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SIBILA DEBATE 64: Tales Ab´Sáber

A CULTURA PASSOU A SER UM GESTO IRRELEVANTE DE CONGRATULAÇÃO PARA MEDALHINHAS E MEDALHÕES

Tales Afonso Muxfeldt Ab´Sáber é professor de filosofia da psicanálise no Curso de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É formado em cinema pela Escola de Comunicações e Artes da USP, por onde é mestre em artes, e psicológo pelo Instituto de Psicologia da USP, onde defendeu doutorado sobre clínica psicanalítica contemporânea. Em 2005 recebeu o Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Psicologia, Psicanálise e Educação com O sonhar restaurado – formas do Sonhar em Bion, Winnicott e Freud (Ed. 34).Publicou, em 2012, A música do tempo infinito, sobre cultura tecno e subjetivação contemporânea (Cosac Naify).

Sibila: Jacob Gorender enfatiza, de acordo com o historiador Carlos Fico, que, no pré-64, engendrou-se uma real “ameaça à classe dominante brasileira e ao imperialismo”: “O período 1960-1964 marca o ponto mais alto das lutas dos trabalhadores brasileiros neste século [XX]. O auge da luta de classes, em que se pôs em xeque a estabilidade institucional da ordem burguesa sob os aspectos do direito de propriedade e da força coercitiva do Estado. Nos primeiros meses de 1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se definiu, por isso mesmo, pelo caráter contrarrevolucionário preventivo”. Segundo Carlos Fico, “Gorender consolidou, em traços gerais, duas das principais linhas de força interpretativas sobre as razões do golpe: o papel determinante do estágio em que se encontrava o capitalismo brasileiro e o caráter preventivo da ação, tendo em vista reais ameaças revolucionárias provindas da esquerda”. O senhor concorda com essa visão do golpe? Ela não tem algo de irrealista? Havia, de fato, ameaças reais ao poder e ao statu quo vindas da esquerda? A conjuntura externa, as grandes tensões da Guerra Fria, não foram uma lente que deformou as percepções políticas da época? Paradoxalmente, este não é o argumento central dos que justificam o golpe?

