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QUARTO POR QUARTO

“eu queria
uma poesia
como um quarto branco
quatro paredes
oito cantos”
(BONVICINO, Régis. “Primeiro tempo”. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 73)

 

Em tempos de covid-19, procurei saber o que autores pensavam sobre quartos. Fiz uma pequena lista, meio ao acaso, com os livros que tinha nas mãos. Ei-la.

“Tudo confuso, misturado, desproporcional. O quarto de Kaspar Hauser é maior do que a torre em que se encontra, maior do que a cidade, o mundo talvez. Vejo o filme de Herzog e ouço Bachelard: ‘O espaço habitado transcende o espaço geométrico’. E também compreendo as dimensões dos objetos de Magritte. Apesar de explicado pela linguagem, pelas palavras, por signos linguísticos, enfim, a paisagem em que foi colocado Kaspar Hauser permanece turva e indecifrável. Tão turva quanto as sombras que se movem nos desertos de seus pesadelos. Conhecer o mundo pela linguagem, por signos linguísticos, parece não bastar para dissolver o permanente mistério e a perplexidade do olhar de Kaspar Hauser. Talvez porque a significação do mundo deve irromper antes mesmo da codificação linguística com que o recortamos: os significados já vão sendo desenhados na própria percepção/cognição da realidade.”

(BLIKSTEIN, Izidoro. “Kaspar Hauser ou A fabricação da realidade”. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 16-17)

“Em pequeno, admirava o condenado intratável sempre nas galés; visitava albergues e quartos mobiliados que ele consagrara por ter estado ali (…).”

(RIMBAUD, Arthur. “Uma temporada no inferno”. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 29)

“I – (…) o sonho da vida um pesadelo, corpos transformados em pedras tão pesadas quanto a lua,

com a mãe finalmente ** e o livro fantástico atirado pela janela do cortiço e a última porta fechada às 4 da madrugada e o último telefone arremessado contra a parede em resposta e o último quarto mobiliado esvaziado até a última peça de mobília mental, uma rosa de papel amarelo retorcida num cabide de arame do armário e até mesmo isso imaginário (…). Eles viram tudo! o olhar selvagem! os berros sagrados! os berros sagrados! Eles deram adeus! Pularam do telhado! rumo à solidão! acenando! levando flores!”

“II- (…) Moloch o pesadelo juiz dos homens! Moloch a incompreensível prisão! (…) Moloch cujos prédios são julgamento! (…) Moloch cujos olhos são mil janelas cegas! (…) Moloch cujo nome é a Mente! Moloch em quem permaneço solitário! (…) Moloch que penetrou cedo na minha alma! Moloch em quem sou uma consciência sem corpo! (…) Moloch! Moloch! Apartamentos de robôs! subúrbios invisíveis! Tesouros de esqueletos!”

(GINSBERG, Allen. “Uivo, Kaddish e outros poemas”. Porto Alegre: L&PM, 1984, pp. 47-50 e 51)

“Eu nem notava as portas entre um prédio e outro, era uma longa sucessão de quartos (…). Eu tinha vergonha de atravessar os quartos com tanta gente nas camas e por isso andava rápido e nas pontas dos pés (…), fazendo o possível para não incomodar os outros; pisando leve, passando quase despercebido. Por isso, enquanto estava dentro de um quarto nunca virava a cabeça (…). Havia vários bordéis intercalados na fileira de apartamentos (…). Só que o último quarto de todos era mais um bordel e ali fiquei. A parede diante da porta por onde entrei, portanto a última parede da fileira de prédios, ou era de vidro ou estava arrebentada e, se eu continuasse andando, cairia.”

(KAFKA, Franz. “Sonhos”. São Paulo: Editora Iluminuras, 2003, p. 29-30)

“Não estava senhor de si quando chegou ao portão do seu prédio; já havia ao menos tomado a direção da escada e só então se lembrou do machado. Entretanto, tinha pela frente uma tarefa muito importante: colocá-lo de volta da forma mais invisível que pudesse. É claro que ele já não estava em condição de compreender que lhe seria bem melhor não pôr, de maneira nenhuma, o machado no lugar anterior (…). No entanto tudo saiu bem (…), mais uma vez o zelador não estava (…). Depois não encontrou ninguém, viva alma, até a porta do seu quarto; a porta da casa da senhoria estava fechada. Ao entrar no quarto, lançou-se no sofá como estava. Não dormiu, ficou na modorra. Se nessa ocasião alguém entrasse no quarto, imediatamente ele daria um salto e começaria a gritar. Retalhos e trechos de alguns pensamentos fervilhavam em sua cabeça; mas ele não conseguia captar nenhum deles, não podia deter-se em nenhum deles, mesmo apesar dos esforços… Permaneceu muito tempo deitado. Vez por outra parecia que ia despertar, e nesses instantes notava que há muito já era noite, mas levantar-se não lhe passava pela cabeça. Por último deu-se conta de que já havia uma claridade de dia. Estava de bruços no sofá, ainda estupefato com os recentes acontecimentos. Da rua lhe chegavam berros horríveis, desesperados, que, aliás, toda noite ele ouvia debaixo da sua janela (…). No primeiro instante pensou que fosse enlouquecer (…). Entreabriu a porta e se pôs à escuta; o prédio todo estava mergulhado em sono absoluto. Admirado, examinava a si mesmo e tudo ao redor em seu quarto e não entendia como, na véspera, ao entrar no quarto, pudera não fechar a porta no trinco e atirar-se no sofá não só sem trocar de roupa mas até de chapéu na cabeça (…). Precipitou-se para a janela (…). Ali, em um lugar bem no canto da parede, embaixo, o papel se descolara e estava rasgado: no mesmo instante ele começou a meter tudo naquele buraco, atrás do papel (…). ‘Mas agora, do que estou contente agora? Isso lá é jeito de esconder? A razão está me abandonando de verdade!’ Sentou-se exausto no sofá, e no mesmo instante um calafrio insuportável tornou a sacudi-lo. Puxou maquinalmente um sobretudo de inverno dos tempos de estudante, que estava numa cadeira ao lado, quente mas já quase em farrapos, cobriu-se com ele, e mais uma vez o sono e o delírio se apoderaram dele. Caiu no sono (…). Teve ímpeto de levantar-se do sofá várias vezes, mas já não conseguiu. Uma batida forte na porta o despertou definitivamente.

– Ora, abre isso, tá vivo ou não? Ele não para de dormir! – gritava Nastácia, esmurrando a porta. – Dias e mais dias dormindo como um cachorro mesmo (…).

Deu um salto e sentou-se no sofá. O coração batia tão forte que até doía (…). Soergueu-se, inclinou-se para a frente e abriu o trinco. Todo o quarto era de um tamanho tal que se podia abrir o trinco sem se levantar da cama.”

(DOSTOIÉVSKI, Fiodor. “Crime e castigo”. São Paulo: Ed. 34, 2001, pp. 100, 103, 104 e 106)

“São coisas ‘dele’, pensou ela. Não existe nada meu neste quarto (…). Desejava ser invisível e continuar aqui; vê-lo sem que ele me visse. Ele não precisa de mim; sou demais neste quarto (…). Pierre largou-lhe a mão: – Gosto de você (…). Mas não posso compreendê-la. Por que fica o tempo todo no quarto? (…) Fazia três dias que Pierre estava mais calmo; as estátuas não tinham vindo. Pierre tinha um medo horrível das estátuas, embora nunca o dissesse. Eve não sentia medo, mas quando elas começavam a voar no quarto, zunindo, ficava com medo de Pierre (…). Nunca se podia saber se ele era sincero. Em certas ocasiões, Eve tinha a impressão de que Pierre estava invadido a contragosto por uma chusma de pensamentos e de visões. Em outros momentos, Pierre parecia inventar. ‘Ele sofre. Mas até que ponto acredita nas estátuas e no negro? As estátuas em todo o caso sei que ele não as vê, ouve-as apenas. Quando elas passam ele vira a cabeça; entretanto, diz que as vê e as descreve’ (…). Ele caminhava com passos miúdos, sobre a ponta dos pés, com os cotovelos apertados de encontro às ancas, para ocupar o menor espaço possível. Sentou-se novamente e olhou Eve com ar fechado. – É necessário colocar cortinas pretas, disse ele, não está suficientemente escuro este quarto. Encolhera-se na poltrona. Eve olhou tristemente aquele corpo avaro, sempre pronto a se retirar, a se contrair.”

