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O LSD de Fauzi Arap

Publicado em 1998, Mare nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos é um depoimento profundo e poético do autor e diretor Fauzi Arap (1938-2013) sobre a procura e o encontro da própria existência – e de sua relação com a arte – através do acesso aos chamados estados alterados de consciência.

O que poderia soar como mais um relato alucinante das descobertas do LSD em plena década de 1960, em Fauzi se torna espécie de “dever do depoimento” a respeito de um caminho em busca do autoconhecimento iniciado em 1963 com sessões de terapia guiadas pelo Dr. Murilo Pereira Gomes incluindo doses de ácido lisérgico, até então pouco ou nada conhecido. Não se trata, porém, de um relato esterilizado ou científico, até porque Fauzi logo abandona as sessões guiadas e passa, ele mesmo e em diferentes ocasiões, a ministrar doses do LSD (nele e alguns amigos – nunca simultaneamente) quase como espécie de ferramenta para uma meditação mais aprofundada.

Estruturalmente, o livro é composto por vinte e três capítulos narrados cronologicamente desde a primeira sessão de psicanálise realizada pelo médico – apresentado a Fauzi por uma jovem atriz cujo nome não nos é revelado – até a data de publicação do livro, 1998, quando o diretor parece ter encontrado o equilíbrio necessário para relatar e difundir suas experiências a respeito do que chama de “administração das forças que nos cercam” (ARAP, 1998, p. 277). O ponto inicial e curioso deste percurso híbrido entre o psicanalítico e o psicodélico é a completa ignorância de Fauzi sobre o assunto, afirmando ter imaginado, por exemplo, “tratar-se de algum tipo de remédio muito eficaz, e não mais que isso” (ARAP, 1998, p. 29).

Mare nostrum (1998), capa de Sidney Itto
Mare nostrum (1998), capa de Sidney Itto

 

A primeira sessão, realizada no consultório do Dr. Murilo e continuada num parque da cidade de São Paulo, é narrada com detalhes retomados por Arap como se revisitasse um percurso que, à época do acontecido, não pode ser analisado com a devida atenção. A experiência com o LSD, para Arap, é apresentada como um “tratamento de choque” se comparada à Psicanálise tradicional, o que não impediu a busca também por este caminho e por outros, como o espiritismo, por exemplo. Antes dessa abertura completa e do abandono das doses ingeridas de LSD, Fauzi relata a grande euforia na descoberta do prazer do autoconhecimento, instinto que o levou a comunicar incessantemente suas experiências aos conhecidos como se pudesse, pelas palavras, transmitir inteiramente a própria intensidade do vivido apenas por ele. Caminho que o levou, evidentemente, a ser considerado como “louco” pelo círculo de artistas de teatro que o rodeava.

Este é também o segundo ponto fundamental de Mare Nostrum: o processo de um artista que, ao buscar conhecer a si mesmo, revela-nos também um recorte importante do contexto do teatro brasileiro da época. Os relatos nos guiam a perceber a transição do posicionamento de um Fauzi fundamentalmente formado pelo marxismo ortodoxo – e, por isso, ligado ao Teatro Arena onde atuou como ator em algumas peças – a um artista que se abre ao entendimento da revolução social através de uma consciência mais precisa e transformadora da sua própria existência. O que, consequentemente, levou-o a deixar a posição de ator para assumir, em definitivo, a posição de autor e diretor teatral.

Pouco ou quase nada reconhecido, possivelmente pela própria autonomia com a qual passou a guiar seu trabalho após desligamento do Arena, Fauzi, ao relatar seus processos psicanalíticos e psicodélicos, apresenta ao leitor ricas perspectivas de trabalhos que marcam o contexto artístico brasileiro do pós-68. Um dos mais memoráveis, sem dúvida, é o trabalho realizado com Maria Bethânia[1] em shows envolvendo o palco de teatro como espaço para apresentações musicais. É dele também a inserção de Bethânia no mundo das declamações poéticas de Fernando Pessoa e Clarice Lispector, por exemplo.

Rosa dos Ventos: o show encantado, um dos melhores discos gravados ao vivo de Maria Bethânia (1971) é, neste sentido, um marco não apenas artístico como também místico. Nesta época, Fauzi já havia passado pelas experiências mais profundas não só com o LSD, mas com a Casa das Palmeiras, centro de reabilitação psiquiátrico dirigido por Nise de Silveira, onde Fauzi desenvolveu uma série de atividades artísticas com os internos numa espécie de relação intrínseca entre a loucura e a arte, tendo encontrado aí o fio complexo das discussões sobre a “normalidade”.  

