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O paradigma nacional-popular da USP em literatura

1. A “retradicionalização frívola” e os argumentos inconsistentes

Em 2009, publiquei um artigo longo analisando o conjunto até então da obra de Carlito Azevedo,[1]  cujas considerações ecoam sinteticamente em recente artigo de Iumna Maria Simon, publicado na revista Piauí.[2]  Em 2008, fora a vez de um texto meu sobre a poesia de Eucanaã Ferraz,[3]  também de certa forma ecoado no recente artigo. Por fim, há anos venho apontando o retorno passivo ao verso, em especial ao verso prosaico, que tomou conta da “irrelevante poesia brasileira” a partir dos anos 1980-1990, e uma interpretação próxima compõe parte importante da argumentação da autora, apesar de ela não se concentrar no retorno ao verso, mas no retorno às formas do passado em geral. Tudo isso, no entanto, leva a conclusões completamente diferentes. Pois o referido artigo é pródigo em aberrações conceituais e quimeras interpretativas. A primeira aberração conceitual aparece já no segundo parágrafo:

Nesse momento de esgotamento do moderno e superação das vanguardas, instaura-se o consenso de que é possível recolher as forças em decomposição da modernidade numa espécie de apoteose pluralista. [4]

Nem o “moderno” se esgotou, nem o “moderno” se esgota quando da “superação das vanguardas” – as duas interpretações possíveis da afirmação. Afirmação de qualquer modo incompreensível, pois parece igualar moderno e modernismo. Porque apenas o segundo tem uma relação congênita e figadal com o vanguardismo, ou seja, ser modernista é, de certa forma, ser vanguardista, não importando aqui de qual vanguardismo em particular. Logo, seria possível dizer que a “superação das vanguardas”, ocorrida a partir dos anos 1980, marca o esgotamento do modernismo, ou mais corretamente, do modernismo tardio que representaram as últimas vanguardas. Mas se as vanguardas podem ser subsumidas ao modernismo, o modernismo não pode ser confundido com o moderno, do qual é apenas um momento particular. A enormidade desse equívoco conceitual só será explicada (ainda que não justificada) no final do longo artigo. Enquanto isso, ela conduz, de forma desastrosa, toda a interpretação do que pretende discutir:  o neotradicionalismo da poesia brasileira contemporânea, tomando como ponto de partida as obras de Carlito Azevedo e Eucanaã Ferraz, mas também, e mais especificamente, infelizes declarações de ambos a favor do ecletismo formal contemporâneo e do retorno acrítico à tradição.

Uma explicação menor para esse equívoco conceitual (a maior discutiremos adiante) está na necessidade de embasar seu argumento central. Este pretende que a poesia atual se apropria de modo parasitário da “tradição”, no que chama de “retradicionalização frívola”. E como a “tradição” assim reapropriada impropriamente não se limita à tradição modernista, pois inclui entre outras coisas as formas fixas, é preciso incorporar o “moderno” ao objeto da “retradicionalização frívola”. Mas para incluí-lo, e a “retradicionalização” continuar “frívola”, o “moderno” deve estar necessariamnente esgotado. Daí a autora decretar sua morte (sem prejuízo da segunda razão, que é “ideológica”, como se verá).

Além do equívoco conceitual em si, outro problema está em suas consequências. Se o “moderno” está esgotado, ou seja, exaurido até a última gota, esvaziado, morto, somos necessariamente “pós-modernos”. Mas isto justificaria o que a autora pretende criticar, sem que ela perceba a flagrante contradição: o “esgotamento do moderno” é o argumento principal dos defensores de certo “ecletismo pós-moderno”, que inclui, de modo farto (ainda que não se limite a), o recurso da “retradicionalização frívola” (a ponto de se assumir a “frivolidade” como marca positiva do “pós-modernismo”, entendida como herdeira e superadora da ironia modernista, não mais possível ou suficiente por sua própria incorporação vitoriosa). Na verdade, o que se esgotou antes mesmo de existir foi o “pós-modernismo”. Portanto, ainda somos modernos. Logo, o moderno não se esgotou.

A “retradicionalização” a que, corretamente, se refere a autora, para em seguida somar equívocos analíticos em cascata, não é afinal “frívola”, pois é mais e pior do que isso. Ela é, na realidade, militante. O mundo se tornou complexo demais a partir do término da Guerra Fria, que marca o fim das certezas ideológicas da esquerda quanto à vitória final do socialismo, logo, quanto à condenação não somente ideológica mas também histórica do capitalismo. Além disso, com o incremento da globalização, ou globarbarização, ou globanalização, o enfraquecimento do Estado-nação levou à reemergência do localismo, do grupalismo, do tribalismo, que foi confundido pelo multiculturalismo como prova de sua necessidade e acerto (sem qualquer escrutínio crítico-analítico), ao que se somaram as políticas e as poéticas de “gênero” e a aparição complexa no palco ruinoso e ruidoso da geopolítica internacional do islã político. Os programas modernistas e tardomodernistas das vanguardas, que pretendiam grosso modo o aggiornamento poético ao mundo urbano e industrial, não davam mais conta. Mesmo porque, já haviam realizado seus principais intentos.

O caminho da poesia teria de ser, agora, utilizar todos os poderosos meios de produção de linguagem poética liberados pela revolução modernista a fim de dar conta de um mundo que, no final do século XX, derretia todas as certezas impulsionadoras das ações, das posições e das revoluções, incluindo as artísticas, desse mesmo século. Mas eis que os poetas, e, portanto, a poesia, mostraram-se aquém do desafio. Em parte porque ele era, de fato, imenso, e imensamente trabalhoso, e exigiria mobilizar ao máximo as capacidades criativas, intelectuais e informacionais. Em parte porque uma das características desse pouco admirável mundo novo era um imediatismo autossatisfatório caracterizado por uma corrida desabalada à recompensa rápida. E em parte porque a maioria dos poetas tinha e tem fortes limitações ideológicas genericamente “de esquerda”, que de um lado resultam em certezas religiosas quanto ao acerto de sua visão de mundo (portanto isenta de ser suspensa ou questionada), e, de outro, impedem qualquer compreensão clara ou realista da grande confusão contemporânea.

Mas se o mundo contemporâneo não iria ser enfrentado poeticamente, o que só poderia ser feito (ou tentado), como referido, pela reapropriação vigorosa do conjunto dos meios de produção de linguagem poética liberados pela revolução modernista (facultada pelo próprio fim de seu ciclo criativo original, marcado pelos vanguardismos), tal reapropriação deixa de ser necessária. Findo, porém, o momento vanguardista, ou experimentalista, e recusada a necessidade de reapropriação ou remobilização de suas conquistas linguísticas, impõe-se, em primeiro lugar, a irrelevância da poesia, pois incapaz, então, de dar conta do mundo contemporâneo, e em segundo, a retradicionalização militante. Retradicionalização porque não há mais experimentalismo, mas tampouco a opção de um uso vigoroso de suas conquistas; e militante porque é preciso defender o fracasso, a renúncia ou a incapacidade de enfrentar poeticamente a confusão contemporânea. Ora, o único modo de fazer tal defesa é edulcorando a incapacidade, a renúncia e o fracasso em algo positivo, através da defesa do “ecletismo pós-moderno”.

