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Protestos históricos

1. Carta de Flávio de Carvalho

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Diário da Noite, 29/4/1932
Fonte: Arquivo Público do Estado de S. Paulo
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Detalhe da carta de Flávio de Carvalho ao Diário da Noite, 29/4/1932
Fonte: Arquivo Público do Estado de S. Paulo

O autor da Experiência nº 2 manifesta-se sobre os protestos dos estudantes

Diário da Noite, 29/4/1932

Do engenheiro Flávio de Carvalho, recebemos a seguinte carta:

Prezado Sr. redator:

Vi no seu jornal uma notícia sobre o apedrejamento de bondes da Light pelos estudantes, como protesto contra o ministro da Educação. Apesar de não haver nenhuma ligação entre os bondes da Light e o ministro da Educação, venho lembrar que o protesto assumiu essa forma por ser o bonde da Light um veículo adequado para mostrar mundanamente, ao povo da cidade, o desejo do estudante. O bonde da Light atua como um fetiche; ele recebe a ira dos estudantes; para o estudante, inconscientemente, o bonde se transforma em ministro da Educação, em um ponto de apoio adequado. Estando o ministro da Educação convenientemente inacessível, o estudante precisa descarregar o seu desejo de rebaixar, de destruir o seu poder sobre uma cousa qualquer que atue eficientemente, e que alivie, aos olhos do mundo, a sua ânsia de protesto. Esse curioso mecanismo é comum a toda a humanidade, é o processo de fetichismo, a meu ver, o fenômeno mais importante da vida anímica do homem; tive ocasião de discorrer demoradamente (e creio também inutilmente) sobre o assunto no meu livro Experiência nº 2.

Durante o empastelamento da Gazeta observei de perto o mesmo fenômeno; e tenho certeza que o sr. redator poderá observar pessoalmente, este curioso fenômeno de maneira ampliada nas manifestações políticas atuais. É pena que os psicólogos não mostrem maior interesse pelas atitudes populares, como a dos nossos queridos estudantes.

2. Ensaio sobre a carta

Marcelo Moreschi

A versão oficial da história é bastante conhecida: 1932 foi o ano do levante paulista contra o governo de Vargas. Descontentes com certos desdobramentos da (ainda hoje chamada) “revolução de 1930” e, sobretudo, desgostosos com a subjugação de São Paulo ao regime varguista que se instituía, grupos importantes e antagônicos do mundo da política paulista uniram-se no início de 1932 em torno de uma pauta comum: um governo paulista mais autônomo, com um interventor civil e local (sobretudo não nordestino), e uma constituição que regulasse o regime que então se estabelecia. Toda essa movimentação teve como ápice a chamada “revolução constitucionalista de 1932”, que eclodiu em julho daquele ano. Mas, antes do estopim, vários protestos de natureza diversa (difusos ou organizados, capitaneados por grupos poderosos ou por facções marginais) tomavam a cidade.

Assis Chateaubriand valeu-se das filiais paulistanas de seu império midiático para fazer reverberarem esses protestos. Aproveitando-se do fato de o Diário da Noite e o Diário de S. Paulo estarem a salvo da censura que controlava todos os outros meios de comunicação do país, Chateaubriand usou-os como veículos de propaganda de oposição ao Catete e para incitar os ânimos paulistas contra Vargas.1 Independentemente das causas particulares defendidas nos protestos ou das insatisfações que os motivavam, qualquer sinal de revolta era tratado pelos jornais mencionados como manifestação dirigida contra o (já então?) ditador que o magnata das comunicações ajudou a instalar no poder.

