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SIBILA DEBATE 64: José Arthur Giannotti

A BOA ARTE NÃO É SEMPRE CRÍTICA?

 

José Arthur Giannotti é o mais conhecido e reconhecido filósofo brasileiro. Professor Titular Emérito do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, coordenou a área de Filosofia e atualmente é membro do Núcleo de Filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP, além de membro do Conselho Editorial da Revista Novos Estudos do CEBRAP, do Grupo de Trabalho Wittgenstein da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia – ANPOF, e da Grã-Cruz da Ordem do Mérito Científico.

Sibila: O senhor concorda com a tese (defendida por alguns autores de esquerda) de que em 1964 havia ameaças reais ao poder e ao statu quo vindas da esquerda? Paradoxalmente, este não é o argumento central dos que justificam o golpe?

Giannotti: A situação estava muito tensa; quarteladas eram possíveis dos dois lados. A esquerda representava um desejo de mudança , de justiça social e de modernização do país. No entanto, poucos apostavam numa verdadeira democracia. Este não era um projeto nem de Goulart, nem dos lacerdistas e cia. Os dois lados apelaram para as massas, mas não abriam seus ouvidos para elas. Além do mais, o confronto não levou em consideração que estávamos em plena Guerra Fria e que a intervenção americana, no caso de um golpe de Goulart, já estava decidida. A meu ver faltou maturidade de ambas as partes.

 

Jango, Kennedy e as armas ao fundo
Jango, Kennedy e as armas ao fundo

 

Sibila: Alguns consideram que sem a guerrilha de 1969 a 1975, sem a tortura e outros fatores (governo Jimmy Carter), a presença dos militares se prolongaria indefinidamente. O senhor concorda com esta tese? Ela não omite os embates dentro da cúpula militar, justamente quanto à necessidade da redemocratização?

Giannotti: O golpe se instala e vem outro dentro dele, afastando a maioria dos “liberais” que o apoiavam. A economia começou a crescer e o governo militar ampliou seu apoio, ganhando as massas. A oposição provinha dos “ilustrados”, dos “abandonados” e do resto dos movimentos sociais de 74. A necessidade da democracia não estava no horizonte. Muitos pensavam que era preciso concertar o país para que o poder voltasse ao povo. Ainda hoje não há membros do governo do PT que pensam do mesmo jeito? Os reprimidos reclamavam liberdade, mas não apostavam numa democracia de massa. A democracia se tornou um valor paulatinamente na luta conta a opressão cotidiana: contra a repressão a qualquer oposição, contra a censura na mídia e nas artes, contra o medo. Mas o seu conteúdo não ia muito além do reclamo pelas eleições.

 

Sob o domínio do medo, filme de Sam Peckinpah, 1971
Sob o domínio do medo, filme de Sam Peckinpah, 1971

 

Os corajosos militantes contra a ditadura, arriscando suas vidas lutando contra a repressão violenta e a tortura não eram, por isso mesmo, favoráveis a um processo democrático. Propunham uma modernização limpa, um Estado forte mais esclarecido. A guerrilha foi importante porque radicalizou o conflito. Mas a maioria dos guerrilheiros imaginava que aqui poderiam repetir a revolução cubana. Precisamente durante o milagre econômico e a explosão da vida urbana. Desde logo eu e alguns colegas compreendemos que a luta contra a ditadura também era pela democracia, por um crescimento distributivo que abrisse a economia e as mentes. O projeto de criar na América Latina outros Vietnãs não poderia dar certo, num momento em que a doutrina Monroe (de 1923) [“A América para os americanos”] estava sendo aplicada rigorosamente, por causa da Guerra Fria. O cerco aos milicos e a abertura para a democracia começou quando o “milagre” acabou e as classes populares, as classes médias e mesmo alguns membros das classes mais ricas compreenderam que uma justiça social dependia de pensar o adversário não como um inimigo a ser aniquilado, mas como o representante do outro lado da questão.

 

Militantes do PC do B mortos pelo exército na “chacina da Lapa” (dezembro de 1976)
Militantes do PC do B mortos pelo exército na “chacina da Lapa” (dezembro de 1976)

 

Sibila: A respeito dos famosos “excessos” dos aparelhos de esquerda e do Estado: o assassinato de Henning Boilesen, por exemplo, foi “excessivo” ou “justo”? Pode uma execução extrajudicial ser justa? Se o for, quando praticada pela esquerda, não o será também quando praticada pelo aparelho de Estado?

Giannotti: A guerra contemporânea mudou de sentido. Basicamente se apoia no terrorismo e mesmo os Estados nacionais não hesitam em recorrer a ele. A milicada matava nossos companheiros, a contrapartida era inevitável, na medida em que uma solução política com um novo desenho ainda não se desenhara no horizonte. O assassinato de Boilesen nem foi justo nem excessivo, apenas mera casualty numa guerra moderna cuja forma é mais bárbara do que a guerra dos bárbaros.

Sibila: Paris e Londres eram as referências principais. Grosso modo, uma parte dos intelectuais seguia Paris (o campo da esquerda), outra, Londres (o campo da contracultura). A “linha londrina” prevaleceu na cultura brasileira? Isso tem relação com 1964?

Giannotti: As duas tiveram seus papeis. Se uma promovia a revolução dos costumes, a outra ajudava a termos consciência de nossa situação subdesenvolvida e de nossas tarefas. Caetano e Chico, nos extremos, simbolizam esses vetores. Mas convém não nos esquecer que, se a França nos ensinava a desconfiar da União Soviética ditatorial e burocratizada, também nos fazia perder tempo discutindo se a revolução nasceria no Terceiro Mundo e se o “foquismo”cubano (cf. Debray) seria um caminho de luta. Aliás, vira e mexe ressuscitamos a ideia leninista de que a revolução viria da periferia, embora em cada grande crise do capitalismo a saída nasça no centro através de uma revolução schumpeteriana, baseada numa enorme avanço da tecnologia.