 

2. Edulcoração e confusão


Quanto à possível caracterização da poesia que se escreve hoje no Brasil, há um ponto pacífico: estamos diante de uma extraordinária heterogeneidade. Na convivência de linhagens está em cena, sobretudo, uma contemporaneidade de “formas”. Assim, o verso livre convive com o metro; o soneto com a página neoconcretista; o coloquial com o registro culto e elevado, assim por diante. Essa atualização de formas várias mostra o quanto os poetas atuais não optaram por uma linguagem canônica, inquestionável, com a qual ingressariam sem riscos e pré-aprovados no quadro da poesia brasileira… Hoje, diante do acervo da poesia brasileira e mesmo universal, os poetas sentem-se beneficiados; têm liberdade de fazer uso de quaisquer formas (Eucanaã Ferraz, entrevista de 2002, no site do poeta).

Uma liberdade, naturalmente, irrelevante em si, pois passiva, parasitária, no sentido de indiferente do ato de escolher esse ou aquele modelo de jeans entre os cabides de uma grande loja de departamentos. A grande loja de departamentos da história das formas transforma assim a história das formas numa grande loja de departamentos, para satisfação de Eucanaã Ferraz. Mas não só dele:

Eu sou absolutamente tradicional. Até os anos 50, com as vanguardas, com a ideia de poesia concreta, existia a ideia de que era legal romper com a tradição. Este é o lado do modernismo e das vanguardas com que menos me identifico. Acho mais ousado estar dentro da tradição do que tentar criar do lado de fora. É mais ousado quem tenta dialogar com uma tradição enorme, pois terá que se medir com grandes criadores. Quando um autor escreve hoje um soneto, ele terá que se medir com Dante, com Camões, com Shakespeare. É essa uma ousadia muito maior do que partir para um campo novo em que não há um adversário (Carlito Azevedo: entrevista ao Jornal do Brasil, 14 de dezembro de 1996).

Aqui não se trata tanto, na verdade, de loja de departamentos quanto de olimpíada poética. Qualquer esportista olímpico tem, de fato, de se medir com os recordistas do passado, ou sequer poderá competir, pois se compete a partir das marcas já conquistadas. Em suma: trata-se da mais absoluta bobagem. E de um não ingênuo esvaziamento do significado das conquistas modernistas. Carlito Azevedo (assim como Eucanaã Ferraz) sabe-se incapaz – ao que tudo indica – de tentar enfrentar poeticamente o mundo contemporâneo. Mas em lugar de reconhecer e assumir sua incapacidade, tenta torná-la algo positivo, defensável ou desejável, a fim de ocultá-la sem precisar se arriscar à sua negação, que implicaria o reconhecimento de sua possibilidade. Carlito Azevedo é, no entanto, mais capcioso e deletério. Pois enquanto Eucanaã Ferraz se limita a louvar o ecletismo retradicionalista, o primeiro não se furta a tentar anular o enfrentamento da contemporaneidade que as vanguardas fizeram em sua época, reduzindo-o a experimentalismo ocioso, um “criar do lado de fora” (da própria história literária), “um campo novo em que não há adversário”. Porém havia, na verdade, dois enormes adversários: um, a própria tradição de “Dante, Camões, Shakespeare”; o outro, o novo mundo urbano e industrial do início do século XX, que, somado ao fim das certezas clássicas pelas revoluções científica (físicas relativística e quântica) e filosófica (Nietzsche, Wittgenstein), e ao lado do grande arco da catástrofe entre a Primeira Guerra Mundial e o Holocausto, exigia da poesia o que as formas utilizadas por “Dante, Camões, Shakespeare” não podiam mais dar conta, tornando então necessário repensar tudo, refazer tudo, encarar tudo. Já Carlito Azevedo, para tentar justificar a própria pequeneza ante a grandeza da confusão contemporânea, nega tudo e defende tudo, ou seja, “dialogar (sic) com uma tradição enorme”, tentando travestir a inépcia, o fracasso e a preguiça em “ousadia” (idem). Por isso sua defesa da tradição não é meramente “frívola”, como acredita a autora, mas como dito, militante.

Ela é, portanto, incapaz de fazer um diagnóstico preciso, apesar de chegar relativamente perto:

A tradição se tornou um arquivo atemporal, ao qual recorre a produção poética para continuar proliferando em estado de indiferença em relação à atualidade e ao que fervilha dentro dela.

Sim. Porém não há qualquer “condenação à tradição”, como afirma o título de seu artigo, mas uma opção por ela. E na verdade não pela tradição, porque por um ecletismo acrítico. Daí tanto fazer se algo é tradicional ou novo, por exemplo, vindo de possibilidades de edição de texto da computação gráfica. Tudo é igualmente apropriável, porque tudo é igualmente irrelevante. O fato de chegar perto do dignóstico sem conseguir fazê-lo é mais surpreendente do que passar totalmente ao largo dele.

 

3. É tudo culpa do Haroldo

Torna-se então interessante – na verdade é a única coisa interessante em tudo isso, pois nada há de novo em tal cenário, já velho de vinte anos, ao menos – tentar entender as causas dos equívocos e fracassos analíticos da autora. Por que ela confunde moderno e modernista (ou vanguardista) já está claro: trata-se da necessidade de incorporar toda a modernidade, a fim de poder descrever a “retradicionalização frívola” (de toda a modernidade). Para isso, a modernidade tem de estar “esgotada”. Mas como ela pode fazê-lo, ou seja, o mecanismo que lhe faculta a enormidade do equívoco, é ideológico. E se trata, ironicamente, de um dos três principais motivos pelos quais os poetas são incapazes de fazer frente poeticamente à confusão contemporânea: a velha visão de mundo maniqueísta da esquerda. Ou seja, um dos muitos motivos que os impede de ser ou tentar ser poeticamente relevantes, ao impedi-los de sequer chegar perto de encarar o mundo contemporâneo de frente, como Odisseu encarando o ciclope, para poder perfurá-lo, incapacita a crítica de compreender a verdadeira natureza da incapacidade poética que acredita diagnosticar.