Dessa forma, a cidade de São Paulo, já desde o primeiro semestre de 1932, surgia nessas publicações como um campo de batalha. Elas apresentam uma São Paulo em polvorosa, assolada por todo tipo de protesto e por uma insatisfação generalizada. A esse respeito, tem interesse particular o retrato de São Paulo composto pelas edições do Diário da Noite durante o período em questão. Os propósitos propagandistas de Chateaubriand, os talentos reunidos na redação do Diário da Noite, a linha editorial histriônica adotada pelo jornal,2 a presença de Geraldo Ferraz e sua insistência em instaurar um debate de alto nível sobre urbanismo e ocupação urbana em São Paulo3: por todos esses motivos, o Diário da Noite pode ser tomado como uma espécie de termômetro (ainda que viciado) de uma São Paulo em ebulição na primeira metade de 1932, que ainda veria, naquele mesmo ano, um levante armado e a fundação do CAM (Clube dos Artistas Modernos), por Di Cavalcanti, Antônio Gomide e Flávio de Carvalho.

Carvalho, que sistematicamente usava a mídia como parte indissociável de sua prática artística4 e como instrumento de incitação e análise da “emoção tempestuosa da alma coletiva”,5 não se aquietou diante do burburinho generalizado. Na verdade, no primeiro semestre de 1932, chega quase a adotar um tipo de ativismo político de corte mais tradicional, ao participar, junto com Caio Prado Jr., Prudente de Moraes e Tito Batini, da fundação da Sociedade de Socorros Mútuos Internacional Ltda.6 Contudo, em maio daquele ano (antes portanto de servir como “Capitão-engenheiro” das tropas paulistas em Guaratinguetá, depois da eclosão do levante) já parece aborrecido com esse tipo de ativismo tradicional e julga insuficiente a agitação popular crescente, diante da qual, no entanto, sempre se posiciona como observador atento.

É o que deixa a entender em um artigo que relata sua grande decepção com a suposta calmaria observada em um comício no Dia do Trabalhador daquele ano. Carvalho esperava, além de mais trabalhadores presentes, maior revolta antirreligiosa. No artigo, o artista demanda uma apropriação coletiva da “máquina” contra a mentalidade carola7 que ele já tinha desafiado fisicamente (e analisado artisticamente de modo multímodo) em 1931, durante uma intervenção numa procissão de Corpus Christi que deu origem ao livro Experiência nº 2.8

São as suas teorizações assistemáticas expostas no livro que Carvalho retoma na carta ao redator do Diário da Noite transcrita acima. A carta, na verdade, comenta um artigo não assinado, publicado em 28 de abril de 1932,9 que censurava alguns dos protestos de estudantes em curso. Tais protestos (que incluíram greves estudantis e passeatas) foram motivados pelas célebres reformas educacionais de Francisco Campos implementadas no início do governo Vargas e sobretudo pelas novas taxas de matrícula e de exame propostas por um decreto de abril de 1932,10 que consolidava a reforma educacional iniciada no ano anterior. A imprensa alegava falta de foco nas manifestações e alguns comentaristas argumentaram que as novas taxas criadas pelo decreto incidiriam apenas nos estabelecimentos de ensino e não nos estudantes, que continuariam, contudo, a pagar as taxas habituais. Nas ruas, os estudantes bradavam “Fora o Chico taxa”, alcunha curiosa para aquele que até hoje é louvado como o modernizador do sistema educacional brasileiro e que, posteriormente, foi um dos mentores do aparato jurídico do Estado Novo.11 O Diário da Noite aproveitou o ensejo para reafirmar a necessidade de uma nova constituinte, para criticar a reforma educacional em implementação e para incitar protestos contra o ministro da Educação.12

Em uma das passeatas de São Paulo, justamente aquela referida pelo redator do Diário da Noite a que Flávio de Carvalho responde,13 os estudantes teriam depredado bondes da Light, o que foi desaprovado pelo redator, que exigia uma revolta que não atrapalhasse os meios de transporte da cidade. Na verdade, questionando a ligação simbólica entre a motivação dos protestos e o objeto depredado, o que o redator insinua implicitamente é que o ministro seja depredado no lugar dos bondes.14

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Figura da trilogia. Experiência nº 2, p. 118, 2ª ed.

