este ponto; minha pesquisa mostrará como elas são indispensáveis para a compreensão de mil detalhes. Por enquanto, basta a ideia básica. A dependência dos estágios específicos da relação entre os gêneros acerca dos fenômenos cósmicos não é um paralelo construído livremente, mas um fenômeno histórico, uma ideia da história mundial. Deve o ser humano, o maior fenômeno do cosmos, ser o único excluído de suas leis? Traçado a partir da gradação dos grandes corpos espaciais, que um após outro ocupam o primeiro lugar nos cultos e nos pensamentos dos povos antigos, o desenvolvimento do direito familiar recebe o mais alto grau de necessidade interna e de legitimidade; os fenômenos transitórios da história se mostram como expressão de ideias divinas da criação, que a religião toma como seu fundamento.

 

A consideração que acabamos de concluir nos permite apreciar corretamente a história da relação entre os gêneros também em sua última parte. Após termos apresentado todas as etapas de desenvolvimento, do telurismo desregrado à forma mais pura do direito luminoso, e de tê-las examinado em suas manifestações históricas, religiosas e cósmicas, resta ainda uma pergunta, que se não for respondida, deixará este tratado com seu assunto ainda não esgotado. Neste campo, qual é a forma final que a Antiguidade foi capaz de dar à vida?

O direito paterno parecia poder esperar sua execução e afirmação de dois poderes: o Apolo Délfico e o princípio estatal romano do imperium masculino. A história ensina que a humanidade deve menos ao primeiro do que ao segundo. A ideia política de Roma pode carregar em si um grau menor de espiritualidade do que o délfico-apolíneo, mas em sua forma legal e conexão íntima com toda a vida pública e privada, ela possuía um suporte, que no caso do poder puramente espiritual do deus se quebrou completamente. Assim, embora o primeiro fosse capaz de resistir vitoriosamente a todos os ataques e não pudesse ser superado pela decadência da vida mais do que pelo retorno cada vez mais decisivo às visões materiais, não foi dado a ele suportar vitoriosamente as lutas que concepções mais profundas preparavam com uma determinação cada vez maior. Vemos a paternidade retrocedendo de sua pureza apolínea e afundando rumo à materialidade dionisíaca, preparando assim uma nova vitória para o princípio feminino e um novo futuro para os cultos maternos. Se a íntima união que os dois poderes de luz estabeleceram entre si em Delfos parecia elevar a opulência fálica de Dionísio através da calma e da clareza imutáveis de Apolo, purificando e purgando, por assim dizer, para cima de si mesmo, o resultado foi exatamente o oposto, o encanto superior e sensual do deus procriador superou a beleza mais espiritual do seu par e tomou o poder dedicado a ele com cada vez mais exclusividade. Em vez da era apolínea, abre-se o caminho dionisíaco, e Zeus cedeu o cetro de seu poder a ninguém menos do que a Dionísio, que soube como subordinar todos os outros cultos e que finalmente surgiu como o centro de uma religião universal que dominou todo o mundo antigo. Na obra de Nono de Panópolis, antes da assembleia dos deuses, Apolo e Dionísio discutem sobre o prêmio; confiante na vitória, Dionísio levanta os olhos para Apolo e este, quando seu oponente oferece o vinho ardente para o prazer, abaixa seus olhos para a terra, ruborizado, pois não tem um dom comparável para oferecer. Nesta imagem está tanto o sublime, quanto a fraqueza da natureza apolínea, nela está o segredo da vitória conquistada por Dionísio. O encontro entre os mundos grego e oriental, que Alexandre promove, ganha neste contexto especial importância. Vemos os dois grandes opostos da vida lutando um contra o outro, mas, de certo modo, finalmente reconciliados pelo culto dionisíaco. Em nenhum lugar Dionísio encontrou mais cuidado, em nenhum lugar encontrou um culto mais exuberante do que na casa dos Ptolomeus, que reconheceram nele um meio de facilitar substancialmente a assimilação entre o nativo e o estrangeiro.