Daí porque a autora perca tempo reescrevendo o já conhecido, para afinal não esclarecer nem explicar o que pretende dar a conhecer. Em primeiro lugar, discorre sobre o extensamente sabido significado da tradição viva conforme entendida pela modernidade e pelos modernismos:


O que se busca na tradição não é nem o passado como experiência, nem a superação crítica do seu legado. Afinal, não somos mais como T. S. Eliot, que acreditava no efeito do passado sobre o presente e, por prazer de inventar, queria mudar o passado a partir da atualidade viva do sentimento moderno. Na sua conhecidíssima definição da tarefa do poeta moderno, formulada no ensaio “Tradição e talento individual”, tradição não é herança. Ao contrário, é a conquista de um trabalho persistente e coletivo de autoconhecimento, capaz de discernir a presença do passado na ordem do presente, o que, segundo Eliot, define a autoconsciência do que é contemporâneo. Nessa visada, o passado é continuamente refeito pelo novo, recriado pela contribuição do poeta moderno consciente de seus processos artísticos e de seu lugar no tempo…

Em segundo lugar, erra continuamente ao interpretar o que querem dizer os dois poetas nos quais embasa toda sua intepretação do fenômeno:


Os dois poetas ostentam o que chamo de “complexo de quem vem depois”, que pressupõe a superioridade da própria posição histórica, beneficiando-se do fato de ser subsequente, sobretudo subsequente à vanguarda e ao esgotamento do movimento moderno. Quem vem depois acredita que, pelas graças da diacronia, herda automaticamente tudo o que veio antes. Situa-se num momento adiantado, não precisa prestar contas, não se impõe uma disciplina criadora ou expressiva, nem pretende formular um projeto – ideia considerada autoritária e canônica, de uma verdade única, como dizem. Os que vieram depois gozam da liberdade de vivenciar sobreposições, tempos múltiplos de causalidade desconhecida ou já esquecida, sem divergências ou intempestividades. Os dois poetas fazem o elogio da heterogeneidade e do repertório universal de formas poéticas que convivem pacificamente neste desaguadouro de tempos e tendências que é o presente.

Bobagem. Nenhum dos dois crê de fato na “superioridade da própria posição histórica” ou situar-se num “momento adiantado”. Toda sua argumentação é, na verdade, meramente ad hoc. O neotradicionalismo, que é apenas parte de um irrestrito ecletismo acrítico, foi primeiro praticado, de um lado por subserviência apequenada aos gigantes dos modernismos, de outro por incapacidade de dar conta da confusão contemporânea. O exercício do ecletismo acrítico é a materialização da irrelevância autossatisfeita e solipsista dos apequenados poetas contemporâneos. Argumentações como essas, de Carlito Azevedo e Eucanaã Ferraz, que a autora toma por reveladoras, são reveladoras apenas de seu oportunismo argumentativo.

Por isso o que interessa aqui é o próprio movimento argumentativo da autora. A denúncia do “presenteísmo” do parágrafo acima serve de introdução a uma crítica a Haroldo de Campos, que ela reputa como o pai de todos os males da “retradicionalização frívola”, por sua vez a mãe de todos os males da poesia contemporânea.

A “poesia da agoridade” foi então [nos anos 1980] anunciada [por Haroldo de Campos] como um programa modesto, mas redentor, para as adversidades do presente: suspendia-se a estratégia de oposição às tradições com prazo vencido e ao conformismo do cânone, em nome de uma “pluralização das poéticas possíveis”, o que subentende um recuo tático e a admissão realista do que existe. Sem derrotismo, ao contrário, com seu imbatível entusiasmo, Haroldo de Campos limitava o âmbito poético ao diálogocom a tradição, ao intertexto e à tradução, todos eles formas fraquinhas de negatividade, porém suficientes, segundo o ex-concretista, para uma reflexão sobre o desencanto do momento.
Seu propósito, a meu ver, é o de mascarar a falta de saída histórica, cancelando a adversidade do presente, a historicidade do eu e das formas literárias, mas preservando uma noção de rigor de construção do poema, cuja matéria fica esvaziada de atualidade (ou seja, da proximidade de um presente problemático). É ocasião, portanto, para multiplicar as linhas da tradição e incitar a apropriação de uma pluralidade de passados, sem o filtro deformador de um programa de futuro. Noutra passagem dos mesmos anos (1983), Haroldo de Campos expressa com euforia o regime novo em que entrava a atividade poética: “Escrever, hoje, na América Latina como na Europa, significará cada vez mais reescrever, remastigar.” Parece definir, assim, uma versão intertextual e determinista da Antropofagia de Oswald de Andrade.
A afinidade das posições dos poetas contemporâneos com a panaceia pós-utópica de Haroldo de Campos não costuma ser apontada ou lembrada, talvez porque diferentes gerações não cheguem a um resultado comum pelas mesmas vias. Entretanto, foi a partir da decretação por tabela do ocaso da vanguarda e do lançamento da “poesia da agoridade”, como abertura edificante para o impasse histórico do momento, que a poesia brasileira se reorganizou e bateu em retirada pelo caminho pós-moderno da retradicionalização. Mas é imprescindível acrescentar que a incorporação generalizada daquelas palavras de ordem de Haroldo de Campos acabou por limpá-las de seus resíduos vanguardistas e de certo progressismo altissonante. Tanto que a poesia contemporânea desmanchou a referência nacional que ainda balizava o itinerário concretista, assim como subestimou a existência de uma crise do verso – as novas gerações sabem, a partir da leitura da poesia dos antigos concretistas, que o verso sobreviveu como um arcaísmo feliz dentro da linguagem multimídia. Os poetas podem agora assumir a heterogeneidade e a multiplicação de passados como ponto de partida, e não mais como pouco heroico ponto de chegada. Menos normativos, sem a folha corrida de feitos revolucionários, dispensam-se de prestar contas sobre a própria posição e ostentar outra vez algum vanguardismo espectral. A retradicionalização decorrente é inespecífica e pró-globalização, uma espécie de abertura geral do mercado, no que se distingue das precauções judiciosas e paternais que Haroldo ainda tomava contra a invasão da poesia convencional.

Descontadas, portanto, as irrelevantes ressalvas – “com seu imbatível entusiasmo”, “precauções judiciosas e paternais que Haroldo ainda tomava” – ele é mesmo o responsável pela poesia ter “batido em retirada”. Seria bom se fosse verdade.