Carvalho mobiliza a sua “trilogia sujeito-fetiche-totem”, explicada de forma vertiginosa ao longo da Experiência nº 2, para rebater o redator do jornal. Mistura heteróclita de Freud, Frazer, Darwin, Nietzsche e Adler, a “trilogia” funde as noções de “projeção”, “identificação”, “virilidade”, “complexo de onipotência” e “de inferioridade”, “sadismo/masoquismo”, “ressentimento”, “vontade de poder” etc., para tentar explicar “o modo de funcionar do homem em relação a seu mundo”.15 Segundo sua teoria (que, por vertiginosa, corre o risco de ser rasurada quando sistematizada), o “sujeito”, na tentativa de evitar a sua dissolução no “mundo objetivo”, opera a seleção de “pontos de apoio”, ao mesmo tempo materiais e simbólicos, que suportam fisicamente a agitação motora e anímica dos organismos. O “sujeito” age com outros “sujeitos”, conectados ou não entre si por meio de um “instinto gregário”, e com o “mundo objetivo” de modo a esconder inferioridades e de encenar onipotência. Essa ação se dá pela escolha de objetos (“fetiches”) que sofrem carícias e agressões em função de uma meta de superioridade (“totem”) a ser alcançada. Os “fetiches”, os “totens” e os “sujeitos” relacionam-se dinamicamente, estabelecendo entre si enfrentamentos baseados na astúcia, na rivalidade e na agressividade.

De acordo com tal teoria, portanto, não parece condenável ou sem sentido o fato de os bondes da Light terem sido depredados num protesto contra o ministro da Educação. Para a afirmação viril, pública e coletiva dos sujeitos congregados em protesto, a destruição de um bonde pode servir, assim, como rebaixamento do ministro da Educação, transformado pelo ato em objeto físico destrutível. A superioridade do “Chico Taxa”, que, ausente porém onipotente, humilha os estudantes, é compensada pela “carícia” violenta direcionada aos bondes, o que permite aos estudantes a encenação mundana de sua onipotência ameaçada, como se reafirmassem à cidade sua força viril então desafiada.

O mesmo processo teria sido atentamente observado por Carvalho, segundo a sua carta, no episódio conhecido como o “empastelamento” do jornal A Gazeta, que ocorreu em 13 de fevereiro de 1930.16 Carvalho, porém, não tece considerações sobre o episódio na carta, mas é possível supor que o processo observado então, apesar de apresentar uma configuração de forças políticas totalmente diferente daquela que gerou o apedrejamento dos bondes da Light pelos estudantes, seguiu, diante dos seus olhos, a mesma lógica do protesto dos ginasianos contra o “Chico Taxa”. No caso da destruição da redação do jornal por parte da polícia, entretanto, seriam o presidente e o governador os humilhados pelo comício da Aliança Liberal. O ataque ao jornal seria uma forma de reestabelecimento da onipotência dos governantes depois da humilhação sofrida por eles; na impossibilidade de agredir todos os presentes no comício (o que, entretanto, foi efetivamente buscado), teriam destruído, por isso, a redação do jornal.

Seja como for, o processo, sistematizado por Carvalho na carta ao redator do Diário da Noite, como “o processo de fetichismo”, é apresentado no mesmo texto como “o mais importante fenômeno da vida anímica do homem”. De fato, grande parte da obra de Carvalho (sobretudo a sua pouco conhecida obra escrita) procura caracterizar imaginativamente e analisar vertiginosamente esse fenômeno (ou fenômenos correlatos) nos âmbitos mais diversos. Carvalho o entende como consequência de um desejo de poder e de uma luta pela sobrevivência compartilhada de modo radicalmente pampsiquista e unânime por homens e mulheres em batalha constante;17 por formas plásticas, movimentos artísticos e espectadores de obras de arte;18 por agrupamentos humanos e acidentes geográficos;19 por ruínas da história e pela atitude do arqueólogo diante delas;20 por peças de vestuário;21 pela evolução da espécie humana em enfrentamento com divindades e com ambiente natural;22 e, sobretudo, pela própria História.23 Na década de 1930 sobretudo, o interesse do artista reside principalmente em como produzir ou incitar tal tipo de fenômeno para analisá-lo; daí a recorrência, em seus escritos e atos, da metáfora da ampliação visual,24 do tema do laboratório25 e das estratégias de exageração peremptória de enunciados, de provocação pública ostensiva26 e de acumulação arqueológica ou indiciária de materiais diversos.27