(SARTRE, Jean-Paul. “O Quarto”, in “O Muro”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 58-61)

“De volta ao meu humilde quarto de estudante, no Quartier Latin, tirei da mala os seis cadinhos de fina porcelana que estavam lá escondidos (…). Uma pinça e um pacote de enxofre puro completavam a instalação do meu laboratório. Com o carvão aceso na lareira, a porta trancada e as cortinas fechadas, acreditava ter tomado as precauções necessárias (…). A noite vem caindo; o enxofre queima produzindo chamas infernais. Pela manhã verifico a presença de carbono no enxofre, corpo até então considerado simples. Creio ter resolvido o grande problema; com isso subverti a química oficial e ganhei a imortalidade, tão dificilmente outorgada aos mortais. Mas a pele de minhas mãos, crestadas pelo fogo, cai em escamas. A dor provocada pelo simples gesto de me despir lembra-me o preço da minha conquista. Sozinho na cama, que ainda cheira a mulher, considero-me feliz (…). O sangue poreja e as dores tornam-se insuportáveis (…). Uma sensação de extrema depressão invade-me pouco a pouco. Minhas mãos, negras e sangrentas, são um empecilho para que eu me vista e cuide da minha aparência. Preocupado com a conta do hotel, não tenho mais descanso e passeio pelo quarto como um animal enjaulado (…). Sem saber por que, medito sobre a proximidade da minha morte. Internado, com proibição de sair de licença, as mãos cobertas de bandagens, o que torna qualquer ocupação impossível, tenho a impressão de que sou um prisioneiro. Um quarto abstrato, nu, com apenas o necessário, sem nenhum vestígio de beleza e perto da sala de reuniões, onde se fuma e se joga cartas da manhã à noite. Toca a sineta para o almoço e, à mesa, encontro-me em macabra companhia. Caveiras e agonizantes: a um falta-lhe o nariz, a outro um olho, adiante vejo um doente com o lábio caído e a face em putrefação (…).”

(STRINDBERG, August. “Inferno”. São Paulo: Max Limonad, 1982, p. 30-33)

“Mas, antes mesmo de me levantar da mesa, meu delírio me havia novamente surpreendido, como um gato a um rato, e o veneno pôs-se de novo a brincar com meu pobre cérebro. Embora minha casa não fosse longe do castelo de nossos amigos (…), sentia-me de tal maneira arrebatado pela necessidade de sonhar e de me entregar a essa irresistível loucura, que aceitei com prazer a oferta que me fizeram de me hospedarem até o dia seguinte. Você conhece o castelo; sabe que arrumaram, decoraram e remodelaram de maneira moderna a parte habitada pelos proprietários, mas a parte geralmente inabitada foi deixada intacta, com seu velho estilo e velha decoração. Foi decidido que improvisariam um quarto para mim nesta parte do castelo, e escolheram, para isto, o menor quarto (…). É preciso que eu o descreva mais ou menos a fim de que você compreenda a estranha visão que me tomou a noite inteira, sem que eu tivesse oportunidade de perceber a fuga das horas.

Este camarim é muito pequeno, muito estreito. À altura da cornija, o teto toma a forma de uma abóbada; as paredes são recobertas por vidros estreitos e alongados, separados por telas em que foram pintadas paisagens no estilo negligente (…). À altura da cornija, sobre as quatro paredes, estão representadas diversas figuras alegóricas, umas em atitude de repouso, outras correndo ou girando. Sobre elas alguns pássaros brilhantes e flores. Atrás das figuras, ergue-se um gradil pintado de forma a dar uma impressão de relevo real e seguindo, naturalmente, a curva do teto. Este teto é dourado. Todos os interstícios entre as molduras e as figuras são, portanto, recobertos de ouro, e no centro o ouro é interrompido apenas pelo emaranhado geométrico do gradil simulado. Você pode ver que tudo isto se parece um pouco com uma gaiola muito elegante, uma belíssima gaiola para um grande pássaro (…). Devo acrescentar que a noite estava muito bela, muito transparente, a lua muito viva, a ponto de, mesmo depois de ter apagado a vela, toda a decoração continuar visível, não iluminada pelo olho do meu espírito, como você poderia crer, mas clareada por esta bela noite, cujos brilhos embaraçavam-se a todo este bordado de ouro, espelhos e cores mosqueadas. Espantei-me de início ao ver grandes espaços estenderem-se diante de mim, ao meu lado, de todos os lados (…).”

(BAUDELAIRE, Charles. “Paraísos artificiais”. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 43-45)

“Nós dois permanecemos girando em todos os sentidos e confundindo as cabeças na penumbra do quarto, e eu entrando de cabeça entre suas coxas (…). Depois nós percorremos o canto do quarto girando em todos os sentidos, eu em cima dela, ela em cima de mim; eu sentei no seu ventre (…). Depois eu e Marilyn Monroe descansamos e ela se encostou na parede e abriu as pernas e eu deitei com a nuca junto ao seu sexo. Permanecemos nessa posição longo tempo, e eu interrompi girando o corpo e beijando os pêlos dela. Eu esfregava a boca e a língua no seu sexo úmido e depois nós passamos a girar novamente e confundir e apertar nossos corpos ao contrário (…). Marilyn Monroe levantou-se nua e disse que nós poderíamos procurar um outro quarto. Eu levantei-me em seguida e eu disse que nós dois saímos nus e entramos no escuro do corredor. Instantes depois nós entramos em outro quarto e eu disse que aquele quarto estava bom. Ela deitou nua na cama que estava encostada à parede e eu disse que iria buscar os dois travesseiros. Eu atravessei o corredor escuro e voltei para o quarto, e apanhei os dois travesseiros que estavam sobre a cama. Voltei pelo corredor escuro e entrei no quarto. Marilyn Monroe não estava deitada na cama encostada à parede. Ela não estava no quarto. Eu saí do quarto e entrei no banheiro. Marilyn Monroe flutuava mergulhada na banheira e sorriu para mim quando eu entrei (…). A banheira era muito grande e ela flutuava como se estivesse nadando (…). Marilyn Monroe fechou os olhos e sorriu para mim movimentando a cabeça para os lados. Marilyn Monroe nua no centro da penumbra do quarto olhava para mim (…). Logo em seguida nós dois fomos escorregando pela parede e terminamos deitados no chão sobre o cobertor que estava estendido. Eu e ela permanecemos em silêncio nus e deitados na cama um ao lado do outro (…). Eu bati com a perna no guarda-roupa e pensei que eles deveriam ter ouvido da sala. Eu saí de cima dela e perguntei se os produtores já haviam saído, que a sala estava muito silenciosa. Ela levantou-se e disse que a luz da sala estava apagada (…). Marilyn disse que não gostava de ficar ali e que ela gostaria de gritar um pouco, e de uma cama (…). Eu me mantive gemendo preso a ela e parecia que ia cair (…). Marilyn Monroe se agarrou a mim como que me impedindo de cair e soltou um gemido respondendo aos meus gemidos (…). Depois de algum tempo que eu e ela permanecemos imóveis nessa posição eu perguntei a ela onde havia uma toalha, que eu pretendia limpá-la (…), e eu peguei a toalha e ajoelhei-me junto às suas pernas e passei a limpar suas coxas. Eu levantei-me depois de algum tempo e Marilyn Monroe disse que estava com medo e que era perigoso ela ficar grávida (…). Ela saiu do quarto, entrou no banheiro e acendeu a luz. Eu acendi a luz do quarto e vi na parede a marca do corpo dela deixada pelo suor.”

(PAULA, José Agrippino de. “PanAmérica”. São Paulo: Editora Papagaio, 2001, p. 62-65)

“QUADRO III

(Coloca sobre a cadeira as toalhas que trazia no braço. Depois sai pelo fundo. O general vai até a porta, fechando-a à chave. Mas tão logo a porta é fechada, ouve-se bater. A moça vai abrir. Atrás, e ligeiramente contraído, o carrasco suando, enxugando-se com uma toalha.)

O CARRASCO
Madame Irma está aí?

A MOÇA (seca)
No Roseiral. Perdão, na Capela Ardente. (Fecha a porta.)
(…) Tire as calças e os sapatos, para que eu possa vesti-lo.