O tratado a seguir dará atenção especial a esta luta da história mundial, na medida em ela se mostra na formação da relação entre os gêneros, e seguirá em traços individuais diversos a resistência obstinada que o princípio autóctone de Ísis opõe à teoria da paternidade grega. Duas tradições chamam particularmente a atenção, uma mítica e outra histórica. Na história da disputa de sabedoria entre Alexandre e a Candace indiano-meroítica, a humanidade contemporânea estabeleceu sua visão sobre a relação entre o princípio masculino-espiritual, que em Alexandre aparecia em sua mais bela encarnação, e o princípio materno do mundo asiático-egípcio, prestando homenagem à divindade mais elevada da paternidade, mas ao mesmo tempo indicando que o jovem herói que atravessou o palco diante do olhar atônito de dois mundos, não conseguiu subordinar permanentemente ao direito do homem o direito da mulher, a quem ele se viu obrigado a prestar a mais alta homenagem em todos os lugares. O segundo relato estritamente histórico nos leva ao tempo do primeiro Ptolomeu e se torna altamente instrutiva, através das circunstâncias específicas com que ele comunica sobre a escolha do Sarapis de Sinope e sua introdução no Egito – especialmente através da ênfase no desvio deliberado da divindade délfica e sua paternidade completamente liberada da associação feminina – para o conhecimento do ponto de vista que a dinastia grega foi forçada a tomar desde o início para a fundação firme de seu reinado. Não se pode negar, portanto, que os testemunhos da história política e religiosa estão em perfeita harmonia. O princípio espiritual do Apolo Délfico não foi capaz de transmitir seu caráter à vida do mundo antigo e de superar as concepções materiais mais profundas da relação entre os gêneros. A humanidade deve a permanente salvaguarda da paternidade à ideia romana de Estado, que lhe trouxe uma implementação juridicamente rigorosa de forma e consequência em todas as esferas da existência, fundou toda a vida sobre ela e soube assegurar para ela total independência da decadência da religião, da influência de costumes corruptos e do retorno do espírito popular às visões ginecocráticas. Vitorioso, o direito romano enfrentou com seu princípio tradicional todos os ataques e perigos ligados ao poderoso avanço do culto materno de Ísis e Cibele e ao próprio mistério dionisíaco que o Oriente preparava, enfrentou as transformações internas da vida, que eram inseparáveis do declínio da liberdade; vitorioso, enfrentou o princípio da fertilidade da mulher que Augusto introduziu pela primeira vez na legislação; vitorioso, enfrentou a influência das esposas e mães imperiais que, desprezando o velho espírito, se esforçaram, não sem sucesso, para agarrar as fasces e signa[36]; vitorioso, finalmente, enfrentou a decidida preferência de Justiniano pela concepção completamente natural da relação entre os gêneros, pela completa igualdade das mulheres e a alta estima pela maternidade grávida; vitorioso, foi capaz também de combater com sucesso nas províncias do Oriente ao descaso romano pelo princípio feminino. A comparação deste poder da ideia de estado romano com a baixa capacidade de resistência de um princípio puramente religioso é adequada para nos fazer compreender toda a fraqueza da natureza humana largada a si mesma, sem a proteção de formas rígidas. A Antiguidade saudou Augusto, que como filho adotivo vingou o assassinato de seu pai espiritual, como um segundo Orestes, e vinculou à sua aparição o início de uma nova era, a era Apolínia. Mas a humanidade deve a realização deste estágio superior não à força interior desse pensamento religioso, mas essencialmente à formação estatal de Roma, que foi capaz de modificar de muitas maneiras as ideias básicas sobre as quais descansava, sem nunca, no entanto, abandoná-las completamente. A mais extraordinária confirmação de meu pensamento se encontra na reflexão sobre a relação de reciprocidade que rege a difusão do princípio do direito romano e do culto materno egípcio-asiático. Paralelamente à submissão do Oriente com a queda da última Candace, a maternidade, que havia sido dominada pela esfera estatal, se eleva com força redobrada para uma nova marcha triunfante, a fim de que seu partido retomasse do Ocidente no terreno religioso aquilo que ela já havia visto como irrecuperavelmente ameaçado por ele na esfera da vida civil. Assim, a luta, terminada em um campo, foi transferida para outro superior, a fim de retornar do último para o primeiro. As novas vitórias que o princípio materno agora conquistou contra a revelação da paternidade puramente espiritual mostram como é difícil para os humanos, em todos os momentos e sob o domínio das mais variadas religiões, superar o peso da natureza material e alcançar o objetivo mais alto de seu destino, a elevação da existência terrena à pureza do divino princípio paterno.