Por fim, resta fazer um esclarecimento cautelar. Constatar o interesse carvalhiano por jogos de poder e por sua subversão ou reafirmação não permite caracterizar o artista como um tresloucado libertário simpático a todas as causas subversivas, tal como ele vem sendo apresentado nos últimos anos, como se fosse um proto-Oiticica desinteressado e endinheirado. Aquele que construiu uma semipirâmide no campo (hoje em ruínas)28 para nela morar e para ali desenvolver investigações estéticas e “psicoetnográficas” as mais diversas (que envolviam, dentre outras atividades, o convívio ameno de ilustres que, eventualmente, se entregavam a libertinagens de todo tipo) foi o mesmo que, no final da década de 1920, imaginou, em nome de uma “eficácia” governamental desvairada, uma curiosa sede para o governo do estado de São Paulo. O projeto do palácio feito por ocasião de um concurso público previa poderosos equipamentos bélicos de defesa. Dentre eles, na cobertura do prédio, estavam previstos canhões e uma pista de pouso de aviões. Todos tomaram o aparato bélico do palácio como uma jocosa piada vanguardista, mas quem o projetou tinha plena clareza de sua finalidade. Em entrevista no final da década de 1940, Carvalho critica os rumos tomados pela arquitetura e pela política brasileira e relembra o peculiar projeto:

Esse palácio, se houvesse sido construído, teria impedido a queda do presidente Júlio Prestes, pois era uma semifortaleza, absolutamente capaz de resistir aos tipos de revolução que costumamos ter. Outros seriam os destinos do Brasil.29

Notas

  1. Segundo Fernando Morais, “Assis Chateaubriand passou todo o primeiro semestre de 1932 jogando gasolina na fogueira política que começava a crepitar em São Paulo”. Chatô: o rei do Brasil – a vida de Assis Chateaubriand. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 273.
  2. “Mesmo firmando-se cada vez mais como um jornal popular, de crimes e escândalo, o Diário da Noite se transformava também em uma usina de jovens talentos. Rubens do Amaral tinha sido nomeado redator-chefe e, para se juntar a Flávio de Carvalho, Geraldo Ferraz, Di Cavalcanti e ao comunista catarinense Brasil Gerson, ele [Chateaubriand] trouxera do Rio Rafael Correia de Oliveira para substituir Mário Pedrosa […]”. Fernando Morais, Chatô, op. cit., p. 184.
  3. A esse respeito, ver, por exemplo, José Tavares Correia de Lira, “Jornalismo, crítica modernista e urbanismo: Geraldo Ferraz em São Paulo, da Semana a Brasília”. Anais: Encontros Nacionais da ANPUR, v. 11 (2005)
  4. A esse respeito, ver: Rui Moreira Leite. “Flávio de Carvalho: media artist avant la lettre”. Leonardo, n. 2, p. 150-157, 2004; e Marcelo Moreschi, “Autodocumentação, arquivo e experiência: o Fundo Flávio de Carvalho/CEDAE”. Revista Interfaces, CLA/UFRJ, ano 18, n. 17, 2012, p. 24-49.
  5. A hipótese é desenvolvida em Marcelo Moreschi, “Autodocumentação, arquivo e experiência: o Fundo Flávio de Carvalho/CEDAE”, op. cit. A expressão é do início do livro de Flávio de Carvalho, Experiência nº 2: realizada sobre uma procissão de Corpus Christi: uma possível teoria e uma experiência. Rio de Janeiro: Nau, 2001 (2. ed.), exp. nº 2. “[…] me ocorreu a ideia de fazer uma experiência, desvendar a alma dos crentes por meio de um reagente qualquer que permitisse estudar a reação nas fisionomias, nos gestos, no passo, no olhar, sentir enfim o pulso do ambiente, palpar psiquicamente a emoção tempestuosa da alma coletiva, registrar o escoamento dessa emoção, provocar a revolta para ver alguma coisa do inconsciente” (p. 16).
  6. Sobre o episódio, ver: J. Toledo, Flávio de Carvalho, o comedor de emoções. Campinas: Ed. da Unicamp, 1994, pp. 122-123 e 150.
  7. Depois do relato da calmaria daquele dia e de uma exaltada apologia apodítica à “máquina”, o artigo “1º de maio, a máquina, e o asceta sinistro” (publicado no Diário da Noite em 4/5/1932) se encerra indicando o real inimigo do “povo”, o “padre”:

    “Precisamos segurar, reter o padre; a sua inocência ameaça nos arruinar; guardião do passado, ele é o inimigo mesmo da civilização, ele é contra a sugestibilidade da máquina, contra a conquista de novas emoções fora do quadro religioso, a sua visão se limita ao ritmo da reza, incompatível com o entusiasmo que o homem pode ter pelas cousas da vida. O padre ameaça esconder a sugestibilidade da máquina, ele impõe o mea culpa, deseja uma humanidade sofredora, enquanto que a máquina pertencente a um espírito coletivo, abole a ideia de ‘meu’ nas cousas indispensáveis e destrói a “culpa” (a culpa só pode ser de todos), transporta o sofrimento para outras esferas, eleva o nível de vida.

    “Não houve protesto, o espírito patriarcal dominava, [bem como] o acato às promessas do padre. A praça estava vazia, alguns anjinhos de seda amarela passavam aqui e ali sem dúvida a caminho de algum padre, um senhor amável fardado de espada e revólver dissolvia grupos isolados.

    “Mas uma figura sinistra crescia envolvendo a cena, (ameaça dominar o país inteiro), era uma batina preta, chicote em punho e dizia ‘Sofre operário, sofre, você é a culpa do teu sofrimento… Assim disse Jesus Cristo’.

    “É a ameaça de uma sombra sem sexo que invade o Brasil… atrasa o advento de uma nova era.”