 

Torquato Neto e Ana Duarte, sua mulher, em Paris
Torquato Neto e Ana Duarte, sua mulher, em Paris

 

Sibila: João Cabral, em duas conferências de 1952 e 1954, já discorria sobre o problema do moderno distanciamento do público de poesia. Mas durante o regime militar livros como Poema sujo, de Gullar, e poemas como “Rosa de Hiroxima”, de Vinicius, tiveram alguma popularidade, no contexto de certa efervescência político-cultural reativa. Houve então melhora ou piora, em relação à situação descrita por Cabral? Elas se diluíram ou se acentuaram com a redemocratização à brasileira?

Giannotti: O público se afastou apenas da poesia ou da literatura em geral? A televisão impôs a novela e o mercado abriu espaço para a literatura de autoajuda. No mundo inteiro, veja o caso de Paulo Coelho. Mas, como sempre, o mercado cria e também destrói. Numa cultura de massa a tendência é imperar uma literatura de massa. O grande problema hoje, creio eu, é redefinir o local.

Sibila: À época do golpe, não havia no Brasil um público leitor de massa nem um público médio de literatura “média”, de mercado. Hoje este público está em formação e, segundo os otimistas, em ascensão, mas em detrimento da antes influente intelligentsia. O senhor concorda com esta avaliação, que parece seguir certo modelo brasileiro de se ganhar por perdas?

Giannotti: A escola secundária se ampliou consideravelmente nos últimos anos. Na minha época, anos 1950, mais ou menos 40% tinha acesso ao secundário. Hoje quase 100% cursa o ensino fundamental. Mas essa expansão foi desordenada. A escola se transformou num veio de ascensão social sem que se preparasse para formar bons quadros, competentes para operar as novas máquinas do capitalismo informatizado. Cabe assinalar que não houve um bom programa de treinamento dos professores e hoje em dia muitos não sabem aquilo de deveriam ensinar.

Sibila: O golpe de 64 aconteceu em um país ainda predominantemente agrário, em que persistia uma arte popular, ao lado de regionalismos literários e de movimentos de vanguarda nos centros principais. Tudo isso acabaria fatalmente com o advento da cultura de massa, da globalização e da “era da informação”, como no resto do mundo, ou, no caso do Brasil, em que tal se deu no contexto do regime militar, da censura, da perseguição a criadores e criações, isso foi ainda mais fatal, nos dois sentidos?

Giannotti: Sempre há um balanço das duas partes. Pontualmente, houve muita boa produção nas artes e no pensamento brasileiro.

 

Aldo Bonadei, Paisagem, óleo sobre tela, 1964
Aldo Bonadei, Paisagem, óleo sobre tela, 1964

 

Sibila: Como o senhor vê o rebaixamento cultural brasileiro hoje? Ele tem causas em 1964? Ou na civilização global do espetáculo?

Giannotti: 64 também não foi um enorme espetáculo de burrice e de violenta malandragem criativa? Não conviverem os milicos e Delfim?

Sibila: Por que parece não haver mais condições para uma arte crítica no Brasil? Trata-se do “espírito da época”, incluindo certa “demissão da crítica”, em grande parte mercadologizada, ou o modelo social e econômico brasileiro é parte da resposta?

Giannotti: Não sei bem o que seja uma arte crítica. Desde que ela seja realmente criativa, abre caminho para novos mundos e novas formas de vida. A boa arte não é sempre crítica?

Sibila: Desde os governos FHC e Lula, passando por Dilma, há uma proclamada ascensão econômica das classes mais baixas, mas restrita ao consumo, e excluindo os demais fatores da cidadania moderna, como a educação. Trata-se de mais um aggiornamento da “modernização conservadora” à brasileira?

Giannotti: O mundo contemporâneo mudou muito, principalmente depois de 1980 com a inclusão digital. Agora os EUA e a Europa estão saindo da crise mediante uma fantástica revolução tecnológica. Como já se mostrou no século anterior: assistimos ao desaparecimento do Estado tal como nasceu no século XVI e a dicotomia geral e local passa por novas formas. O local não é a rede?

Sibila: As atuais fragilidades do Poder Judiciário, do Ministério Público e da polícia decorrem em parte da impunidade dos agentes de 1964, que teria resultado, entre outras coisas, no continuísmo de indivíduos, práticas e mentalidades?

Giannotti: É muito mais complicado do que isso. Deixo de responder.

Sibila: Se as mentalidades são prisões de longa duração, pode-se afirmar que há uma característica histórica dominante na mentalidade brasileira? Qual?

Giannotti: O que importa essa matriz permanente, se houver, quando interessa agora uma nova configuração do Estado e da nação?

 

Mapa-múndi redesenhado segundo a distribuição de armas nucleares
Mapa-múndi redesenhado segundo a distribuição de armas nucleares

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 Sobre José Arthur Giannotti

É o mais conhecido e reconhecido filósofo brasileiro. Professor Titular Emérito do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, coordenou a área de Filosofia e atualmente é membro do Núcleo de Filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP, além de membro do Conselho Editorial da Revista Novos Estudos do CEBRAP, do Grupo de Trabalho Wittgenstein da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia – ANPOF, e da Grã-Cruz da Ordem do Mérito Científico.