 

O círculo de pensamento em que se move o seguinte tratado encontra sua conclusão natural na última consideração. Os limites perante os quais a pesquisa se paralisa não são arbitrariamente desenhados, mas dados. Igualmente independente de escolha livre é o método de pesquisa e apresentação, sobre os quais ainda devo ao leitor alguns esclarecimentos nesta última parte. Uma pesquisa histórica, que tem de recolher, examinar e relacionar tudo pela primeira vez, é obrigada a colocar reiteradamente o individual em primeiro plano e só gradualmente ascender a pontos de vista mais abrangentes. Todo o sucesso depende do suprimento mais completo possível de material e de sua avaliação de forma imparcial e puramente objetiva. Assim, dão-se os dois pontos de vista que determinam o curso do seguinte tratado. Ele organiza todo o material de acordo com os povos, que formam o princípio máximo da divisão, e abre cada seção com uma consideração sobre testemunhos específicos de relevância particular. É da natureza deste procedimento que ele não pode explicar o círculo de ideias do direito materno em um desenvolvimento lógico, mas sim, dependendo do conteúdo dos relatos de um povo, focar preferencialmente neste ou naquele outro lado, assim como ele também deve confrontar-se repetidamente com as mesmas questões. Num campo de investigação que oferece tanto de novo e de completamente desconhecido, nem esta separação, nem esta repetição podem ser lamentadas ou censuradas. Ambas são inseparáveis de um sistema que se beneficia de avanços decisivos. Em tudo o que a vida dos povos oferece, reina a riqueza e a diversidade. Sob a influência das condições locais e do desenvolvimento individual, as ideias básicas de um certo período de cultura encontram múltiplas expressões entre as tribos específicas; a uniformidade da aparência recua cada vez mais, o particular logo predomina, e sob a influência de mil circunstâncias diferentes, enquanto aqui um lado da vida atrofia cedo, lá ele encontra um desenvolvimento mais rico. É incontestável que só a consideração particular de cada povo pode preservar esta riqueza de formações históricas da atrofia e pode também preservar a própria investigação de uma unilateralidade dogmática. Não a produção de um prédio oco de pensamento, mas apenas o conhecimento da vida, do seu movimento, das suas múltiplas manifestações, pode ser o objetivo de uma pesquisa que se esforça para enriquecer o campo da história e o alcance do nosso conhecimento histórico. Embora os pontos de vista abrangentes sejam de grande valor, eles só aparecem em seu significado pleno fundamentados em detalhes ricos, e somente onde o geral é devidamente ligado ao específico, onde o caráter geral de um período cultural é devidamente ligado ao dos povos individuais é que a dupla necessidade da alma humana de unidade e diversidade se satisfaz. Cada uma das tribos que entra no círculo de nossa reflexão acrescenta novas características à imagem geral da ginecocracia e de sua história, ou nos mostra características já conhecidas a partir de um outro lado menos observado. Assim, o conhecimento cresce com a própria pesquisa; as lacunas se preenchem; observações iniciais são confirmadas, modificadas, ampliadas por novas; o conhecimento se fecha gradualmente, a compreensão recebe uma coerência interior; surgem pontos de vista cada vez mais elevados; finalmente, todos encontram sua unificação na unicidade de um pensamento superior. Maior do que a alegria pelo resultado é aquela que acompanha a contemplação de sua preparação gradual. Para que a apresentação não perca este fascínio da pesquisa, ela não deve se preocupar primeiramente em comunicar os resultados, mas em explicar como eles foram obtidos e como eles se desenvolveram gradativamente. Por este motivo, o seguinte tratado exige co-trabalho e co-estudo em todos as partes, e sempre cuida para que seu autor não interfira entre a observação do próprio leitor e o material antigo apresentado, desviando assim a atenção que só pertence ao objeto. Somente o que é adquirido por conta própria tem valor, e nada repele mais a natureza humana de si mesma do que o que é dado pronto. O presente livro não faz outra reivindicação ao público a não ser a de apresentar à pesquisa acadêmica um novo material de reflexão que não é fácil de ser esgotado. Se ele possuir este poder de estímulo, ele voltará com prazer para a modesta posição de mero trabalho preliminar, e se submeterá também com equanimidade ao destino habitual de todas as primeiras tentativas, ser mantido em baixa estima por seus sucessores e ser julgado apenas por suas falhas e imperfeições.