  8. Op. cit. Sobre o episódio, ver: Verônica Stigger, “A vacina antropofágica”. [In: RUFFINELLI, Jorge; ROCHA, João Cézar de Castro (Orgs.). Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em cena. São Paulo: É Realizações, 2011, pp. 601-610], que alinha a intervenção carvalhiana e o livro a que ela deu origem à “antropofagia”, filho já bastardo mas desde há muito dileto do constructo historiográfico denominado “modernismo brasileiro”, monstro incontornável que deglute tudo. Sobre a hipótese de Experiência nº 2 enquanto um “compósito cultural”, ver: Valeska Freitas, “Flávio de Carvalho, leitor dos ‘gráficos da cultura’” [in: Denise Mattar, org. Flávio de Carvalho: 100 anos de um revolucionário romântico. Rio de Janeiro: CCBB, 1999, pp. 60-62]. Para uma abordagem inicial e útil a respeito da noção carvalhiana de “experiência”, ver: Raúl Antelo, “Experiência e transgressão em Flávio de Carvalho” [in: Transgressão & modernidade. Ponta Grossa: ed. UEPG, 2001]. As considerações de Antelo, baseadas no cotejo de fragmentos de textos de Carvalho com várias reflexões a propósito das noções gerais de experiência e de conhecimento na modernidade, situam a noção carvalhiana em uma constelação de referências sobre a (im)possibilidade da experiência no mundo moderno. Ainda que iluminadora, a leitura de Antelo, porém, tende a ler Carvalho como mais anticientificista do que ele de fato parece ser. De forma mais precisa, Faria, insistindo também na problematização entre sujeito e objeto do conhecimento incitada pela prática carvalhiana, evoca as teorias do sensacionismo pessoano e aponta para o sentido político da noção e da prática da “experiência”, acentuando como as relações de poder são ao mesmo tempo exacerbadas, teatralizadas e subvertidas nela, numa espécie de política das “sensações”. Isso marca uma diferença importante entre Carvalho e outras reflexões do período a respeito da psicologia do poder (sobretudo do Estado e do Estado varguista) e das massas. (Daniel Faria. “Experiência nº2: vertigens sensoriais da política”. In: Jacy Seixas e Josianne Cerasoli, orgs. Tramas do político: linguagens, formas, jogos. Uberlândia: Edufu, 2012).
  9. “As depredações que os estudantes estão fazendo nos bondes da Light não se justificam”, Diário da Noite, 28/4/1932. Para o relato de parte dos protestos, ver: “Os estudantes dos colégios paulistas protestam contra o aumento das taxas de exame” (Diário da Noite, 17/4/1932) e “Os alunos dos ginásios desta capital declararam-se hoje em greve”, Diário da Noite, da mesma edição de 28/4/1932)
  10. Trata-se do decreto 21.241 de 4 de abril de 1932.
  11. Norberto Dallabrida, “A reforma Francisco Campos e a modernização nacionalizada do ensino secundário”. Educação, Porto Alegre, v. 32, n. 2, p. 185-191, maio/ago. 2009.
  12. Ver, por exemplo, a entrevista com o professor Henrique Geenen, que comenta também o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, elaborado por Fernando Azevedo e assinado por 26 educadores de renome. (“O manifesto Educacional e as taxas que pesam sobre o ensino secundário – o que, sobre os dois assuntos, o professor Henrique Geenen falou ao Diário da Noite”, Diário da Noite, 29/4/1932.)
  13. É interessante pensar na simulação de debate que a publicação da carta de Carvalho procura produzir. Sua presença na redação era constante e ele certamente participava de alguma forma das discussões sobre as linhas editoriais tomadas. A propósito, o artigo a que Carvalho responde emprega uma expressão muito cara ao artista: “eficiência”.
  14. A nota inteira do articulista é transcrita a seguir:

    “Os estudantes estão fazendo um movimento contra determinada taxa de ensino. Não interessa encarar aqui se os rapazes dos ginásios têm ou não a razão. Queremos nos referir exclusivamente a um detalhe desse movimento, fato injustificável, e que tão somente pode ser explicado por excesso de exaltação entre os manifestantes. Trata-se do apedrejamento de bondes da Light, de depredação que se pratica contra esses veículos nas ruas da cidade.

    “Sendo o movimento de protesto contra o ministro da Educação, não se sabe por que tenham os bondes simbolizado o alvo da hostilidade dos ginasianos. Ao simples bom senso, a depredação nos veículos da Light, em protesto contra taxas de ensino, assume aspecto de todo condenável.

    “Por outro lado, o excesso de exaltação dos manifestantes ginasianos perturba o ritmo da vida da cidade, fazendo com que sejam retirados do tráfego veículos que têm seus horários a respeitar, para poder servir, eficientemente, ao público.”

    (“As depredações que os estudantes estão fazendo nos bondes da Light não se justificam”, Diário da Noite, 28/4/1932.)