Tales: De fato não acredito que o Brasil vivesse um verdadeiro momento revolucionário no pré-64. Apesar dos conflitos localizados e de grandes proporções em relação ao controle da distribuição da renda e da propriedade no Brasil, principalmente no Nordeste, o processo de demandas sociais se dava então de modo a produzir pressões cuja expressão era, e devia ser, as esferas institucional e legal do país. Noutras palavras, movimentos populares e progressistas de caráter abertamente públicos, como o das Ligas Camponesas de Pernambuco, apostaram fortemente na democracia brasileira de então como espaço digno da confiança para promover o debate e o desenvolvimento social, e colheram desta aposta uma arcaica ditadura militar latino americana, de todo poder às elites locais em oposição à classe trabalhadora, abertamente paranoica e, como não poderia deixar de ser, assassina. Documentos recentes demostram claramente como a guinada antidemocrática brasileira era também um projeto estratégico norte americano, determinado ao menos desde 1962, em um processo impulsionado pela eficácia pragmática e o anticomunismo chão do embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon. Este homem simplesmente forçou o governo americano a colocar na pauta geopolítica estratégica do país, e a fomentar e financiar, investindo na conspiração como uma garantia de mercados futuros, o golpe de direita brasileiro. Como agora é sabido, os Estados Unidos despejaram recursos para estimular a virada de mesa política à direita no Brasil, bem como contataram militares locais para promover e dar apoio diplomático e militar irrestrito à ideia do golpe contra-revolucionário. Por outro lado, os interesses centrais em manter o Brasil a todo custo na esfera de influências norte-americana se sincronizaram com os mais arcaicos e antidemocráticos interesses locais, que visavam suspender por tempo indeterminado as demandas populares e sociais por salários, direitos populares e reforma agrária clássica, do tipo conservador, que deveria produzir uma nova pequena classe de proprietários no campo, que era o que então se propunha, por dentro da política, no Brasil. Um documentário, carregado de espantosos documentos de história oral, tão comprometido com o pré-64 em suas lutas sociais mais intensas e reais, no Nordeste camponês, como foi Cabra marcado para morrer– verdadeira obra-prima do cinema político, verdadeira comissão da verdade brasileira frente às injúrias e violências sofridas pelos pobres que ousaram confrontar politicamente as elites arcaicas e seu exército cão de guarda, muito bom para bater em pobre – revela pontos importantes do processo político de organização e pressão popular de então, tido alucinadamente pela direita parafascista como revolucionário: 1) as lutas se davam amplamente por direitos de caráter trabalhista, como garantia de salários e regulação formal das relações empregatícias; 2) o processo político da reforma agrária era movido por advogados e expresso como embate social legítimo no Congresso Nacional, portanto de modo institucional, configurando simplesmente uma pressão popular democrática; 3) o apoio dos jovens de classe média urbana, no caso via CPC, à justiça da demanda popular era apoio político, simbólico, e não havia nenhum traço revolucionário nesse pacto interclasses, a não ser a forte revolução estética cinemanovista; 4) desencadeado o golpe, todos os populares envolvidos na organização das Ligas foram perseguidos de modo implacável, tendo vidas e famílias destruídas, o que jamais foi reparado, legal ou eticamente, pelo país, mesmo após a redemocratização; 5) deflagrado o golpe, os golpistas aliados de ditadores divulgaram na imprensa a existência de focos armados de treinamento revolucionário com influências cubanas na região da Galileia em Pernambuco, onde ocorriam as filmagens de caráter progressista do filme, o que justificou a extrema repressão militar e policial; esse foco de guerrilha, evidentemente, jamais existiu. Era tudo mentira. Essa história concreta e simples, bem documentada e de imensa importância histórica, do processo da pressão social camponesa no Nordeste brasileiro sobre o grande latifúndio, desmente na raiz a ideia, projetada e alucinada pela direita, de um estado pré-revolucionário no Brasil de 1964. Não havia nenhuma perspectiva de derrubada militar do governo brasileiro em 1964, a não ser pelos militares de extrema-direita aliados às forças sociais que tradicionalmente desprezam os direitos sociais do povo brasileiro – mentalidade arcaíssima, antimoderna, cuja origem mais profunda só se explica por nossos trezentos anos de escravidão –, promotores dos interesses de congelar relações de domínio e, principalmente, a massa de salários dos trabalhadores brasileiros, para impulsionar o capitalismo local com a máxima lucratividade interna e internacional. São de fato, a meu ver, estes os grandes motivos do golpe militar fascista, antidemocrático e assassino de 1964.

Favela da Praia do Pinto, Rio de Janeiro, 1960
Favela da Praia do Pinto, Rio de Janeiro, 1960

Sibila: Gorender escreveu: “O núcleo burguês industrializante em 1964 e os setores vinculados ao capital estrangeiro perceberam os riscos dessas virtualidades das reformas de base e formularam a alternativa da ‘modernização conservadora’”. A “modernização conservadora” não foi uma criação do governo militar, mas é uma marca da história brasileira, incluindo a Proclamação da República pelo exército, a República Velha, o governo Vargas, o governo JK. Hoje, o Brasil de 2014 tem um perfil agrário e exportador, sem uma burguesia industrial fortalecida. Ao mesmo tempo, desde os governos FHC e Lula e incluindo o governo Dilma, há uma proclamada ascensão econômica das classes mais baixas, mas restrita ao consumo, e excluindo todos os fatores da cidadania moderna, a começar da educação. Esta seria uma das caras reatualizadas da modernização conservadora à brasileira em geral, e de 1964 em particular?