[1] Esta tradução é provisória e ainda está em revisão e andamento. O projeto é traduzir todo o livro, a partir do original em alemão, com notas. A presente versão foi alterada pela última vez em 17/02/2021.

[2] Doutor em Teoria literária pela USP e pós-doutorando em Teoria Literária pela Unicamp, como bolsista do PNPD/CAPES. E-mail: tommy.amorim@gmail.com

[3] A indecisão – a ser definida em edição futura – quanto à tradução do título do livro e de alguns de seus termos é instigante e diz respeito à posição do livro no debate que ele instaurou. Se a obra é uma das primeiras referências quando se fala em estudos do matriarcado, o termo em si, “Matriarchat” em alemão, nunca surge nela porque só se popularizou no final do século XIX. Esse parece um daqueles casos em que uma opção ousada de tradução ganhou uma sobrevida maior e acabou ofuscando o título original (como no caso do “Animal Farm” de George Orwell ou do “Sonnenfinsternis” de Arthur Koestler…). Das Mutterrecht é literalmente direito materno ou direito da mãe. As traduções italiana e espanhola optaram por adaptar o título para o termo “Matriarcado”, ideia guarda-chuva para se referir a sociedades matrilineares, dominadas por mulheres ou em que a mulher desempenha papéis importantes, sejam eles rituais, jurídicos, políticos, artísticos ou bélicos. Tudo isso vai no mesmo sentido dos argumentos de Bachofen, não fosse a forte carga trazida pelo termo antagônico, “Patriarcado”, muito em voga hoje e que traz conotações talvez diferentes daquelas da época. As traduções em inglês e francês, por outro lado, preferiram o rigor filológico e traduziram literalmente por direito da mãe. Esta dúvida sobre o título também se estende a uma série de termos que Bachofen utiliza no texto, salvo engano sem grande rigor conceitual, como “Gynaikokratie”, “Muttertum” e “Maternität” (e seus pares masculinos). O primeiro é mais fácil, basta traduzir os termos gregos para chegar à “ginecocracia”, que está já no subtítulo do livro e que se diferencia das outras por não fazer referência especificamente às mães, mas às mulheres, como grupo mais amplo. Os termos seguintes apresentam maiores problemas porque não têm termos equivalentes. Na maior parte das vezes traduzimos como “maternidade”, mas falta à palavra a dimensão política mais ampla que o sufixo “-um” sugere em alemão. Em alguns destes casos, que parecem ser exceção, já que Bachofen não diferencia entre a figura individual e a figura política da mãe (o argumento sobre as comunidades “maternais” é justamente o oposto), caberia de fato a tradução por matriarcado, quando que se trata de um tipo de organização social em que há a primazia da figura materna. A nota da tradução italiana é instrutiva sobre este dilema da “retronomeação” que o livro tem recebido em outras línguas: “Uma palavra de esclarecimento sobre a tradução do título alemão Das Mutterrecht (que literalmente equivale a “direito materno”, termo que também é mantido no texto) com o italiano Il matriarcato. Mesmo que esta palavra (em vez da palavra equivalente “ginecocracia”, realmente usada por Bachofen) tenha dentro de si uma conotação de “domínio” feminino que corre o risco de distorcer a perspectiva especificada por Bachofen, ela não parece enganosa, no entanto, pois mantém a escrita bachofeniana numa rede de referências culturais, como a que veio a conhecer ao longo dos anos seguintes, na qual circula a palavra “matriarcado” (que não aparece nem em Bachofen, nem em Morgan, nem em Engels). (No entanto, estudiosos como o próprio Croce ou Pettazzoni traduziram em italiano – durante suas intervenções no debate sobre a figura do estudioso de Basel – como Matriarcado o título original alemão; e Walter Benjamin, por sua vez, no famoso ensaio de 1935 sobre Bachofen usou – em francês – a expressão Le Matriarchat)”. O que parece acontecer é que “Das Mutterrecht” cumpre seu ousado objetivo de iniciar um campo de estudos que posteriormente receberia o nome guarda-chuva, não disponível para ele na época, de matriarcado. Ambas as escolhas têm seu mérito, portanto: direito materno, é mais fiel ao original e diz apenas estritamente o que o autor quis dizer; matriarcado atualiza o tema central do livro colocando-o já em contato com suas leituras futuras e a inegável carga simbólica trazida com elas. É uma escolha entre precisão sincrônica e generosidade diacrônica, se se puder dizer assim. Qualquer que seja a opção, no entanto, como o próprio leitor verá, o livro cumpre muito bem as tarefas de delimitar as ideias ou de mantê-las amplas quando quer, por isso não se perde muito em nenhuma das opções. Uma outra indecisão se refere ainda à paragrafação. Claramente, o modo de escrita da época de Bachofen é diferente do nosso. Muitas vezes, a introdução de novos argumentos, que seria feita costumeiramente entre nós em novo parágrafo, segue no mesmo, o que pode gerar confusões, até que o leitor se acostume com o estilo do autor. Provisoriamente, nesta primeira versão, decidimos manter a paragrafação do original, que se preocupa mais em fazer pequenas introduções das grandes partes e metacomentários, do que uma separação mais explícita dos temas e argumentos (como feito, por exemplo, sempre correndo o risco da arbitrariedade, na edição espanhola). Por fim, as citações em latim permaneceram, as em grego foram latinizadas, os nomes e referências clássicos traduzidos segundo uso mais comum no português brasilero, mas sem dúvida todas elas merecem uma revisão futura mais rigorosa feita por um especialista em estudos clássicos.