Teríamos, então, ao menos uma causa e um causador, o que nada mudaria na prática, mas tudo mudaria em nossa compreensão do fenômeno. Mas se trata de um excelente exemplo de como afirmar inverdades dizendo a verdade. Sim, “a poesia contemporânea […] subestimou a existência de uma crise do verso”. Nem por isso o verso “sobreviveu como um arcaísmo feliz dentro da linguagem multimídia”, nem isso pode ser depreendido, ao contrário, da leitura dos concretos. Décio Pignatari, por exemplo, sempre foi explícito ao afirmar e reafirmar que o verso sobreviveria como um arcaísmo infeliz, para usar os termos da autora, pois à revelia de sua “superação” modernista-concretista. Porém ela diz que tal conclusão pode ser haurida da “leitura da poesia dos antigos concretistas”, e não de sua crítica. Isso ultrapassa a mitomania. Os concretos em particular e os modernistas em geral se dedicaram vigorosamente à renovação da linguagem poética, e em certo momento acreditaram que o verso, entendido como unidade métrica, poderia e deveria ser substituído, logo, abandonado. E ele o foi de fato. Mas no sentido de ser a referência definidora da linguagem poética. Como escrevi recentemente,

Abandonadas as formas fixas, a forma de cada poema é determinada pelo próprio poema. Se, de um lado, isso permite – no sentido de facultar – à linguagem poética moderna ser proteica, também lhe permite – no sentido de facilitar – ser amorfa. É mais difícil escrever um bom poema moderno do que um bom soneto. Pois nenhum soneto exige a criação congênita de um ritmo, dado que o ritmo do soneto é previamente estabelecido, tanto na métrica (o decassílabo heroico) quanto na rímica (as rimas pareadas e alternantes). Um bom poema moderno, por outro lado, sem balizas prévias, tem de criá-las enquanto se escreve. Escrever um poema moderno é criar uma forma poética (apesar de ela jamais se tornar uma fórmula). [5]

Se escrever um poema moderno é criar uma forma poética, isso significa que a mútua impregnação entre forma e sentido (ou codeterminação morfossemântica) que caracteriza a linguagem poética é levada às últimas consequências, envolvendo todas as variáveis do poema, e não mais apenas suas palavras e suas relações sonoras e semânticas. “Sem balizas prévias”, e com toda possível pertinência considerada a posteriori. Portanto, o verso como referência definidora da linguagem poética foi de fato abandonado, mas isso não significa o abandono do verso em si, por dois bons motivos. Primeiro, porque a adequação entre forma e sentido é a priori aberta, findas as formas fechadas, ou fixas: logo, o verso métrico pode ser adequado a um dado poema, ainda que sua presença ou ausência não defina a modernidade ou tradicionalidade de um poema; segundo, porque o verso entendido no seu sentido mais lato, que é retorno (versus) ou recorrência (de elementos morfossemânticos), que para se realizar impõe o corte da linearidade prosaica “natural” da linguagem verbal em unidades discretas, foi de certo modo o próprio centro da pregação concreta, absolutamente “poetista”, ou seja, antiprosaísta, a ponto de definir a palavra, o vocábulo, e não a frase, como centro estrutural e estruturante do poema, nisto se diferenciando dos primeiros modernismos, que em sua defesa do coloquialismo como um aspecto de modernização ou desliteratização da poesia contrabandearam e/ou defenderam o prosaísmo. Ou a autora não entendeu nada, ou quer confundir tudo.

O que fica demonstrado pela segunda afirmação do parágrafo acima: “Os poetas podem agora assumir a heterogeneidade e a multiplicação de passados como ponto de partida, e não mais como pouco heroico ponto de chegada”. Este “pouco heroico ponto de chegada” seria o “momento pós-utópico” e/ou “pós-vanguardista” que Haroldo de Campos diagnosticou corretamente nos anos 1980. A autora, porém, não está tão preocupada em saber do possível acerto do diagnóstico quanto de condená-lo como “pouco heroico”. Ora, o mensageiro não tem culpa do teor da mensagem. Qualquer possível voluntarismo, tanto político quanto artístico, foi suspenso pela grande crise de paradigmas político-ideológicos decorrente da queda do muro de Berlim, da implosão da URSS e da adoção pelos países ex-comunistas da Europa Oriental do capitalismo e da democracia “burguesa”, fazendo o relógio da história “andar para trás”, ao menos a se crer, como acreditavam as esquerdas, na inexorabilidade histórica do Grande Advento socialista como “fim da história” (nos sentidos de seu final e de seu objetivo), que não passaria da história da luta de classes. É isto afinal o que embasa e contextualiza o diagnóstico de Haroldo, e ele estava infelizmente certo. A “poesia da agoridade” não é propriamente proposta por ele, mas encarada como provável descrição das consequências desse quadro histórico sobre as formas poéticas mais relevantes, no calor da hora. “Haroldo de Campos expressa com euforia o regime novo em que entrava a atividade poética: ‘Escrever, hoje, na América Latina como na Europa, significará cada vez mais reescrever, remastigar’”. Porém não há, objetivamente, euforia alguma nesta frase de Haroldo (ela é puramente constatativa), selecionada pela própria autora para exemplificar sua interpetação. Portanto, sua interpretação não se sustenta. O fracasso, a renúncia ou a resignação dos poetas contemporâneos não é afinal culpa de Haroldo de Campos.

 

4. Tardoesquerdismo canônico, neonacionalismo e cia.

O final do artigo explicita, enfim, as causas das aberrações conceituais da autora, como confundir modernidade e modernismo ou responsabilizar Haroldo de Campos pelo apocalipse poético, e de sua incapacidade de compreender a “retradicionalização frívola”. Trata-se de um renitente tardoesquerdismo e de um francamente arcaico nacionalismo, mesclados a uma visão mais do que ultrapassada da economia política.

A virada para a tradição, a partir dos meados dos anos 80, deu-se no contexto do colapso da modernização, da desagregação do projeto moderno, da falência das utopias.

Portanto, a falência das “utopias” é igual a “colapso da modernização”, é o mesmo que a “desagragação do projeto moderno”. Bobagem, mentira, mistificação. Em primeiro lugar, não houve falência das “utopias” nos anos 1980, assim senso lato, mas tão somente da crença tardia no redencionismo histórico socialista, apesar de quase meio século de stalinismo. O “projeto moderno” viu muitas outras utopias “falirem” em outros momentos históricos: por exemplo, a do nacionalismo e do tecnicismo, nas trincheiras sangrentas da Primeira Guerra Mundial (apesar da farsa histórica do hipernacionalismo nazista posterior). Em segundo lugar, é então falsa a identificação do “projeto moderno” com qualquer utopia morta nos anos 1980, e em particular com o socialismo/stalinismo, que foi apenas a última de várias utopias começadas a nascer com o próprio nascimento da modernidade – que se deu no século XV, e inclui, entre outros, o Renascimento e o Iluminismo. Em suma, o “projeto moderno” é muito anterior e muito mais vasto do que o socialismo/stalinismo, sendo uma de suas principais utopias, em termos de centralidade histórica (nos sentidos temporal e ideológico), a construção da democracia burguesa (“Liberdade, igualdade, fraternidade”) depois da destruição do servilismo do Ancien Régime (1789). Explica-se, enfim, ainda que não se justifique, a confusão entre modernidade e modernismo: pois a modernidade, para a autora, parece concentrar-se no ou se restringir ao século XX, o século da Revolução Socialista (1917).

Se modernidade é igual a modernismo, barbárie é igual a capitalismo (ou vice-versa):

A internacionalização brasileira era um fato e o país sofria a consequência de uma modernização truncada e catastrófica, a qual necessitava impreterivelmente uma crítica especificada do progresso como elemento atualizador. Foi nesse clima, entretanto, que se iniciou uma era de pastiches, glosas, revisitações e intertextualismos, marcada pela volta às convenções poéticas e aos ofícios do verso que idealizam o poético, bem à distância da autoconsciência moderna de que os documentos de cultura são documentos da barbárie de que são feitos.