O GENERAL (tomou da chibata)
Sim, mas primeiro de joelhos. De joelhos (…). É perfeitamente natural que uma boa potranca ajude seu dono a desabotoar-se, a tirar as luvas, e que lhe responda de fio a pavio. Então, começa desamarrando meus cordões (…). Espumar rosa e peidar fogo! (…).

A MOÇA
Ponha a camisa para dentro. Puxe as alças. Não é pouca coisa vestir um general vencedor e que vai ser enterrado. Quer o sabre? (…) Aproxime-se, meu general. É noite num campo de macieiras. O céu está róseo e calmo. Uma súbita paz – o queixume das pombas – banha a terra, precedendo os combates. O ar é suave. Um fruto caiu sobre a relva. É uma pinha. As coisas prendem sua respiração. A guerra foi declarada (…). A morte é atenciosa. Dedo aos lábios, é ela, é ela, é ela que convida ao silêncio. Uma bondade derradeira ilumina as coisas. Você já está mais atento à minha presença…

(…)

O GENERAL (hesitando)
… próximo à morte… onde não serei nada, nada além de minha imagem, muito embora refletida ao infinito nestes espelhos… (…). Trata-se realmente de uma descida à sepultura…

A MOÇA
Mas, meu general, o senhor está morto desde ontem.

O GENERAL
Eu sei… mas de uma descida solene e pitoresca, por inesperadas escadas (…). O que fala, e com voz tão bela, é o Exemplo. Não sou mais que a imagem daquele que fui. Agora, tua vez. Vais baixar a cabeça e esconder os olhos, pois quero ser general na solidão. Nem mesmo para mim, mas para minha imagem, e minha imagem para tua imagem, e assim sucesdivamente. Estaremos entre iguais. Pombinha, estás pronta? (…) Salve! (Saúda sua imagem no espelho.) Adeus, meu general!

(Depois estende-se na poltrona, os pés sobre a cadeira, e cumprimenta o público conservando-se tão rígido quanto um cadáver. A moça coloca-se diante da cadeira e, neste mesmo lugar, esboça os movimentos de um cavalo andando.)

(…)

QUADRO IV

É um quarto cujos três painéis visíveis são três espelhos nos quais está vestido um velhote maltrapilho, mas bem penteado, imóvel no meio do recinto. Perto dele, indiferente, uma moça ruiva muito bonita. Colete de couro, botas de couro. Coxas nuas e belas. Jaqueta de pele. Espera. O velhote também. Está impaciente, nervoso. A moça imóvel.

O velhote, tremendo, tira suas luvas furadas. Retira do bolso um lenço branco e enxuga-se. Tira os óculos. Dobra-os e coloca-os num estojo; em seguida põe o estojo no bolso. Enxuga as mãos com um lenço. Todos os gestos do velhote refletem-se nos três espelhos (…). Finalmente, ouvem-se três pancadas na porta do fundo. A moça ruiva aproxima-se. Diz: O que é? (Irma estende o braço que segura uma palmatória e uma peruca muito suja e desgrenhada.)

A moça pega-as e a porta torna a fechar-se. A fisionomia do velhote se ilumina (…). Põe a peruca na cabeça do velhote, com brutalidade. O velho tira do bolso um pequeno buquê de flores artificiais. Segura-o como se fosse oferecê-lo à moça que o chicoteia e arranca o buquê com a palmatória. A fisionomia do velhote se ilumina com a doçura.

Muito perto, o crepitar das metralhadoras. O velhote toca a peruca.

(…)

QUADRO V

O quarto de Irma. Muito elegante. É o mesmo quarto que se via refletido nos espelhos dos três primeiros quadros. O mesmo lustre. Longas rendas caindo do urdimento. Três poltronas.
Um vão à esquerda. Perto dele um aparelho que permite a Irma ver o que se passa em seus salões.
Porta à direita. Porta à esquerda.
Irma está fazendo suas contas, sentada à penteadeira. Perto dela uma moça: Carmen.
Um crepitar de metralhadoras.

(…)

IRMA
‘Aquilo’ lhe faz falta? (Silêncio de Carmen). Ora, Carmen, quando você subia ao rochedo coberto de neve com uma roseira florida de papel amarelo – que, aliás, devo guardar no porão – e o devoto desmaiava ante a sua aparição, você não estava se levando a sério, não é? Diga, Carmen… (Curto silêncio)”

(GENET, Jean. “O Balcão”. São Paulo: Abril, 1976, pp. 40-43, 49-50 e 51-53)

“Gostaria muito que (…) visse um estudo meu de uma vela acesa e dois romances (um amarelo e outro rosa) colocados sobre uma cadeira vazia (justamente a cadeira de Gauguin), em vermelho e verde. Acabo de trabalhar ainda hoje (…) minha própria cadeira vazia, minha própria cadeira vazia, uma cadeira de madeira branca com um cachimbo e uma bolsa de tabaco. Nos dois estudos, procurei um efeito de luz com cor clara (…). Felizmente, Gauguin, eu e outros pintores ainda não estamos armados com metralhadoras e outros tão nocivos engenhos de guerra (…). A altos brados Gauguin, todavia, me reclamou em sua última carta ‘suas máscaras e luvas de esgrima’, escondidas no quartinho de minha casinha amarela (…). Acabo de terminar uma nova tela que tem uma aparenciazinha quase elegante, um cesto de vime com um ramo de ciprestes e um par de luvas azuis (…). Ora, fundir depressa esses dourados e esses tons de flores não é qualquer um que faz, é preciso toda a energia e atenção de um indivíduo inteiro. Quando depois da doença revi minhas telas, a que me pareceu melhor foi a do meu quarto (…). Você pode ver que a partida de Gauguin é terrível, justamente porque novamente deita fora todos os esforços que fizemos para criar e mobiliar a casa que hospedaria os amigos em seus piores dias (…). Pois bem, siga este caminho. Durante minha doença revi cada canto de nossa casa em Zundert, cada atalho, cada planta do jardim, o aspecto dos campos da vizinhança, os vizinhos, o cemitério, a igreja, nossa horta atrás – até mesmo o ninho de corvo no cemitério.”

(GOGH, Van. “Cartas a Théo”. Porto Alegre: L&PM, 2001, pp. 108, 110, 112 e 113)

“Telêmaco dirigiu-se ao seu quarto. Era esplêndido. Elevava-se no pátio com vista para todos os lados. Recolheu-se agitado ao leito. Muitas eram as preocupações. Precedia-o de tocha acesa a dedicada Euricleia, sempre atenciosa (…). Justamente essa iluminava os passos de Telêmaco. Ela o estimava mais que as outras escravas. Cuidava dele desde pequeno. Abriu-lhe a porta da câmara, muito bem construída. Sentado no leito, ele despiu a túnica leve e a depositou nas mãos da dedicada anciã. Esta dobrou com cuidado a veste e a dependurou no cravo junto à cama cinzelada. Saiu do quarto, puxando a porta pela argola de prata. Com a mão na correia acionou o ferrolho. Telêmaco passou a noite envolto num manto de lã. Não lhe saía da cabeça a viagem que lhe recomendara Atena.”

(HOMERO. “Odisseia, v.1: Telemaquia”. Porto Alegre: L&PM, 2014, p. 35-37)

“Para receber aqueles hóspedes cheios de valises, lá estão Lúcia (quase desencarnada na sua severa elegância) e os filhos. Todos entram – saindo da atmosfera vaga do exterior, com aquele canteiro excessivamente verde, para entrar na atmosfera bem protegida do interior, filtrada pelos pequenos e cintilantes vitrais da casa (…). O hóspede e o filho dormem (…) no mesmo quarto”. 