Tales: O fascínio atual generalizado, de pobres e de ricos, pelo mundo mais desabrido do consumo se dá em claro detrimento, e adiamento ao indefinido, da necessidade de avanços cidadãos significativos nas esferas civilizatórias da vida, como a educação pública, o direito à cidade liberada universalmente para o seu uso e circulação e, por fim mas não por último, o direito democrático à autonomia crítica. É a modalidade pós-moderna da modernização conservadora ao modo brasileiro, ou seja, que sempre arrasta um traço significativo de arcaísmo e desprezo sádico pela vida popular. O consumo, imaginário ou real, unifica pobres e ricos em uma prática de elogio simbólico às coisas e aos seus símbolos de mercado, às marcas e ao dinheiro, em uma formação civilizatória capitalista avançada que conserva as mazelas da exclusão e do desprezo brasileiro por massas de pobres de modo praticamente intocado – apesar do efeito propagandístico do lulismo. Que o Partido dos Trabalhadores tenha aderido de modo total e acrítico a essa política de resultados para o consumo, e de investimento público no sujeito do consumo, em detrimento dos necessários investimentos sociais que deveriam desequilibrar a estrutura de concentração de renda brasileira – por exemplo, tirando dinheiro de bancos e enviando-o à educação – demonstra claramente a passagem da esquerda brasileira ao seu próprio e novo estatuto de modernização conservadora do país, agora “modernizada” pelo acesso às quinquilharias de mercado, com cidadãos de vida ruim e sempre deficitária nos critérios básicos e mínimos da integração social.

Sibila: Alguns consideram que sem a guerrilha de 1969 a 1975 (pós-AI-5), incluindo a do Araguaia, não haveria redemocratização formal do país. Sem as torturas e outros fatores (governo Jimmy Carter), a presença dos militares se prolongaria no tempo. O senhor concorda com esta tese? Ela não simplifica tudo em uma variável, talvez hipertrofiada e inteiramente externa ao regime, omitindo, por exemplo, os conhecidos embates dentro da cúpula militar, justamente quanto à questão da necessidade da redemocratização? Há algum documento estratégico do governo militar que contemple a perspectiva de uma ditadura indefinida?