Tal barbárie, em todo caso, se restringe ao capitalismo.

Esses anos coincidiram […] com o auge do neoliberalismo, que atravessaria os dez anos seguintes e pico difundindo o consenso pluralista a favor da mercantilização, da competência abstrata, da liberação dos mercados, do universalismo vazio. Que são práticas alheias à inquietação crítica e contrárias a tradições intelectuais avançadas, dirigidas à crítica do capitalismo.

Do lado “esquerdo” do campo de visão da autora, está evidentemente grudada a goma de mascar mais do que mascada do esquerdismo canônico, banal. Assim, ao olhar para a esquerda, a autora vê bem e bem próxima a goma de mascar mascada, mas em compensação não consegue ver, ao redor e além, o vasto campo incinerado de seu fracasso histórico. E fracassar, aqui, significa especificamente fracassar como processo civilizatório. Ao revelar-se, então, não a superação da barbárie capitalista, mas o fascismo do stalinismo ou a rendição rósea da social-democracia, a conclusão que se impõe é churchilliana: assim como a democracia é a pior forma de governo, fora todas as demais, também o capitalismo é a pior forma de organização socioeconômica, com a provável exceção das demais. Porém a autora não parece capaz de compreender a lógica paraconsistente de uma dupla exclusão includente. E acredita ainda na dicotômica e, portanto, positiva verdade gauche de que o capitalismo é igual a barbárie, e que barbárie é igual a capitalismo, assim a-historicamente, não importando, numa ponta, o que um certo Karl Marx lhe apontou de revolucionário, modernizador e libertador (em relação ao servilismo do Ancien Régime), e na outra, o fracasso histórico de certa esquerda tanto em superar o capitalismo quanto em ser civilizatória, o que aponta para o que o capitalismo liberal, historicamente congênito à sociedade aberta, não tem do fascismo vermelho nem de seu fracasso… (e tampouco do fascismo negro, diga-se de passagem, que é estatista e antiliberal; restaria falar do fascismo verde da teocracia islâmica).

Do lado direito de sua visão das coisas, a autora é cega para o fato de que o Brasil, o Estado-nação e o nacionalismo estão, no mínimo, relativizados e sob crítica.

 

5. Brasil exportador de commodities para a China capitalista

 

A novidade pouco entusiasmante da dinâmica recente da poesia brasileira é esse apego institucional ou quase oficial à tradição. Valeria agora inscrevermos o significado do fenômeno numa perspectiva longa da história da literatura brasileira. Em literaturas recém-constituídas, de países novos como os da América Latina, o desejo de construir uma tradição sempre envolveu um timbre político de insatisfação com o passado imediato e de protesto contra o atraso.

A única verdade desta afirmação está em “países novos como os da América Latina”. Porque em países novos como os da América do Norte, como EUA e Canadá, isso não se dá. A literatura norte-americana do século XIX, com seus Henry James, Edgar Poe e Walt Whitman, não tem absolutamente nada de “timbre político de insatisfação com o passado imediato e de protesto contra o atraso”. Portanto, não se trata de uma necessidade ou inevitabilidade para “países novos”, mas apenas para países que já nascem atrasados em processos políticos comandados por elites patrimonialistas. Além disso, trata-se de uma opção pelo atraso. Como demonstra a historiadora Miriam Dolhnikoff em uma biografia de José Bonifácio a ser lançada em breve pela Cia das Letras e que é, na verdade, uma radiografia do nascimento político do país, incluindo os principais documentos dos debates e embates pós-independência, no âmbito do Congresso Constituinte de 1824 havia um projeto modernizador, que incluía o fim da escravidão, a reforma agrária, a educação pública universal etc. Esse projeto foi derrotado, impondo-se o exílio aos seus líderes, os Andradas, quando D. Pedro decidiu se aliar às elites provinciais e começar a construir o Brasil independente da maneira mais parecida possível ao Brasil colônia.

Naturalmente, a “necessidade” de o poder central no Rio de Janeiro compor-se com as elites regionais escravistas para manter a unidade neonacional e ex-colonial não explica tudo. Os Estados Unidos fizeram o mesmo – daí não haver a condenação da escravidão já na Bill of Rights –, enquanto tratavam não de amenizar as tensões assim criadas, mas de acirrá-las até que, no meio do século XIX, o país chegou a um ponto de ruptura, quando o centro moderno, comandado por Abraham Lincoln, partiu para a guerra contra as elites provinciais do sul. A Guerra Civil americana acabaria com a escravidão e com as elites provinciais atrasadas ao mesmo tempo, cirurgicamente, em 1865 (apesar de não eliminar o racismo, mas isto é outra história). No Brasil, os Sarneys continuam comandando a república e o carnaval, ou a república carnavalesca, em pleno século XXI. Nos Estados Unidos, o projeto modernizador foi militarmente vitorioso, enquanto no Brasil o projeto modernizador foi politicamente derrotado. É isso o que afinal explica o atraso de um e a modernidade de outro. O atraso brasileiro é um projeto político vitorioso. O Brasil foi, em suma, construído como Estado e como país para ser atrasado, ao longo de um século XIX dominado por elites provinciais (e provincianas) escravistas, enquanto a modernidade apontava para outro lado. Portanto, há aqui uma inversão voluntarista-leninista de causa e efeito: poetas não modernizam um país, um país moderno é que moderniza seus poetas. Ou eles que vão se modernizar em outro lugar. Ou modernizar outros lugares.

No início do século XX, enquanto Mário e Oswald de Andrade se esforçam com todas as forças para lutar poética e pateticamente contra o atraso brasílico, no atrasado e provinciano modernismo nativo, poetas norte-americanos como Eliot e Pound atravessam o Atlântico para ensinar a Europa a ser poeticamente moderna.

A Espanha era um país europeu atrasado no fim do século XIX, portanto Picasso foi para Paris, e de lá não saiu mais, fazer a revolução hipermoderna nas artes plásticas ocidentais. Foda-se o atraso espanhol. Claro, a Espanha estava inserida na história da pintura europeia desde sempre, El Greco, Velásquez, Goya e cia. Mas estes interessavam igualmente aos pintores modernos franceses. Enfim, Picasso não era um pintor espanhol, mas um espanhol pintor. Apesar do atraso espanhol (ou porque lhe deu as costas). O modernismo europeu foi um movimento internacional. Apenas o modernismo atrasado de países atrasados como o Brasil foi tardonacionalista. Mas isso não significa que modernismo tenha a ver com nacionalismo, e sim que o atraso o tem.