(PASOLINI, Pier Paolo. “Teorema”. São Paulo: Círculo do Livro – Licença editorial por cortesia da Editora Brasiliense, s.d., p. 27)

“Ivan Ilitch partiu, e o estado de espírito alegre, produto do êxito e da concórdia com a mulher, um reforçando o outro, não o abandonou o tempo todo. Achou um apartamento encantador, do jeito que marido e esposa tinham sonhado. Salas de recepção amplas, altas, no estilo antigo, um gabinete cômodo e grandioso, quartos para a mulher e a filha, sala de estudos para o filho (…). Ivan Ilitch ocupou-se da decoração em pessoa, escolheu o papel de parede, comprou os móveis, especialmente de estilo antigo (…). Tudo isso o ocupava tanto que mesmo o novo serviço, por mais que apreciasse, ocupava-o menos que esperava. Nas audiências, tinha minutos de distração: pensava em como seriam as cornijas das cortinas, retas ou curvas. Isso o ocupava tanto que era frequente fazer as coisas ele mesmo, chegando a mudar os móveis de lugar e pendurar as cortinas (…). E começaram a viver na nova moradia, na qual, como sempre, quando estavam bem habituados, sentiram falta de só mais um aposento (…), sentiram falta de só um pouco mais – uns quinhentos rublos – e estavam muito bem (…). Quando já não havia mais o que providenciar, instaurou-se um certo tédio e alguma insatisfação, mas logo fizeram conhecidos e hábitos, e a vida se preencheu (…). Depois do jantar, desde que não houvesse visita, Ivan Ilitch às vezes lia um livro de que muito se falava e, à noite, ocupava-se de negócios, ou seja, lia papéis, informava-se sobre as leis; comparava depoimentos e os enquadrava nas leis. Não achava isso nem chato, nem alegre. Era chato quando poderia estar jogando uíste; mas, quando não, era sempre melhor do que ficar sozinho, ou com a mulher. A satisfação de Ivan Ilitch eram os pequenos jantares, para os quais chamava damas e cavalheiros de boa situação social, e esse jeito de passar o tempo com eles parecia-se com o jeito habitual de passar o tempo dessas pessoas, assim como sua sala de visitas se parecia com todas as salas de visitas (…). As alegrias profissionais eram alegrias do amor-próprio; as alegrias sociais eram alegrias da vaidade (…). Praskóvia Fiódorovna chegou a reparar que Ivan Ilitch passava uma noite mais alegre do que as outras, mas ele não se esquecia por um minuto de que adiava pensamentos importantes a respeito do ceco. Às onze, despediu-se e se recolheu a seu quarto. Durante a doença, dormia sozinho, em um quartinho do lado do gabinete. Despiu-se e pegou um romance de Zola, mas, em vez de ler, pensava. Em sua imaginação, acontecia a desejada cura do ceco (…). Para que me enganar? Afinal, é evidente para todos, menos para mim, que vou morrer, tratando-se de uma questão apenas do número de semanas, ou de dias – pode até ser agora. (…) e de repente ‘ela’ cintilava (…), ‘ela’ o fitava por trás das flores. Para que isso tudo? ‘A verdade é que aqui, nessa cortina, eu perdi a vida (…)’. Entrava no gabinete, deitava-se e ficava de novo sozinho com ‘ela’. Olho no olho, mas não havia nada a fazer. Só olhar para ‘ela’ e gelar (…). Era manhã. Só era manhã porque Guerássim saíra e viera o lacaio Piotr, apagara as luzes, abrira a cortina e começara a arrumação, baixinho. Fosse manhã, noite, sexta-feira, domingo, tudo dava na mesma, tudo era apenas uma coisa: a dor surda e torturante (…). – Não tem vontade de passar para o sofá? ‘Ele precisa colocar ordem no cômodo e eu atrapalho, sou a sujeira e a desordem’ – pensou (…).

Piotr aproximou-se solícito:
– O que deseja?
– O relógio.”

(TOLSTÓI, Lev. “A morte de Ivan Ilitch”. São Paulo: Mediafashion, 2016, pp. 27-29, 31, 43, 50 e 57)

“O pai, doente, estava deitado na cama; em volta, a mulher, os filhos e o hóspede. Todos ali reunidos para a visita do médico, que, em silêncio, vai fazendo os seus gestos exatos e consoladores (trata-se, no caso, de uma aplicação de soro). A doença do pai não é absolutamente grave, mas ele está como que fora do mundo, numa espécie de greve misteriosa: virou criança devido à doença e à dor (…), uma obstinação obscura e sempre igual o domina, quase a despeito de si mesmo (…), o desejo de salvar-se. O médico sai; Lúcia e Pedro o acompanham em silêncio. Ficam no quarto do pai Odete e o hóspede. Odete não deixa, de fato, um momento sequer a cabeceira do pai; ergueu ali seu acampamento, e pretende não arredar pé. Serve-lhe de enfermeira, fiel como uma pequena freira com odor de castidade (…). Mas os olhares ansiosos do pai pouco se importam com ela (…): eles são todos para o hóspede. Foi o hóspede que o pai procurou, logo que a mulher e o filho saíram com o médico. Odete sabe disso, porque desde os primeiros dias da doença o pai demonstrou uma necessidade absoluta e quase infantil de ter o rapaz a seu lado (…). A expressão de seus olhos doentes é a de quem, afinal, conseguiu descobrir alguma coisa que o alivia (…). Ele coloca sobre a coberta a sua mão grossa, que a doença tornou mais pesada, apanha um livro e, com a voz insegura de quem está enfraquecido pela anemia, depois de procurar penosamente a página, começa a ler:

‘Mesmo nessa desagradável função, Ivan Ilitch encontrou conforto. Guerasim, o jovem ajudante de mordomo, sempre vinha levar a sua evacuação. Guerasim era um moço camponês, limpo e sadio’. São palavras de um livro de Tolstói, aberto numa página de ‘A morte de Ivan Ilitch’. Com dificuldade, o pai o estende ao hóspede para que continue a leitura. Ágil, o hóspede toma o livro e mergulha rápido na leitura: ‘… sempre alegre e sereno. A princípio, a presença daquele homem limpo, na sua alva roupa de camponês, ocupado em trabalho tão repugnante, incomodava Ivan Ilitch. Um dia, levantou-se da privada e, sem forças para erguer as calças, deixou-se cair numa poltrona e pôs-se a olhar, com terror, para as próprias coxas nuas, nas quais os músculos estavam nitidamente marcados, sem força (…). Gerasim aproximou-se e o tomou em seus braços, com energia mas carinhosamente, e segurou-o, enquanto  com a outra mão lhe puxava as calças para cima e ia sentá-lo de novo [na privada]; mas Ivan Ilitch pediu que o levasse para o sofá. Guerasim, sem esforço e quase sem tocá-lo, ajudou-o, quase o levou até o sofá, onde o deixou.”

(PAOLINI, Pier Paolo. “Teorema”. São Paulo: Círculo do Livro – Licença editorial por cortesia da Editora Brasiliense, s.d., p. 61-63)

