O SOM AO REDOR de Kleber Mendonça Filho – 2012
Durante os créditos que são mostrados na abertura do longa de Kleber Mendonça Filho , O som ao redor, um filme que vi ontem no Film Festival de Los Angeles – é nos mostrada uma curta história visual da cidade brasileira do Recife, do estado de Pernambuco, no nordeste do Brasil. Os grandes edifícios coloniais, no meio do nada, parecem transformar em anões os trabalhadores nativos do campo, cujo trabalho pesado, obviamente, tornou rica esta parte do país, particularmente a dos senhores de engenhos. E faz-nos saber que Recife foi criado a partir desse sistema colonial. Isso posto, nada dessa realidade política subjacente é tornado óbvio, uma vez que o filme vai se desenrolando na parte moderna da cidade, a dos arranha-céus que imperam. De fato, o filme avança languidamente, colocando-se como num drama doméstico, exceto o fato de as diversas situações domésticas da comunidade, que ele focaliza serem de tal forma múltiplas e complexas que, no começo, fica difícil encontrar o fio da meada.
No primeiro andar de um grande prédio de apartamentos vive Bia, uma mulher jovem ( Maeve Jinkings) que cuida, sozinha, dos dois filhos. Seu condomínio, embora agradável, é claramente de classe média. O gradeado que cobre o vão das janelas dá-lhe a sensação de certo aprisionamento. Fora, há um cão de guarda que late, durante a noite, e faz com que seja difícil pegar no sono. Durante o filme inteiro Bia tenta diversas maneiras de fazer com que o cão se aquiete, a começar por uma fatia de bife na qual ela colocou uma pílula de sonífero e a atirou ao animal faminto. Mais tarde – descobrimos – ela encontrou um alarme especial para cães que com sua frequência alta faz com que animais – e gente – sosseguem. Perto do final do filme, depois que a mulher que faz limpeza na sua casa estragou o circuito elétrico do dispositivo, ela recorre a bombinhas que tanto assustam o pobre animal a ponto de ele fugir aos urros.
Nesse meio tempo, recebemos informações sobre seus dois filhos inteligentes, bem mais maduros que a mãe deles, que tem uma queda por maconha e o hábito pervertido de recorrer à máquina de lavar roupa como estímulo sexual. Sem nenhuma fonte de receita aparente, a não ser, talvez, seu namorado, ela contrata professores de inglês e de mandarim para seus filhos. Ela paga pela maconha sem se atrasar e – conforme foi dito – tem uma mulher de limpeza e uma tela grande de TV. Sua irmã, invejosa, mora um quarteirão abaixo.
Num outro condomínio bem mais confortável mora João ( Gustavo Jahn), um corretor de imóveis cabeludo, bonitão, que aparece, pela primeira vez, na cama com a mulher bonita com quem acabou de passar a noite. Embora nada tenha de espetacular, seu apartamento é bem mobiliado e tem uma vista magnífica. A cozinheira e mulher de limpeza, que vem todos os dias, tem faltado , ultimamente ( seus pais morreram), e está para se aposentar dentro de poucas semanas.
Sentado à mesa do café da manhã ele fica sabendo que sua nova namorada, Sofia, viveu, anos atrás, nessa mesma rua . A cozinheira diz-lhe que poderiam até ser parentes, quem sabe se irmão e irmã. Suposição estranha, à essa altura do do filme, mas que deixamos passar pois parece que disso nada irá sair.
Ao descerem para a rua, descobrem que o carro dela foi assaltado e o tocador de CDs , roubado.
Durante a manhã João visita uma série de vizinhos e de trabalhadores de rua , conversando e até tomando café com eles para tentar saber quem poderia ter arrombado o carro. Indiretamente, todos parecem suspeitar de certo Dinho ( Yuro Holanda) que, quando visitado mais tarde por João num prédio próximo, descobre-se ser o seu primo mais novo, conhecido por suas delinquências juvenis. Ofendido pela desconfiança de João, Dinho pede à empregada que o acompanhe à porta. Quando João chega à rua, a empregada chama-o para que espere e desce com um aparelho de CD embrulhado, que Dinho pediu para entregar a João. Este nota com surpresa que não é o roubado do carro de Sofia.
Num outro momento desse dia fragmentado, João está mostrando um apartamento a uma eventual compradora interessada, que ouviu , porém, que o apartamento pertencera a uma antiga dona que se atirara pela janela. Ela tenta conseguir um desconto por esse acontecimento, mas João argumenta :” Veja bem, o incidente não tem nenhum impacto sobre a qualidade do lugar”. Porém sentimos que há algo de errado no lugar. Quando a filha da interessada que a acompanhou está sozinha na varanda, um garoto atira uma bola de futebol que vai parar noutra varanda, alguns andares abaixo, e pede à mocinha que vá buscá-la e a atire de volta para ele. Nada aconteceu de fato, mas há alguma coisa de estranho no que se refere à situação e à vizinhança em geral , nem que seja pela aparente dissociação entre os diferentes níveis narrativos do diretor.
Então há todos aqueles ruídos da vizinhança: os latidos do cachorro, a chuva, a música baixa do mascate, os carros, os sons de uma relação sexual, as crianças brincando, e centenas de vozes. Quando uma vizinha sai para entrar em seu carro e dar a partida, ela responde de modo grosseiro a um dos lavadores de carros que a aborda. O carro sai e o lavador faz um risco fundo na lataria dele com a ponta de uma chave. Durante uma curiosa reunião de condôminos do prédio em que mora João, os moradores discutem o caso de se demitir o guarda da noite, que trabalhou no prédio por quatorze anos, pelo fato de ter sido pego dormindo no serviço. João insiste para que lhe seja paga uma pensão, mas os outros condôminos sentem-se insultados. João abandona a reunião o quanto antes, pensando em se encontrar de novo com Sofia.