Segundo o relato do diretor, “O show foi, desde o início, um sucesso imediato e arrebatador” (ARAP, 1998, p.152), tendo nascido numa envolvente trama de descoberta pessoal junto ao movimento filosófico Rosa Cruz, quando já não mais fazia uso do LSD. Num misto de alquimia não propositada e espetáculo indispensável à época (estamos no momento imediato ao pós-1968 e, portanto, no ápice do AI-5), Rosa dos ventos é também o trabalho em que mais fica clara a relação aprofundada (e nem sempre bem gerida) de Fauzi com os meandros do espetáculo e da psicologia humana, o que, ao contrário do que se esperava, não surte um efeito completamente positivo no âmbito pessoal do diretor[2].

Clarice Lispector conversa com a equipe do Teatro Oficina, na montagem de “Perto do Coração Selvagem”. Da esquerda para a direita, Fauzi Arap, José Wilker, Glauce Rocha, Clarice Lispector e Dirce Migliaccio.
Clarice Lispector conversa com a equipe do Teatro Oficina, na montagem de “Perto do Coração Selvagem”. Da esquerda para a direita, Fauzi Arap, José Wilker, Glauce Rocha, Clarice Lispector e Dirce Migliaccio.

É neste show também que são inseridos trechos de Água viva, de Clarice Lispector. Sobre isso, há um caso curioso: Fauzi relata ter ido em busca de Clarice logo após espécie de crise da incompreensão ao seu redor a respeito de suas experiências lisérgicas e psicológicas. Para ele, a leitura de A paixão segundo G.H indicou a existência de uma autora capaz de compreender a complexidade do psicologismo humano. Num dos encontros, afirma, descobriu ter também Clarice passado pela mesma sessão com o LSD com o médico Dr. Murilo. Para Fauzi, que transcreve alguns trechos do romance, mostrou-se impossível compreender tal romance apenas como literatura. Era, antes de tudo, “o relato da viagem essencial dela mesma, Clarice Lispector” (ARAP, 1998, p. 73), um “relato iniciático”, de modo que “Raras vezes a arte atinge essa capacidade de mergulho análoga a certos êxtases dos santos e capaz de provocar a chamada “suspensão da descrença” (ARAP, 1998, p. 73).

Nota-se como a arte (teatro, literatura e música), o autoconhecimento, e o tabu do acesso aos estados transcendentes da consciência são pontas que vão sendo torcidas por Fauzi com o intuito de demonstrar, a fim e a cabo, um processo muito mais amplo e complexo de autoconhecimento e de desenvolvimento artístico envolvendo não só o próprio Arap como também um círculo mais expandido de artistas – entre eles a atriz Maria Alice, a própria Clarice Lispector, Maria Bethânia e Antônio Bivar.

O que fica de Mare nostrum, portanto, é muito mais do que os relatos de um artista experimentando todas as transcendências possíveis e fundamentais do pós-68. Fica, sobretudo, o percurso pessoal e artístico de um dos grandes nomes do espetáculo brasileiro responsável por difundir o encanto da existência, da loucura e da arte numa época em que as fronteiras destes três territórios aparentemente tão opostos foram rompidas pela música, pelo teatro e pela busca de um “eu” fluido & complexo e, por isso, divino & maravilhoso.

 

Referência

 

ARAP, Fauzi. Mate nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 1998.

 

Saiba mais sobre Fauzi Arap: https://pt.wikipedia.org/wiki/Fauzi_Arap

 

[1] Que, aliás, assina a orelha do livro afirmando se tratar de um “objeto sagrado para mim. Me ocupo a vigiá-lo, procuro colocá-lo sempre em lugares luminosos e onde de vez em quando passe um leve vento, uma aragem fresca, uma brisa suave que o acaricie”.

[2] Isto porque, segundo seu relato, o sucesso ininterrupto de Rosa dos ventos atrapalhou sua atividade na Casa das Palmeiras, principalmente pelo fato de não ter sabido organizar bem os ganhos econômicos obtidos com o show e, numa espécie de atitude imatura embora louvável, ter partilhado sem muito critério parte desses ganhos com os internos da casa.