“Depois do almoço, minha leitura era retomada sem demora; especialmente quando o dia estava um pouco quente, todos subiam para ‘retirar-se para seus quartos, o que me permitia, pela escadinha de degraus baixos, chegar logo ao meu, no único andar tão baixo que, sentado à janela, bastaria dar um pulo de criança para encontrar-se na rua. Eu fechava minha janela (…). As teorias de William Morris, que foram aplicadas com tanta assiduidade por Maple e pelos decoradores ingleses, estabelecem que um quarto só é bonito quando contém exclusivamente coisas que nos sejam úteis, e que toda coisa útil, mesmo um simples prego, não deve ser dissimulada, mas tornada aparente. Acima da cama um dossel de cobre e inteiramente descoberto, nas paredes nuas desses quartos higiênicos, algumas reproduções de obras-primas. A julgá-lo segundo os princípios dessa estética, meu quarto não era nada belo, pois estava cheio de coisas que não serviam para nada e que dissimulavam pudicamente, chegando a tornar seu uso extremamente difícil, as que serviam para alguma coisa. No entanto, era justamente dessas coisas que não estavam ali para meu conforto, mas que pareciam ter sido trazidas por prazer, que a meu ver meu quarto tirava sua beleza. As altas cortinas brancas que resguardavam dos olhares a cama posicionada como ao fundo de um santuário; as camadas de acolchoados de ‘marceline’, mantas floridas, colchas bordadas, fronhas de cambraia, sob as quais a luz desaparecia, como um altar durante o mês de Maria sob as grinaldas e as flores e que, à noite, para poder me deitar, eu colocava por precaução numa poltrona na qual elas consentiam passar a noite (…), mas que eu considerava longamente antes de me despir, temendo derrubá-los com um movimento em falso (…); as pequenas estolas bordadas de crochê que cobriam o encosto das poltronas de crochê que cobriam o encosto das poltronas com um manto de rosas brancas que não deviam deixar de ter espinhos, pois, sempre que eu acabava de ler ficava preso a elas; a campânula de vidro sob a qual, isolado dos contatos grosseiros, o pêndulo tiquetaqueava privadamente para conchas vindas de longe e para uma velha flor sentimental, mas tão pesada para levantar que, quando o pêndulo parava, ninguém, exceto o relojoeiro, cometeria a imprudência de dar-lhe corda (…); por fim, a tripla superposição de pequenas cortinas de musselina e enormes cortinas de fustão, sempre sorridentes em sua brancura de pilriteiro, geralmente ensolarada, mas no fundo bastante irrirantes em seu desalinho e na teimosia de brincar em torno dos varões paralelos de madeira e a se enroscarem umas nas outras e todas na janela assim que eu queria abri-la ou fechá-la, uma estando sempre pronta, quando eu conseguia soltar a outra, a vir logo tomar o seu lugar nas junções tão perfeitamente tapadas por elas quanto por uma moita de pilriteiro de verdade ou por ninhos de andorinha (…), de modo que essa operação, tão simples na aparência, de abrir ou fechar minha janela, nunca era vencida por mim sem o auxílio de alguém da casa; todas essas coisas que, além de não poderem responder a nenhuma de minhas necessidades, criavam inclusive um entrave (…), que evidentemente nunca haviam sido colocadas ali para a serventia de alguém, povoavam meu quarto de pensamentos de certo modo pessoais, com ar de predileção, de terem escolhido viverem ali e de gostarem, que têm muitas vezes, numa clareira, as árvores, e na margem dos caminhos ou nos muros, as flores. Elas o enchiam de uma vida silenciosa e diversa, de um mistério no qual eu me via ao mesmo tempo perdido e enfeitiçado; elas faziam daquele quarto uma espécie de capela (…).”

(PROUST, Marcel. “Sobre a leitura”. Porto Alegre: L&PM, 2016, p. 10-13)

“O quarto de Pedro é o de um garoto que começa a tornar-se homem. Tem ainda as características fantasiosas de um primogênito burguês (é mobiliado, pois, com o gosto que as mães atribuem aos próprios filhos – razão pela qual elas se modernizam através deles, e o ninho dos sonhos infantis se transforma numa citação de pintores fauvistas, de histórias em quadrinhos e de heróis americanos para a infância). Ao mesmo tempo, porém, o quarto – que se transforma com a idade do filho – não é mais o de uma criança, mas o de um rapaz, superposto ao precedente, como dois estilos diferentes se superpõem na fachada de uma igreja. O novo estilo é enxuto e elegante, sem nada de supérfluo, ainda que dois ou três móveis sejam de um antiquário (…). Os dois rapazes, o mais velho e o mais moço, vão juntos para o mesmo quarto, taciturnos e talvez um pouco cansados (…). Talvez seja tarde, talvez estejam com sono, ou talvez o silêncio seja motivado – e é a hipótese mais provável – pelo pudor que, não sem um sentimento estranho e desagradável da parte de Pedro, ambos experimentam quando entram juntos no quarto e quando se despem para deitar-se (…). O jovem hóspede despe-se, como é natural, diante do rapaz, até ficar completamente nu sem nenhum temor, sem um sentimento particular de vergonha, como acontece (…), na maior parte das vezes, entre dois jovens do mesmo sexo (…). Pedro, ao contrário, está de cara amarrada. Sua palidez torna-se mais esquálida, e a seriedade de seus olhos escuros torna-se mesquinha e ligeiramente miserável. Para despir-se e vestir o pijama, estende-se sob os lençóis, realizando com muita dificuldade aquela operação tão fácil. Antes de adormecer, os dois rapazes trocam poucas e simples palavras; em seguida, dizem-se boa-noite, e cada um fica sozinho no seu leito. O jovem hóspede – cheio daquela serenidade que, apesar de tudo, não fere quem não a possui – mergulha no sono misterioso das pessoas sadias. Pedro, ao contrário, não consegue pegar no sono; permanece de olhos abertos, vira-se de um lado para o outro; age exatamente como que sofre de uma insônia estúpida, humilhante como uma injusta punição.”

(PAOLINI, Pier Paolo. “Teorema”. São Paulo: Círculo do Livro – Licença editorial por cortesia da Editora Brasiliense, s.d., p. 27-29)

“Deitei-me no leito fatigado
Mas o aborrecimento
Veio deitar-se ao lado…

A treva pesava sobre mim
E eu via nela grandes gestos lívidos…

A pêndula do relógio
Marcava passo
Na sonolência de um compasso eterno…

Como onda que rola na praia
E desmaia de cansaço
Eu me revolvia de um para outro lado…

O aborrecimento
Meu companheiro de durante o dia
Sugeria-me escuros pensamentos…

Eles zumbiam
A bater nas paredes do meu crânio
Moscas que forcejam fugir pela vidraça…

Era tão tarde quando
Minhas pálpebras se fecharam sobre minha mágoa
Que os galos cruzavam no ar
As serpentinas de seus gritos…

Quando acordei no dia seguinte
O aborrecimento tinha partido…
E meu leito
Era largo demais para mim só.”

(ARANHA, Luis. “Vigília”, in “Cocktails”. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 74-75)

“Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal (…).

‘Que me aconteceu?’, pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, sobre a qual se estendia, desembrulhada e em desordem, uma série de amostras de roupas (…), estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada (…). Gregor desviou então a vista para a janela e o céu nublado – ouviam-se os pingos da chuva a baterem na janela (…). ‘Que tal se dormisse mais um bocado e esquecesse todo este disparate?’, pensou. Mas era impossível, porque estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação, não podia virar-se (…). Voltou a deixar-se escorregar para a posição primitiva. ‘Isto de levantar cedo’, pensou, ‘estupidifica uma pessoa. Um homem precisa de sono (…). Eu que tentasse sequer fazer isso com o meu patrão: era logo despedido. De qualquer maneira, era capaz de ser bom para mim, quem sabe? Se não tivesse de me aguentar, por causa dos meus pais, há muito tempo que teria me despedido (…). Mas, para já, o melhor é levantar-me’.

Olhou para o despertador, que fazia tiquetaque na cômoda (…). Eram seis e meia e os ponteiros moviam-se em silêncio (…), era quase um quarto para as sete. O despertador não teria tocado? Da cama, via-se que estava regulado para as quatro; claro que devia ter tocado. Sim, mas seria impossível dormir sossegadamente no meio daquele barulho que trespassava os ouvidos?

(…) Bem, suponhamos que diria que estava doente? Mas isso seria muito desagradável e pareceria suspeito, porque, durante cinco anos de emprego, nunca tinha estado doente. O próprio patrão certamente iria lá a casa com o médico da Previdência, repreenderia os pais pela preguiça do filho e poria de parte todas as desculpas, recorrendo ao médico da Previdência, que, evidentemente, considerava toda a humanidade um bando de falsos doentes, perfeitamente saudáveis. Efetivamente, Gregor sentia-se bastante bem, à parte uma sonolência que era perfeitamente saudável depois de um tão longo sono, e sentia-se mesmo invulgarmente esfomeado.

À medida que tudo isto lhe passava pela mente a toda a velocidade, sem ser capaz de resolver-se a deixar a cama – e o despertador indicava um quarto para as sete -, ouviram-se pancadas cautelosas na porta que ficava por detrás da cabeceira da cama (…).

– Gregor, abre a porta, anda.