De forma mais significativa, eis que aparecem uns sujeitos que se dirigem a vários moradores da vizinhança batendo palmas, para propor seus serviços de segurança privada (embora os residentes tenham todos câmaras de segurança, muitos deles não têm campainha). A proposta deles também soa mais como uma ameaça do que como promessa de zelar pela segurança da comunidade. Contudo, depois de visitarem o homem mais rico da vizinhança, Francisco (na vida real o poeta W.J. Solha) – que descobrimos logo ser o avô de Dinho e de João , o homem que antigamente era o dono da inteira rua –, o velho convence os vizinhos a contratarem os sujeitos. Quem sabe eles evitem o roubo de outros carros daí para adiante.
Clodoaldo (Irandir Santos , o novos segurança) e seus amigos, vão arremessando um ao outro uma capa de chuva que acharam por ali, e passam a noite nas ruas , onde cada som parece criar suspense.
Sangue
Kleber Mendonça Filho joga com esses fatos aparentemente desconexos com uma honestidade que beira a franqueza, dando-nos poucas dicas que ajudem a caracterizar as várias personagens e menos ainda a possibilidade para avaliar as suas ações. Entretanto, o diretor parece haver estruturado o filme em três partes: “ Cão de guarda, Guardas de segurança, Guarda-costas”. Aos poucos começamos a ver que alguma coisa está sem dúvida errada nesse quadro de normalidade. As vidas desses indivíduos estão tão centradas na proteção e no povo — as pessoas pobres e racialmente misturadas das quais os indivíduos querem se proteger –, que começamos a compreender que nesse mundo há realmente alguma coisa de errado: as questões de segurança e de proteção que andam juntas com suas relações com cozinheiras, limpadoras e outros empregados, passaram a dominar suas vidas.
Contrariamente ao que ocorre em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, em que praticamente cada prédio de apartamentos e cada casa tem sua própria guarita, com um vigia (eu testemunhei isso pessoalmente em minhas visitas a São Paulo em 1997 e 2000), Recife ainda não possui esse aparato de defesa. Uma coisa fica clara: essas mudanças referentes à segurança tiveram um impacto relevante na qualidade de vida da comunidade.
O que se percebe logo, também, é que muitos desses vizinhos são membros da rica família de Francisco, cujo dinheiro proveio justamente dos engenhos e das plantações de cana do século passado que o cineasta mostrou nos créditos do filme. Quando João e sua namorada vão visitar Francisco, num fim de semana, em sua casa no engenho, eles investigam os prédios, agora em ruína, que existem nos antigos engenhos, construídos graças ao trabalho dos pobres nativos, meio escravos, e que nos são revelados agora através de imagens de sonho que se alternam entre o presente apaziguado e o passado brutal. Num certo momento, quando os três, Francisco, João e Sofia se banham na água branca e espumosa de uma cascata, de repente o líquido claro se torna sangue.
Quanto aos vizinhos, à medida que o filme avança, seus medos vão se tornando cada vez mais intensos, apesar de que pouco de novo ou ameaçador aconteça. Aparece um carro na rua indo devagar para os lados, criando um sentido tenso de drama, que acaba com o final grotesco de uma mulher saindo dele para vomitar. Mais significativo é o fato de a filha de Bia ter tido um sonho terrível, em que, durante a noite, centenas de homens , um após o outro, pulam o muro do seu quintal. Quando ela se levanta para ver o ocorrido, sua mãe e sua cama desapareceram. À medida que as necessidade de maior segurança crescem, os medos das invasões também aumentam. A namorada de João o abandona; ela sentiu que existe algo de terrível no lugar.
Nesse ínterim, Clodoaldo tornou-se membro confiável da vizinhança e recebeu as chaves de um dos vizinhos que sai de férias, para regar as plantas durante sua ausência. Ele penetra na casa completamente branca (símbolo da divisão financeira entre quem tem e quem não tem), para fazer sexo com a empregada de Francisco. João chega em seu próprio apartamento e encontra o filho da empregada dormindo em sua cama. Limites de classe e de raça, não explicitados, estão sendo claramente violados ou ao menos surgem como confusão.
Um capataz da plantação de Francisco foi encontrado morto e Francisco manda chamar Clodoaldo para um encontro. Clodoaldo e seu irmão vão à casa super protegida de Francisco e este lhes fala de seus medos, oferecendo-lhes o cargo de guarda-costas, além do que já têm, de seguranças. Possivelmente, numa tentativa de compreender que tipo de relação Francisco tinha com a vítima, eles viram a mesa e revelam que haviam estado na casa desse capataz. Eles mencionam uma data de muito tempo antes, incompreensível para Francisco até ele descobrir, pelos nomes deles, que são os filhos, agora crescidos, de um empregado que aquele capataz havia matado.
De repente, os pedaços das vidas que o diretor do filme estivera nos mostrando até agora, se encaixam em seu lugar. Francisco levanta-se, aterrorizado, enquanto a cena muda para o exterior do condomínio de Bia, onde ela e seus filhos estão dispondo os petardos para assustar o cachorro. O filme termina numa explosão de som, enquanto a tela vai ficando negra.
O filme de Kleber Mendonça Filho pode ser encarado como uma espécie de versão brasileira descontraída de O chefão, em que os pecados do pai (e seu domínio) recaem sobre sua família , seus amigos e mesmo sobre os vizinhos que o ajudam a manter isolado em seu mundo fechado. Certamente, como João sugere, os laços de família podem – muitas vezes – fazer com que alguém deseje ser órfão.
Los Angeles, 25 junho de 2012
ReimpressO de World Cinema Review ( Junho de 2012)