  15. Experiência nº 2, op. cit. (p. 113).
  16. Sobre o episódio, importante para a historiografia da chamada “revolução de 1930”, ver, a título de exemplo, “Anos 30: o empastelamento em 1930 e a Segunda Guerra Mundial“.
  17. V. Carvalho, O mecanismo da emoção amorosa. Datiloscrito. s/d. Fundo FC/CEDAE/Unicamp
  18. Ver, por exemplo, “O aspecto psicológico e mórbido da arte moderna” [Diário de S. Paulo. 22/6/1937. Também publicado em francês nos anexos da ata do Congresso Internacional de Estética de Paris. L’Aspect Psychologique et Morbide de l’Art Moderne. Deuxiéme Congrés Internacionale d’Éstetique et Science de L’art. Extrait. Paris: Feliz Alcan, 1937], “A luta nos domínios da arte” [O Cruzeiro, 2/4/1938]. “Considerações sobre o desenho” [Artes Plásticas. 9-10/1948]; “1º Salão de Maio. O bicho feio e o belo bondoso – 2ª carta aberta ao crítico Geraldo Ferraz” [Diário de S. Paulo. 17/7/1937].
  19. Meridiano sul 55 S.A.S. Datiloscrito (1946?). Fundo FC/CEDAE/Unicamp.
  20. Os ossos do mundo. 2. ed. São Paulo: Antiqua, 2005.
  21. A moda e o novo homem. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2010. Para uma edição crítica do texto, que, em volume, deveria, segundo documentação disponível, ter o título de Dialética da moda, ver: Valeska Freitas. Dialética da moda: a máquina experimental de Flávio de Carvalho. Dissertação (Mestrado). Florianópolis: UFSC, 1997.
  22. A origem animal de Deus e O bailado do Deus morto. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1973. Ver também a série de 40 artigos intitulada “Notas para a reconstrução de um mundo perdido”, publicada no Diário de S. Paulo entre 1957 e 1958, parcialmente transcrita por Flávia Cera. A série de artigos foi retomada por Carvalho em 1962, sendo resumida em dois artigos [“Idade da fome. Para a reconstrução de uma idade perdida”, Diário de S. Paulo, 22/7/1962; “Bailado do silêncio. A idade da fome”. Diário de S. Paulo, 29/7/1962]. Foi também apresentada no Simpósio Homem e Civilização, Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia, 1962, San Francisco, e publicada, sob a forma resumida dos 2 artigos nos anais do encontro. [“Notes for the Reconstruction of a Lost World”, in: Seymor M. Farber e Roger H. Wilson, orgs. Man and Civilization. Conflict and Creativity Part two of Control of Mind. New York: McGraw Hill, 1963, pp. 315-327], que transcreve também a discussão realizada depois da apresentação de Carvalho.
  23. Ver: “A única arte que presta é a arte anormal”. [Diário de S. Paulo. 24/9/1936], em especial o seguinte trecho:

    “Os conhecimentos atuais mostram que o culto ao senso comum e ao bom senso nada mais foi senão uma manifestação psico-nevrótica da própria história, um estado de nervosismo que passou, um modo de defesa. A história, enfraquecida pelos perigos da polêmica, se coloca a si mesma em segurança. Mas já passou, o homem com senso comum, o homem médio, não pode mais clamar para si o mundo.

    “O belo ingênuo de Diderot, a ética simplista de Comte e a estética inocente dos filósofos do século XVIII e do século XIX são como o Selvagem de salão de Jean Jacques Rousseau, pequenos brinquedos do pensamento que se ajeitavam à predileção de um humor que passava. Nada tinham a ver com o drama do trágico e do chistoso da vida real.”

  24. Ver a nota do autor em Os ossos do mundo, op. cit.
  25. Ver, por exemplo, a entrevista “O Teatro da Experiência é um elemento de progresso” [Correio de S. Paulo. 6/12/1933].
  26. Ver, por exemplo, as declarações dadas e as ações tomadas por ocasião do fechamento do Teatro da Experiência em 1933 e da sua primeira exposição individual de pintura em 1934.
  27. Ver: Caderno de anotações de viagem, Manuscrito, desaparecido; Ossos do mundo, op. cit.; e o “Plano de seis anos” publicado no número único da RASM (Revista Anual do Salão de Maio), 1939.
  28. Sobre a situação da casa, ver a crônica recente publicada na revista Carta Capital por Willian Vieira.
  29. “A primeira exposição de arquitetura internacional – Flávio de Carvalho, forças telúricas, e um palácio que mudaria os destinos do Brasil”, O Jornal. 18/3/1948.

 Sobre Marcelo Moreschi

(Unicamp/Fapesp) Atualmente conduz pesquisa a respeito dos escritos de Flávio de Carvalho, na Universidade Estadual de Campinas com bolsa de pós-doutorado da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Doutor em Literatura Luso-Brasileira pela Universidade da Califórnia, Santa Bárbara.