(…) A sua intenção era levantar-se silenciosamente sem ser incomodado, vestir-se e, sobretudo, tomar o pequeno-almoço, e só depois estudar que mais havia a fazer, dado que na cama, bem o sabia, as suas meditações não levariam a qualquer conclusão sensata. Lembrava-se de muitas vezes ter sentido pequenas dores enquanto deitado, provavelmente causadas por posições incômodas, que se tinham revelado puramente imaginárias ao levantar-se, e ansiava fortemente por ver as ilusões desta manhã desfazerem-se gradualmente (…). ‘Mas de que serve ficar na cama sem fazer nada?’, perguntou Gregor a si próprio (…). Contudo, ao conseguir, por fim, mover a cabeça até a borda da cama, sentiu-se demasiado assustado para prosseguir (…), caso se deixasse cair naquela posição, só um milagre o salvaria [de bater a cabeça]. E, custasse o que custasse, não podia perder os sentidos nesta altura, precisamente nesta altura; era preferível ficar na cama (…), não divisando processo de introduzir qualquer ordem naquela arbitrária confusão, repetiu a si próprio que era impossível ficar na cama e que o mais sensato era arriscar tudo pela menor esperança de libertar-se dela. Ao mesmo tempo, não se esquecia de ir recordando a si mesmo que era muito melhor a reflexão fria, o mais fria possível, do que qualquer resolução desesperada. Nessas alturas focava a vista tão distintamente quanto podia na janela, mas, infelizmente, a perspectiva do nevoeiro matinal, que ocultava mesmo o outro lado da rua estreita, pouco alívio e coragem lhe trazia. ‘Sete horas, já’, disse, de si para si, quando o despertador voltou a bater, ‘sete horas, já, e um nevoeiro tão denso’. E por momentos deixou-se ficar quieto, como se porventura esperasse que um repouso tão completo devolvesse todas as coisas à sua situação real e vulgar.

A seguir, porém, disse a si mesmo: ‘Antes de baterem as sete e um quarto, tenho forçosamente de estar fora desta cama, a essa hora já terá vindo alguém do escritório perguntar por mim, visto que abre antes das sete’. E pôs-se a balouçar todo o corpo ao mesmo tempo, num ritmo regular, no intuito de rebocá-lo para fora da cama (…). A sua preocupação era o barulho da queda, que não poderia evitar, o qual, provavelmente, causaria ansiedade, ou mesmo terror, do outro lado de todas as portas.”

(KAFKA, Franz. “A metamorfose”. Biblioteca de Ouro da Literatura Universal, Publicações Europa América, LDA. Editora América do Sul LDA. Para esta edição especial, 1988, p. 8-11)

“Não, você não entende. E sei que não entende porque não estou conseguindo ser suficientemente claro, e por não ser suficientemente claro além de você não entender, não conseguirei dar ordem a nada disso, portanto não haverá sentido, não haverá depois (…). Preciso de algo que me tire desta janela, e logo após, ainda, do depois. Querer um sentido me leva a querer um depois, os dois vêm juntos, se é que você me entende. Falava da janela. Poderia começar por ela. É uma janela grande, de vidro. Do teto até o chão, de vidro. A sala é muito pequena, não há nada nela, a não ser um carpete verde-musgo, que me enjoa até o vômito (…). Para não vomitar, tento olhar para além dos telhados que se perddm no infinito. Não vejo nada: só o cinza pesado do céu e a fuligem que se deposita aos poucos nas beiradas da janela. Ao entardecer, a fuligem ganha uns tons rosados e, logo depois, quando baixa o escuro, chega o momento de me encolher sobre o carpete para então, finalmente, dormir (…). Acho que no começo fumava muito, pelo menos o quarto está cheio de cinzas, de pontas de cigarro, já que não existem cinzeiros e a janela é impossível de ser aberta, você está me ouvindo? (…) Há uma sombra leve sobre a minha cabeça, suficiente para que o sol não a aqueça demasiado. Estou descalço. Não sei que idade tenho e não devo ter chegado sequer à adolescência, pois minhas pernas nuas não têm pêlos (…). Talvez tenham se passado anos, talvez seja apenas a noite daquele mesmo dia. Não há luz. O piso é muito frio. Imagino que seja um quarto, porque há mosquiteiros suspensos no teto. Não tenho certeza se são mosquiteiros porque não me movimento. Penso também que podem ser teias de aranha, mas prefiro não estender a mão  (…) para certificar-me. Prefiro não me certificar de nada. Através de alguma persiana aberta entra no quarto um fino fio de luz azulada. Há vozes, lá fora (…). De vez em quando, suponho, cai alguma estrela (…). Não sei quanto tempo dura, nem como tudo começa. Aos poucos, meus ouvidos vão separando das vozes de fora os gritinhos agudos, cada vez mais fortes, e logo depois vem um roçar de asas no meu rosto. Vindos de não sei onde, os morcegos invadem o quarto. Sem querer, penso no teto. Não consigo vê-lo no escuro (…). Os morcegos esvoaçam em volta, eu não me movo. Alguns chocam-se contra as paredes, depois caem ao chão gritando estridente, fininho. Então sou eu quem começa a gritar. Sem me mover, olhos fechados, grito grito grito até que tudo passe e, novamente, me encontro encolhido sobre o carpete verde, rosto colado na janela, olhando os telhados intermináveis através dos vidros. A essa hora, quase sempre a fuligem do céu tem aqueles tons rosados (…). E quando vomito sobre eles, sempre escuto o ranger de dentes atrás da porta (…). Nesses dias não como, não bebo, não fumo. Apenas caminho até a janela, e desde o momento em que o rosa se desfaz e o cinza baixa outra vez, as pombas bicando meu rosto protegido pelo vidro (…). Por vezes fecho os olhos e tenho a impressão de que esses telhados intermináveis são a única coisa que existe dentro de mim, você me entende agora? O quê? Sim, tenho vontade de me jogar pela janela, mas nunca foi possível abri-la.”

(ABREU, Caio Fernando. “Luz e Sombra”, in “Morangos Mofados”. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 58-61)

“ELECTRA:
Como mudaste: teus olhos não brilham mais, eles estão opacos e sombrios. Ai, tu eras tão doce, Filebo. E agora me falas como o outro me falava em sonho.

ORESTES:
Escuta: todas essas pessoas que a esta hora estão tremendo em quartos escuros, cercadas por seus queridos defuntos, supõe que eu assuma todos os crimes delas. Supõe que eu queira merecer o nome de ‘ladrão de remorsos’ e que eu instale em mim todos os seus arrependimentos: o da mulher que enganava o marido, os do mercador que deixou sua mãe morrer, os do usurário que explorou seus devedores até a morte. Diz, nesse dia, quando eu estiver habitado por remorsos mais numerosos que as moscas de Argos, por todos os remorsos da cidade, não terei adquirido direito de cidadania entre vós? Não estarei em casa, entre vossas muralhas cobertas de sangue, como o açougueiro com avental vermelho em sua loja, entre os bois ensanguentados que ele acabou de esfolar?”

(SARTRE, Jean-Paul. “As Moscas”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 63)

“Há dias em que o coração sente de modo tão terrível o impasse que o recebe como uma paulada na cabeça, essa ideia de que não poderia ir adiante. Porque foi exatamente depois de uma conversa com o doutor Gachet que Van Gogh, como se nada tivesse acontecido, entrou em seu quarto e se suicidou.”

(ARTAUD, Antonin. “Van Gogh: o suicida da sociedade”. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, p. 60)

“Bem, à parte o fato de todas as portas estarem fechadas à chave, deveria mesmo pedir auxílio? (…) Tinha chegado tão longe que mal podia manter o equilíbrio quando se balouçava com força e em breve teria de encher-se de coragem para a decisão final, visto que daí a cinco minutos seriam sete e um quarto… quando soou a campainha da porta. ‘É alguém do escritório’, disse, com seus botões, e ficou quase rígido, ao mesmo tempo que as pequenas pernas se limitavam a agitar-se ainda mais depressa. Por instantes, ficou tudo silencioso. ‘Não vão abrir a porta’, disse Gregor, de si para si, agarrando-se a qualquer esperança irracional. A seguir, porém, a criada foi à porta, como de costume, com o seu andar pesado, e abriu-a (…). Que sina, estar condenado a trabalhar numa firma em que a menor omissão dava azo à maior das suspeitas! Será que todos os empregados em bloco não passavam de malandros, que não havia entre eles um único homem devotado e leal que, tendo uma manhã perdido uma hora de trabalho na firma ou coisa parecida, fosse tão atormentado pela consciência que perdesse a cabeça e ficasse realmente incapaz de levantar-se da cama? (…) E, mais pela agitação provocada por tais reflexões do que por qualquer ato de vontade, Gregor rebolou com toda a força para fora da cama (…).

Do quarto da direita, a irmã segredava para informá-lo da situação:

– Gregor, está cá o chefe do escritório (…).

– Gregor – disse então o pai, do quarto à esquerda -, veio cá o chefe do escritório (…). Não sabemos o que dizer-lhe (…). Portanto, abre a porta (…). Ele certamente não há de reparar na desarrumação do quarto (…).