Paradoxalmente, ao ser nacionalista, o modernismo brasílico confirma, reafirma e reforça seu atraso. Sim, a abstração norte-americana é diferente da europeia. Pollock não é Mondrian. Mas não porque Pollock quisesse “confrontar o atraso” norte-americano. Ele era alcoólatra, não idiota: não existia nenhum “atraso nacional” a ser confrontado: na segunda metade do século XX, depois da vitória na Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos eram a nova potência cultural internacional, desbancando a destruída Europa. Poetas não modernizam um país, um país moderno moderniza seus poetas. E pintores. Não sei, mas isto me soa para lá de marxista. Talvez o marxismo da autora seja afinal um tanto atrasado…

Em todo caso, a visão vitimista-nacionalista da esquerda latrino-americana é uma maneira enviesado-masoquista de justificar o atraso. Somos tão atrasados porque somos tão atrasados… E somos tão atrasados por causa e por culpa do colonialismo, do imperialismo, da “dependência”.

A tradição, que passou a ter o mesmo valor de um artigo de comércio, já não representa uma experiência nacional e popular em curso, ou um fator decisivo para se pensar e combater a dependência.

Snif. “Dependência” que começa já no começo da história nacional, obviamente, com o Brasil colônia. E, no entanto, países como Canadá, Austrália e os próprios Estados Unidos surgiram como colônias europeias, no mesmo período em que surgiu o pobre Brasil. Ter sido colônia da Europa, mais uma vez, não explica tudo, e na verdade explica pouco. Pois não é explicação suficiente nem para o caminho parasitário da elite nacional em sua inserção no capitalismo mundial, nem para a submissão política bovina do “povo” a essa elite parasita.

Desde o século XIX, consolidar uma tradição implicava, após a Independência, incorporar experiências e formas artísticas anteriores para definir a nacionalidade, com propósito de superação e de autonomia, ou seja, estabelecer discriminações e filtros para o rumo que interessava. Nesse sentido, a tradição encarnava uma espécie de ficção de identidade, de tal forma que pudesse interessar e envolver o povo numa experiência comum de imaginação e criatividade cultural, mesmo que originalmente proveniente das classes dominantes. Na literatura brasileira, o romantismo e o modernismo representaram dois momentos em que essa experiência foi testada e validada de múltiplas maneiras.

Talvez. Mas enquanto José de Alencar se preocupava em ser ou não ser “indianista”, no mesmo hemisfério e ao mesmo tempo, outro americano, chamado Edgar Poe, pouco ligava para seus próprios indígenas, mas em compensação gestava a literatura moderna: criaria gêneros, redigiria textos seminais da literatura ocidental como “A filosofia da composição” e influenciaria gente como Baudelaire no centro do centro, a Paris do século XIX. Sem sair da provinciana Boston.

Como dizia Mário de Andrade, já em 1924, só nos tradicionalizaremos integralmente e “só seremos uma Nação quando enriquecermos a humanidade com um contingente original e nacional de cultura”. Criar usos próprios e internos para a apropriação da literatura universal, estabelecer códigos literários e sistemas de transmissão de vasto alcance, posicionar-se em relação aos componentes recalcados da nacionalidade e do mundo popular, delinear linhas de continuidade nas quais se verificasse a formação de uma tradição local – tais eram os pré-requisitos para que uma tradição nacional alcançasse funcionamento pleno.

Tudo isso devia ser verdade em 1924. Mas com certeza não o é mais em 2011. As questões da inserção “soberana” no “concerto das Nações” que angustiavam Mário de Andrade, portanto, não angustiam ninguém. E, no entanto, o Estado-nação não é, como ela acredita, o hábitat “natural” e ideal desse animal mítico, o “povo”. Ele é uma criação histórica, política e econômica da burguesia europeia, a fim de garantir, ao mesmo tempo, um mercado mínimo cativo e uma base geopolítica e econômica a partir da qual negociar, proteger-se e projetar poder. O moderno Estado-nação é irmão siamês do capitalismo moderno. Por isso o marxismo é ou era universalista, internacionalista etc. Tudo, menos nacionalista. Se o capitalismo, como defende a autora, sinônimo de barbárie, deveria ser “superado”, por que o Estado-nação deveria ser preservado, construído e/ou louvado? Por causa do “povo”? Porém não existe nenhum “povo brasileiro”, mas apenas a língua portuguesa (mal) falada no Brasil. Como cidadão paulistano, tenho muito menos a ver com um vaqueiro do sertão do que com um portenho (já estive com os dois). Com um portenho, eu poderia conversar sobre Borges, Cortázar, Peron, Martin Fierro, a guerra do Paraguai, vinhos, massas, mulheres, filmes, quadros, roupas. Com um vaqueiro do sertão, mal consigo conversar, porque ele mal entende meu português, e eu mal entendo o dele, e entendo menos ainda da maioria das coisas que lhe interessam. A começar de seu catolicismo supersticioso e primitivo, do qual não entendo absolutamente nada. Quanto aos nossos comuns ancestrais ibéricos, não temos, pois não tenho ancestrais ibéricos. Quanto aos nossos comuns ancestrais indígenas, não temos, pois não tenho ancestrais indígenas. Quanto aos nossos comuns ancestrais africanos… E, no entanto, não sou menos brasileiro do que nenhum vaqueiro do sertão. Enquanto tudo isso é completamente ridículo. De qualquer modo, um portenho teria grandes chances de ser judeu. E alguma probabilidade de ter lido Grande sertão: veredas, o que o vaqueiro jamais teria feito. Eu poderia, então, conversar com ele (o portenho judeu) sobre Guimarães Rosa…

O Brasil foi o país do futuro por tanto tempo que o próprio futuro mudou antes de o Brasil chegar para encontrá-lo. Também mudou o próprio protagonismo político-cultural do Estado-nação, que começou a nascer na “Paz de Westfália”, no século XVII. Não significa que o Estado-nação morreu, pois a história não é nem homogênea nem linear. Retardatários como os palestinos e os curdos ainda lutam por sua implementação, enquanto reacionários como os islamitas chechenos pretendem usá-lo como atalho para impor a teocracia sobre um dado território bem terreno. Mesmo na Europa, há separatismos europeístas. Isso só não é uma contradição de termos porque o Estado-nação não é um cadáver histórico, mas um velho caminhando para a senescência. Algumas regiões querem, então, se separar de Estados-nação hoje diluídos na organização supranacional que é a União Europeia, apesar da organização supranacional que é a UE, e não contra ela, em parte porque ainda não suficientemente supranacional… Ou seja, pretendem se separar de Estados-nação para ser um novo Estado-nação, e como tal se integrar à organização supranacional e supraestatal que é a UE. Mas se todos serão europeus, que diferença faz ser europeu como ex-espanhol ou como ex-catalão? Porque se entende que o Estado-nação é uma construção geopolítica ligada à constituição de um mercado interno privativo para a hegemonia da burguesia então “nacional” (na verdade, suprarregional), enquanto a região tem uma definição histórica, linguística e cultural mais profunda. O problema é que a história do Brasil é diferente, a partir de um vício de origem, a de um Estado que não correspondia à manifestação geopolítica de qualquer nação – ou de uma região cultural e historicamente determinada. Na verdade, o Brasil surgiu como um Estado em busca de uma nação: com a vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, este se torna capital do Reino Unido do Brasil e de Portugal. A ex-colônia é portanto alçada a reino, logo, a Estado, sem que nada de significativo mudasse no estado das coisas. Em seguida, separa-se para tornar-se um reino (ou império) independente, o Império do Brasil. Sem que nada de significativo mudasse no estado das coisas.