[4] NT: Três trabalhos arcaicos atribuídos a Hesíodo.
[5] NT: “A honra maior do lado esquerdo”.
[6] NT: “Aqueles que amam o pai”, nome de dinastia de reis helenos.
[7] NT: “Terra mãe”.
[8] NT: “Hospitalidade”, o dever de receber bem os estrangeiros.
[9] NT: Conformidade de sentimento, afeto recíproco.
[10] NT: “Antigas estirpes de mulheres”.
[11] NT: Bem agir, respeito diante do divino.
[12] NT: “Medo de demônios”, temor diante do sobrenatural.
[13] NT: Portar o jarro do sacrifício.
[14] NT: Aquisição de um alto grau de iniciação.
[15] NT: Segundo a edição italiana, o termo se refere ao órgão sexual feminino, a vulva, mas também à concha do mar, que é símbolo de Afrodite.
[16] NT: Piedade, medo do sobrenatural, sabedoria e observância das leis.
[17] NT: Modo feminino por excelência, feminilidade.
[18] NT: Nomes femininos que se relacionam com o verbo νοέω: compreendo, penso, significo.
[19] NT: Observância das leis, piedade, educação.
[20] NT: “Colo materno”.
[21] NT: “Eficiência prática”.
[22] NT: Dote.
[23] NT: Felicidade.
[24] NT: Sabedoria.
[25] NT: “Produção espontânea da mãe terra”.
[26] NT: “Verdadeiro”, legítimo.
[27] NT: “Nomeação do pai”.
[28] NT: “Sem pai”.
[29] NT: “Com muitos pais”.
[30] NT: “Ninguém”.
[31] NT: Respectivamente: matéria; lugar e receptáculo de geração; ama.
[32] NT: “Porque o homem não proveio da mulher, mas a mulher do homem”
[33] NT: “Chama que não queima”.
[34] NT: “Útero da mãe terra”.
[35] NT: “Dia noturno”.
[36] NT: Símbolos dos poderes jurídico e militar.