Talvez os pais estivessem sentados à mesa com o chefe do escritório, a segredar, ou talvez se encontrassem todos encostados à porta, à escuta. Lentamente, Gregor empurrou a cadeira em direção à porta (…), agarrou-se à porta para se amparar – as plantas das extremidades das pequenas portas eram levemente pegajosas – e descansou (…). A seguir empenhou-se em rodar a chave na fechadura, utilizando a boca. Infelizmente, parecia que não possuía quaisquer dentes (…). À medida que a rotação da chave progredia, ele torneava a fechadura, segurando-se agora só com a boca (…).

Como tinha de puxar a porta para si, manteve-se oculto, mesmo quando a porta ficou escancarada (…); foi então que o viu [o chefe do escritório], de pé junto da porta, com uma mão a tremer tapando a boca aberta e recuando, como se impelido por qualquer súbita força invisível (…). O pai cerrou os punhos com um ar cruel, como se quisesse obrigar Gregor a voltar para o quarto com um murro; depois, olhou perplexo em torno da sala de estar, cobriu os olhos com as mãos (…).

Gregor não entrou na sala (…), deixando apenas metade do corpo à vista, a cabeça a tombar para um e outro lado, de forma a ver os demais. Entretanto, a manhã tornara-se mais límpida. Do outro lado da rua, divisava-se já nitidamente uma parte do edifício cinzento-escuro, interminavelmente comprido, que era o hospital, abruptamente interrompido por uma fila de janelas iguais. Chovia ainda, mas eram apenas grandes pingos bem visíveis que caíam literalmente um a um.”

(KAFKA, Franz. “A metamorfose”. Biblioteca de Ouro da Literatura Universal, Publicações Europa América, LDA. Editora América do Sul LDA. Para esta edição especial, 1988, p. 13-19)

“Entro em casa, livro-me do casaco, tiro o relógio do bolsinho do colete e penduro a roupa no prego; depois passo a chave na porta e me atiro no divã. Vou ficar deitado e tentar pegar no sono (…). Estou deitado no divã com os olhos abertos e não consigo pegar no sono. Lembro-me da velha com o relógio que vi hoje no pátio, e o fato de não haver ponteiros me agrada muito (…). Meu Deus! Ainda não desliguei o aquecedor elétrico! Levanto-me de um salto e o desligo, depois me deito no divã outra vez e tento dormir. Fecho os olhos. Não consigo dormir. Através da janela o sol da primavera bate direto em mim. Sinto calor. Levanto-me e sento na poltrona ao pé da janela (…). Tremo de impaciência (…). Corro pelo quarto: da janela à mesa, da mesa ao aquecedor, do aquecedor de novo à mesa, depois ao divã, e de novo à janela. Sufoco com a chama que arde em meu peito (…). Ainda tenho o dia inteiro pela frente, e a noite, e a madrugada… Estou bem no meio do quarto. E no que estou pensando mesmo? (…) Preciso escrever. Empurro para perto da janela a mesinha e me sento atrás dela (…). Meu coração continua batendo muito e minha mão está trêmula. Espero para ver se acalmo um pouco (…). A luz bate bem em meus olhos, eu os franzo e acendo o cachimbo. Eis que aparece um corvo voando lá fora (…). O sol se esconde atrás da chaminé do prédio em frente. A sombra da chaminé corre o telhado, sobrevoa a rua e se acomoda em meu rosto (…).

Alguém bate à porta.

– Quem é?

Ninguém responde. Abro a porta e vejo diante de mim a velha que estava no pátio de manhã segurando o relógio (…).

– Eu cheguei – diz a velha entrando em meu quarto.

Paro perto da porta sem saber o que fazer: expulsar a velha ou, ao contrário, convidá-la a sentar? Mas a velha se dirige até minha poltrona ao pé da janela e se acomoda sozinha.

– Feche a porta e passe a chave – diz a velha.

Eu fecho a porta e passo a chave.

– Fique de joelhos – diz a velha.

E eu fico de joelhos.

Mas então começo a atinar com todo o absurdo da minha situação. Por que estou de joelhos diante de uma velha? E por que essa velha está em meu quarto metida em minha poltrona favorita (…).

– Escute – digo eu -, com que direito a senhora vem dar ordens em meu quarto (…)?

(…) Vejo diante de mim quadrados desenhados com perfeição (…). Olho ao redor e me vejo em meu próprio quarto, de joelhos no meio do chão. Aos poucos recobro a memória e a consciência. Olho ao redor do quarto mais uma vez e me parece que alguém está sentado na poltrona ao pé da janela. O quarto não está muito iluminado (…). Sim, obviamente é a velha que está lá sentada, e com a cabeça caída no peito. Deve ter pegado no sono (…). E de repente tudo fica claro: a velha está morta (…). Sou tomado por uma terrível irritação. Para que ela foi morrer justo no meu quarto? Não suporto mortos. E agora vou ter que fazer alguma coisa com esse cadáver, vou ter que ir conversar com o zelador (…). Olho com ódio para ela. Mas e se de repente ela não morreu? Apalpo sua testa. Está fria. A mão também. O que devo fazer?

(…) A velha morta está sentada feito um saco na minha poltrona. Os dentes se projetam para fora da boca. Parece um cavalo morto (…).

Escuto um movimento atrás da parede: é o vizinho levantando, o maquinista da locomotiva. Não faltava mais nada: ele vai descobrir que eu tenho uma velha morta sentada aqui no quarto (…).

Enfio-me no divã, com pé e tudo, e me deito (…). Fecho os olhos e tiro um cochilo.

Sonho que o vizinho saiu de casa e, enquanto isso, eu fui para a escada e bati a porta de fechadura francesa atrás de mim. Estou sem chave e não posso voltar para o apartamento. Terei que tocar a campainha e acordar o resto dos moradores, e isso será horrível. Estou no patamar da escada pensando no que fazer quando, de repente, reparo que não tenho mãos (…).

Então acordo e compreendo logo que estou deitado em meu próprio quarto, no divã, e a velha está sentada ao pé da janela, na poltrona.

Viro a cabeça num repente na direção dela. A velha não está mais lá. Olho para a poltrona vazia e sou invadido por uma alegria selvagem. Quer dizer que foi tudo um sonho. Mas onde será que tudo começou? Será que a velha entrou de fato no meu quarto ontem? (…) Seja como for, que bom que não há nenhuma velha morta no quarto (…).

Pus as pernas para fora do divã, aprontando-me para levantar, quando, de repente, vi a velha morta atrás da mesa, perto da poltrona (…).

– Canalha! – gritei e, correndo até a velha, dei-lhe uma sapatada no queixo. A dentadura voou para um canto (…). A essa altura ficou claro que, fosse como fosse, o caso seria transferido para a polícia criminal e a investigação inepta iria acusar-me de assassinato (…).

Não, não podem me recriminar por isso. Qual o problema? A velha podia muito bem ter se batido em algum canto ainda em vida. Eu me acalmei um pouco e comecei a zanzar pelo quarto, fumando o cachimbo e matutando sobre a minha situação. Enquanto ando pelo quarto, vai batendo uma fome, cada vez mais forte. Chego a tremer de fome (…).

Ajeito a gravata, que saiu do lugar durante a noite, pego o relógio, visto o casaco, vou para o corredor, fecho a porta do quarto com cuidado, guardo a chave no bolso e saio para a rua. Antes de tudo, é melhor eu comer alguma coisa, assim os pensamentos ficam mais claros, e depois alguma coisa eu vou fazer com esse cadáver.”

(KHARMS, Daniil. “A velha”. São Paulo: Kalinka, 2018, p. 11-31)

“O inspetor tinha sete dias para descobrir o assassino. Não tinha fontes acreditáveis, nenhuma pista. Nem sequer sobrara o corpo da vítima. Restavam-lhe testemunhos cuja memória e lucidez já há muito haviam falecido (…). Não faltava muito para deixar de haver sol. Alguns morcegos já se lançavam dos beirais em voos cegos. Os velhos internavam-se no escuro de seus pequenos quartos. O polícia não se demorou, receoso de que a magra luz se escoasse. Ao regressar surpreendeu um velho remexendo no seu saco. O intruso fugiu. Ainda o chamou mas ele desapareceu no escuro. Rapidamente, Izidine inspeccionou o conteúdo do saco. Suspirou de alívio: a pistola ainda ali estava.