O Brasil começou fornecendo commodities para a Europa colonial e termina fornecendo commodities para China neocapitalista. Mas a culpa não é do pérfido capitalismo, como crê a autora, e sim do fracasso do stalinismo, pois a China, ora, fez a Revolução – do que o Brasil foi incapaz, não por culpa do pérfido imperialismo, mas de sua inépcia histórica para qualquer mudança substancial. A China não pediu permissão às grandes potências para fazer a Revolução, mesmo porque neste caso não seria uma revolução… E se o Brasil hoje fornece commodities a uma nova potência capitalista que era, ontem, um dos baluartes da Revolução mundial, isto significa que o socialismo fracassou e que fracassou o Brasil. Esse duplo fracasso deve ser debitado aos que fracassaram, ou seja, o socialismo como alternativa histórica de poder e o Brasil como Estado moderno. A ironia é que o fracasso chinês tem a forma de uma ascensão ao poder mundial, que entre outras coisas confirma o Brasil como país atrasado fornecedor de commodities às potências econômicas (e políticas) da vez. São, em todo caso, fracassos distintos. Um, não de um país, a China, mas de um sistema, o socialismo, por ele abandonado no caminho da ascensão (não por acaso); o outro, não de um sistema, o capitalismo, que seria responsável pela pobrezinha da posição periférica do Brasil, mas de um país historicamente incapaz de deixar de ser um país de segunda categoria – ao contrário, por exemplo, da China, que o logrou via adoção do capitalismo… Ah sim, a “alienação” dos trabalhadores aumenta na China… Aumenta? Eles eram menos alienados, em qualquer sentido, sob Mao Tsé-Tung? O que de fato ali aumenta é o número de pessoas que saem da miséria mais abjeta pela primeira vez em 5 mil anos. Sim, isso também foi conseguido, em escala e intensidade muito menores, por FHC-Lula no Brasil. A diferença, entre outras, é que na China isso se dá no contexto de fazer do país uma potência mundial, enquanto o Brasil continua gostosamente na vanguarda do atraso, apesar de BRICs, PIBs e outras ilusões acrósticas. E não por culpa do pérfido capitalismo, para dizê-lo pela última vez, mas do fracasso nacional, para usar o adjetivo. O fracasso do Brasil é de fato do Brasil. Num amplo arco geográfico que vai dos Estados Unidos ex-coloniais à China ex-colonial e ex-comunista, e num amplo arco temporal que vai da China do século XXI aos Estados Unidos do século XVIII, ninguém nunca pediu permissão para “mandar à merda” as potências e as circunstâncias adversas e se erguer sobre as próprias pernas. O Brasil foi e continua a ser um país “de merda” por mérito próprio.

Esperar que seus poetas modernizem ou civilizem tal país é mais do que ilusão: é delírio.

 

6. Do subdesenvolvimento interpretativo

 

Se é inegável que a retradicionalização frívola corresponde à desilusão com o processo modernizador, com a falta de alternativas nacionais à integração capitalista, isso não justifica a rendição à sociabilidade triunfante e o decorrente recalque do subdesenvolvimento como problema estético-político.

“Recalque do subdesenvolvimento como problema estético-político”?! “Subdesenvolvimento”!? Então percebo que o artigo ainda tem potencial para me surpreender. Subdesenvolvimento é desenvolvimento incompleto. Acontece que o único modelo de referência para o que seria o desenvolvimento completo (extinta a alternativa socialista por seu próprio mérito) é o do capitalismo industrial. Este, porém, não parece ser de grande afeição da autora. Mas, em primeiro lugar, como lamentar então o subdesenvolvimento, que é o não desenvolvimento do capitalismo industrial em sua plenitude, posto não haver outro (desenvolvimento a ser desenvolvido)? Em segundo lugar, o desenvolvimento pleno das forças produtivas, ou o que seja, hoje esbarra incontornavelmente na questão ambiental.

Os ambientalistas mais modernos, por isso mesmo, sequer falam mais em desenvolvimento sustentável, pois se trata, no limite, de uma contradição de termos, mas de parada do crescimento econômico, de não desenvolvimento (das forças produtivas), de decrescimento, de viver com menos, de produzir menos e consumir menos etc. Enfim, essas questões do século XXI. É verdade que o Brasil e a academia brasileira (Universidade) são também particularmente atrasados nessa discussão. Mas ao menos um importante livro de divulgação do novo ambientalismo já foi publicado no Brasil (Élisabeth Laville, A empresa verde, São Paulo, Beî, 2009), e extensamente discutido por mim nesta mesma Sibila.[6]  Portanto, a simples ignorância sobre o neoambientalismo pós-sustentabilidade e sua crítica radical do crescimento econômico, na primeira alternativa real de reforma profunda do capitalismo pós-débâcle histórica da esquerda, não é desculpa. Neste caso, falar em subdesenvolvimento como um problema, logo, em desenvolvimento como solução, é colocar a questão em termos mais do que ultrapassados, inúteis: mais uma vez, o Brasil chegou muito tarde. O desenvolvimento já era.

Sim, a China e a Índia estão nesse caminho, mas são retardatários, e pagarão caro e muito caro o preço da catástrofe ambiental, em termos econômicos mas também políticos e sociais. Já o Brasil é-está atrasado até para ser retardatário. Desenvolvimento? Crescimento econômico? Ora, se a atividade econômica mundial cresce ano após ano, mas o planeta não é ilimitado nem elástico, além de ser relativamente pequeno, a coisa toda é simplesmente insustentável a longo prazo. A questão não é mais saber se a atividade econômica tem de parar de crescer, mas quando. E como, então, diminuir a pobreza sem que a economia cresça, o que implica uma reforma radical do capitalismo de consumo num sentido e numa direção que nem Marx poderia conceber em uma noite de porre com Engels (isto não é uma imagem forçada: os dois de fato enchiam a cara de cerveja de vez em quando). Eis, em síntese brutal, mas não menos verdadeira, as grandes questões socioeconômicas e políticas dos séculos XXI e XXII. Ou seja, nada a ver com as preocupações e expectativas de Mário de Andrade em 1924. Ou da autora em 2011.

Na aparência, a retradicionalização frívola da poesia assinala a superação do velho sentimento nacionalista, o que não quer dizer que a sua noção de arquivo de formas esteja livre de oficialismo – um oficialismo sem burguesia e sem Estado, mas muito ativo e negociável no mercado dos bens culturais (mídia, universidade, congressos, fundações culturais, internet e indústria editorial). Um pluralismo facilitador de concessões inumeráveis substitui o impulso modernizador, proporcionando aos produtores de poesia uma inserção salvadora no mercado, como se um universalismo pragmaticamente tramado em redes fosse (e será que não é?) o motor da vida cultural.