– Está à procura de uma lanterna?

O polícia saltou de susto. Não notara a aproximação de Marta. A enfermeira apontou um quarto próximo e entregou uma vela e uma caixa de fósforos:

– Poupe bem a vela, é a única.

O polícia entrou no quarto, já sem luminosidade. Acendeu a vela e retirou as coisas do saco. No chão tombou uma pequena lata. Seria um pedaço de madeira? Parecia, antes, uma casca de tartaruga. Izidine se intrigava: como saiu aquilo do saco de viavem? Rodou a casca entre os dedos e deitou-a pela janela fora. Depois, voltou a sair.

Izidine tinha um plano: entrevistaria, em cada noite, um dos velhos sobreviventes. De dia procederia a investigações no terreno. Depois de jantar, se sentaria junto à fogueira a escutar o testemunho de cada um. Na manhã seguinte, anotaria tudo o que escutara na anterior noite. Assim surgiu um pequeno livro de notas, este caderno com a letra do inspetor fixando as falas dos mais velhos e que agora levo comigo para o fundo da minha sepultura. O livrinho apodrecerá com meus restos. Os bichos se alimentarão dessas vozes antigas.

(…) O primeiro velho apareceu assim que Izidine saiu dos aposentos. No lusco-fusco parecia um menino (…). Izidine lhe solicitou a sua versão do que ali tinha ocorrido. O velho perguntou:

– Você tem a noite toda de tempo?

(…) Naquela noite, quando já se preparava para dormir, ouviu gritos de mulher. Correu pelos becos da noite. Os gritos vinham do quarto de Marta. Era ela que gritava. O polícia repentinou-se pelo quarto dela adentro, pistola em punho. Estava escuro, não se percebia contra quem a enfermeira se debatia. Izidine acudiu a resguardá-la, interpondo-se contra o invisível adversário. Marta caiu enquanto, em vão, o policial procurava o intruso. De súbito, Marta desatou a rir. Enrolada sobre si mesma, sufocada pelo riso, ela abriu a porta e saiu para o luar. A combinação revelava o corpo à transparência.

– Mas quem era?, perguntou Izidine.

– Era um morcego!”

(COUTO, Mia. “A varando do frangipani”. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 22-23 e 58)

O trecho da novela “A velha”, de Daniil Kharms (assassinado nos expurgos stalinistas), dialoga com “Crime e Castigo”.

“Uma casa branca, modesta. Jardim florido, árvores. Uma velha dama, 87 anos, alta, ainda elegante e ereta (…). Ela, Céleste Albaret, camponesa sem cultura, ocupada demais com o trabalho doméstico, nunca teve tempo para escrever o que o patrão escrevia noites adentro, naquele quarto sombrio de janelas fechadas. Ele era Marcel Proust (…). Os salões de Paris se esvaziaram, as ruas ficaram desertas. O cavalheiro extravagante quase não saía mais de casa, tinha crises de asma, escrevia sem parar a noite inteira (…).

‘O quarto estava envolto numa fumaça tão espessa que se poderia cortar à faca (…), M. Proust queimava um pó de fumigação, porque sofria terrivelmente de asma. O quarto era imenso, no entanto não havia um espaço vazio de fumaça. A lâmpada de cabeceira dava uma luz verde. Vi então uma grande cama de cobre, a barra de um lençol branco, cheio de luz verde. De monsieur Proust não se distinguia nada a não ser a camisa branca sob casacos de tricô de lã e o alto do corpo apoiado sobre os travesseiros. O resto estava perdido na neblina da fumigação e na sombra. De vivo, só os olhos dele, fixos em mim; eu os sentia mais do que via’.

O tempo ao inverso, nos menores detalhes: para limpar e arejar o quarto, só quando Proust saía, por volta das dez da noite. Céleste nunca fez uma faxina de dia, as janelas dele nunca se abriam para o sol (…). Na cozinha Céleste podia saber se era dia ou noite, mas o resto do apartamento imenso ficava fechado hermeticamente o dia todo. O quarto de Proust, todo forrado de placas de cortiça para abafar os barulhos da rua e a poeira, as várias cortinas fechadas, uma janela dupla através da qual não se escutava nem os bondes correndo.

‘Ou se vivia na eletricidade ou na escuridão completa’, lembra Céleste. ‘Hoje entendo a busca de M. Proust, todo o sacrifício da sua obra: foi o de se retirar do tempo para poder reencontrá-lo. Quando não se dá conta do tempo, é o silêncio. Ele precisava desse silêncio para escutar as vozes que queria escutar novamente, as que colocou nos livros. Na época eu não sabia, mas agora, quando estou sozinha à noite e não consigo dormir, parece que o vejo aqui, do mesmo jeito que ficava no quarto dele há mais de sessenta anos, trabalhando nos cadernos pretos, sem se dar conta das horas, sozinho, dentro de sua própria noite, quando lá fora a madrugada já se fazia em dia (…)’.

E não suportava cheiros de espécie alguma, nem flores nem perfumes, tudo poderia provocar-lhe uma crise trabalhosa. A poeira, os micróbios, o ar poluído das ruas, era preciso evitar qualquer elemento que lhe atiçasse a asma (…). Não deixava ligar o aquecimento no inverno por causa do ressecamento que lhe provocava na garganta. Preferia permanecer no quarto gelado, cobrindo-se com camadas de casacos de lã e cobertores (…).

‘Costumo me lembrar dele estendido na cama, imóvel, olhos fechados, me fazendo sinal para não falar (…). Nessa época ele começou a me fazer falar da minha infância, da família, de meus pais. Especialmente da infância porque, ele me disse, é na infância que tudo começa, o paraíso ou o inferno’ (…).

Nas gavetas da cômoda do quarto de Proust havia fotos do passado, de mocinhas ingênuas (…).

‘Hoje, quando minha memória cansada tenta lembrar todas essas noites mágicas, chego a ver M. Proust sentado na cama, eu de pé, como ficava, nunca me passava pela cabeça que poderia sentar no sofá. Lembro a luzinha do abajur verde, o sorriso de M. Proust, os olhos de uma tristeza inexplicável (…). Ele falava, e o tempo parava naquele quarto (…). Seu pudor de doente, sempre na cama (…)’.

(…) Porque o aquecimento e a lareira não podiam ser ligados para não expelirem poeria, o quarto de Proust ficava sempre gelado. Foi por causa desse frio que ele trabalhava horas e horas, imóvel na cama, cheio de cobertores e casaquinhos de tricô, bolsas de água quente que, no outono de 1922, apanhou a gripe fatal (…).

‘E escreveu até as três e meia, lembro muito bem os ponteiros do relógio enquanto M. Proust enchia os cadernos com sua letrinha fina, já tremida e desigual (…)’.

Às quatro e meia da tarde a agonia acabou (…). ‘Eu tombava de cansaço e dor, mas não podia acreditar. Ele se deixava morrer tão nobremente, sem tremer, sem gritar, sem que a luz da vida tivesse deixado seus olhos, que nos fixaram até o fim e ficaram abertos (…). Apagou-se docemente, nos olhando’.

(…) Céleste não sai muito além do jardim florido (…). Proust disse que para ele Céleste ocupava o lugar de mãe. Ela também acha que o considerava e o tratava como um filho favorito.”

(Entrevista de Céleste Albaret, governanta de Proust, por Sonia Nolasco-Ferreira, publicada na Revista 80, em 1983. In PROUST, Marcel. “Sobre a leitura”. Porto Alegre: L&PM, 2016, pp. 57-58, 61-62, 66-67, 68, 71, 79, 91, 92-93 e 95


 Sobre Paulo Cesar de Carvalho

o Paulinho, é bacharel em Direito (USP), mestre em Linguística e Semiótica (USP), professor de Língua Portuguesa (lecionou na ECA-USP) e autor de materiais didáticos de Gramática, Redação e Interpretação de Texto. Publicou seis livros de poesia, constando em antologias literárias no Brasil e em Portugal (como em É agora como nunca, da Companhia das Letras, organizada por Adriana Calcanhoto). Compositor, tem canções gravadas por diversos músicos da cena contemporânea. Foi militante da organização trotskista Convergência Socialista.