A “retradicionalização frívola” não assinala nada, porque ela não é “frívola”, mas militante. Porém os termos da autora mais do que assinalam seu tardonacionalismo de esquerda banal. E põem por terra o que pareceria à primeira leitura uma síntese convincente da situação da poesia. “Universalismo pragmaticamente tramado em redes”? Universalismo? Tramado? Uau. O que na verdade existe, na “rede” como nas livrarias, é um proliferante solipsismo irrelevante e satisfeito. E sou incapaz de imaginar um solipsismo universalista. Em todo caso, se houvesse poetas universalistas, algo assim como um Dante, um Shakespeare ou coisa semelhante, naturalmente estaríamos salvos – e eu não teria de perder meu tempo escrevendo este artigo, nem o leitor o lendo.

Porém, apesar de tudo, ainda resta me espantar com o parágrafo de conclusão, suma compacta de clichês em quantidade e intensidade tais que não imaginava mais possível ler.

Atualmente há sinais de que o complexo cultural do neoliberalismo foi abalado em sua hegemonia, que o pensamento único perdeu a autoridade de nos condenar a um modelo inapelável de sociedade, embora não despontem alternativas relevantes ao capitalismo, mesmo após uma crise sistêmica de proporções ainda não reveladas de todo, como a que atravessamos desde 2008. Falando da experiência brasileira, é verdade que raras são até agora as reações propriamente artísticas, no campo da poesia, a esta conjuntura. Mas elas existem e estarão fundadas na insatisfação com o paradigma retradicionalizador, o qual, como vimos, não passa de um parasitismo do cânone.

“O pensamento único perdeu a autoridade de nos condenar a um modelo inapelável de sociedade”? Mas eu pensava que o socialismo fracassou por seu próprio mérito. Se foi isso, como pode ter o “pensamento único” ter nos condenado a um “modelo inapelável”? Tanto o “pensamento” quanto a “sociedade” se tornaram, respectivamente, único e inapelável por conta da morte do modelo alternativo. Neste caso, não foi o “pensamento único” que nos condenou a um “modelo inapelável de sociedade”, pois fomos a ambos condenados pelo fim das “alternativas relevantes ao capitalismo”. A conclusão é que o pensamento só se tornou único e a sociedade inapelável porque a alternativa morreu. Mas se ela morreu, que culpa tem quem sobreviveu? O capitalismo deveria cometer suicídio porque a gloriosa Revolução primeiro degenerou em stalinismo e depois virou pó?

Em todo caso, se entendi bem, deveria haver mais “reações propriamente artísticas, no campo da poesia, a esta [nova] conjuntura”, pois elas são “raras”. Logo, entendi e desentendi. Por que a poesia deveria “reagir à conjuntura”? Ela é uma espécie de sindicato? Estou há décadas, publicamente, insatisfeito com o “paradigma retradicionalizador”. Mas não porque ele não “reaja à conjuntura”. E sim porque isso, de um lado, faculta a medíocres sorridentes e arrivistas se esbaldarem, e, de outro, porque impede a poesia de ter relevância. A poesia, porém, não pode ou deve ser relevante por “reagir à conjuntura”, e sim porque nada pode ser relevante em seu lugar. Ou seja, nada pode ser relevante ao modo dela. Não há próteses no corpo cultural. Ou uma dada arte de um dado país num dado momento é vigorosa, ou não é. Se não for, a arte desse país será menor do que seria na outra condição. E a diminuição do vigor criativo não é uma questão de “conjuntura”, nem um problema político, mas uma diminuição da própria experiência humana.

As velhas colocações do renitente esquerdismo nacionalista banal, no fundo apoiadas na mítica “necessidade histórica” – “o complexo cultural do neoliberalismo [afinal] foi abalado em sua hegemonia, o pensamento único perdeu a autoridade de nos condenar a um modelo inapelável de sociedade”, é o fim do império!, o capitalismo está moribundo!, viva Lênin!  – não passam de delírio e mistificação. Modelo inapelável de sociedade? Onde? O Afeganistão não fica na Terra? O Irã não fica? A teocracia islâmica é idêntica à democracia burguesa? Se não é, o modelo moderno e ocidental de sociedade (que o Brasil realiza numa variação atrasada, medíocre e particularmente selvagem, por mérito próprio) nada tem de “inapelável”, a não ser no sentido de que é inapelavalmente mais atraente do que o fascismo islâmico. Jamais ouvi falar de alguém que queira emigrar para o Irã. Em compensação, milhões querem ir para os Estados Unidos, um modelo de sociedade, portanto, de muito mais apelo. Afinal ninguém, em sã consciência, trocaria uma sociedade em que a beleza feminina é exibida despudoradamente, apesar de toda a fetichização do consumo, por uma povoada por horrendas visões de mulheres metidas em burcas (não, o islã, a shariá e a teocracia islâmica não são invenções do colonialismo, do imperialismo, do capitalismo, dos Estados Unidos, da CIA etc.). Em todo caso, eu não trocaria uma sociedade em que a poesia é livre inclusive para ser eventualmente medíocre, anêmica, tradicionalista ou o que seja, por uma em que ela é tutelada por crentes, pois tudo é tutelado pela crença. A moderna sociedade aberta, em alguns aspectos, é de fato um belo monte de merda. Mas isto não significa que detenha o monópolio da merda. Ou que seja a merda mais fedida jamais produzida pelo fétido ventre da história (para o qual certa poesia serve de excelente filtro, antídoto, alívio).

Notas

[1] “Relendo Carlito Azevedo ou um caso exemplar da poesia brasileira contemporânea”, http://sibila.com.br/index.php/critica/886-relendo-carlito-azevedo-ou-um-caso-exemplar-da-poesia-brasileira-contemporanea.
[2] “Condenados à tradição – o que fizeram com a poesia brasileira”, in Piauí no. 61, de outubro de 2011, http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-61/aceleracao-do-crescimento/condenados-a-tradicao.
[3] “A poesia em câmera lenta de Eucanaã Ferraz”, Http://sibila.com.br/index.php/critica/104-a-poesia-em-camera-lenta-de-eucanaa-ferraz.
[4] Todas as citações a partir daqui são do artigo de Iumna Maria Simon.
[5] “As palavras e as coisas de William Carlos Williams”, http://sibila.com.br/index.php/critica/1906-as-palavras-e-as-coisas-de-william-carlos-williams.
[6] “Repondo o capitalismo em xeque”, http://sibila.com.br/index.php/mix/1120-repondo-o-capitalismo-em-xeque; ver, particularmente, “Decrescimento econômico”, “Capitalismo verde” e “Capitalismo racional”.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).