Tales: A frágil e desesperada guerrilha brasileira foi gestada por jovens estudantes de história, sociologia, teatro e filosofia – sem nenhum treinamento militar, ou mesmo queda para a coisa – a partir de 1968, como reação limite e heroica à ilegitimidade e à violência política e social da ditadura estabelecida em 1964. O tardio aparecimento de uma guerrilha relativamente superficial, muito pequena, fraca, é mais uma demonstração da falácia das condições revolucionárias do pré-64, que implicariam, se o argumento fosse verdadeiro, importantes mobilizações militares, absolutamente inexistentes até mesmo no período da entrada em cena da guerrilha. A guerrilha foi um movimento desesperado, legítimo como necessidade existencial de quem era capaz de ler as dimensões históricas que estavam em jogo, de embate real e prático contra a tirania instalada no Estado brasileiro, uma tentativa mágica de derrubar uma ditadura grotesca, que em um primeiro momento reproduzia o pior do país, das elites sobre a vida nacional. Ela era fraca e de força absolutamente desproporcional em relação ao Estado, um gesto de voluntarismo e de desejo extremo diante do desespero mais absoluto com o destino do Brasil. Ela se tornou um trauma na história autoritária do país porque, talvez pela primeira vez, o tradicional poder repressor brasileiro teve que atuar sobre jovens de classe média, filhos da própria elite, que muito corajosamente, mas embalados por ilusões, naquele momento só viam o embate direto como modo concreto de derrubar a ilegítima ditadura. Por outro lado, foram muitas as pressões sociais e populares ao longo dos anos de 1970 que levaram ao enfraquecimento e ao tardio fim de uma ditadura que declarava ter vindo para durar meses, mas como tudo era mentira no poder absoluto instalado no Brasil, durou vinte anos. Movimentos populares contra os atentados sistemáticos aos direitos humanos e os assassinatos, jornalismo de massa que se alinha em busca da democracia, sindicatos que gradualmente recuperam organização e vão ao confronto em 1978 e 1979, indústria cultural conservadora na economia, liberal no trato com o poder e progressista na esfera dos comportamentos, a ilegitimidade mais absoluta da política institucional movida pelos generais no Congresso – com seus pacotes que manietavam sistematicamente a mínima legitimidade do processo –, radicalidade do terror de Estado da linha dura do exército, a ditadura foi sendo ultrapassada historicamente por todos os lados, mas, também, sempre reagindo com grande agressividade autoritária. E, principalmente, ela foi liquidada pela crise econômica radical do pós-crise de petróleo de 1973, que levou ao descarrilamento e ao esfacelamento em corrupção ineficaz de todos os projetos megalomaníacos de produção de um “Brasil Grande” que animava as aspirações desenvolvimentistas ditatoriais e da elite grosseira que enriqueceu sozinha no período. É importante lembrar que ao fim do seu processo a ditadura militar brasileira convivia com uma inflação crônica altíssima, com a insolvência mais absoluta do Estado, com a crise social aguda que provocara e com a corrupção do poder generalizada que promovera. Além de se tornar simplesmente terrorista contra o espaço público e as demandas democráticas. É de se estranhar a imensa habilidade política e a força social maior do pacto de elite que não enviou nenhum general ou tecnocrata brasileiro para a cadeia, dado o tamanho espantoso do estrago ao fim do processo da ditadura militar assassina de 1964. No entanto é preciso lembrar que, até o último instante, a linha dura fascista do exército brasileiro ameaçou dar um golpe sobre o sempre frágil processo de redemocratização, e que a famosa e graciosa frase, em um momento de verdade expressivo do habitus militar brasileiro, do general presidente ditador João Batista Figueiredo, “Quem não gostar eu prendo e arrebento”, referia-se aos militares da linha dura que ameaçavam e desejavam fechar mais uma vez o regime. Isto ainda em 1982, 1983.

Sibila: O que significa a presença de José Sarney da UDN até hoje, passando pelo golpe de 1964? Com ele liderando a transição, não se fez uma Comissão da Verdade. Como o senhor explica uma transição para a democracia sem uma Comissão da Verdade e sem a punição dos militares e dos “excessos” (formalmente crimes) dos aparelhos de esquerda? O assassinato, por exemplo, de Henning Boilesen, foi excessivo ou justo? Pode uma execução extrajudicial ser justa? Se o for, quando praticada pela esquerda, não o será também quando praticada pelo aparelho de Estado?

Tales: Todo militante de esquerda, se não foi assassinado pelo regime, foi preso e, muitas vezes, quase sempre, torturado. Absolutamente não houve falta de punição às ilusões armadas da esquerda e aos seus crimes. A guerrilha do Araguaia foi chacinada, com assassinatos e bárbaros ocultamentos de corpos, desaparecidos até hoje. No caso, o honrado exército brasileiro garantiu a vida e o julgamento daqueles que se entregassem, e depois os assassinou e desapareceu com os corpos. Nenhum militante de esquerda deixou de ser preso, se não morto, uma vez apanhado pelo regime militar. Não houve anistia nenhuma, neste sentido, para a esquerda que se aventurou em enfrentar o regime. Ela pagou integralmente as suas penas, oficiais ou extralegais, nos porões, com tortura e com o assassinato. É preciso lembrar que apenas os torturadores brasileiros e sua linhagem de comando foram de fato anistiados no Brasil, além dos financiadores da tortura, os grande burgueses. Um fato histórico e de poder, desconhecido em todo o mundo, quando se trata de processos de redemocratização pós-ditaduras, de direita ou de esquerda. Em nenhum outro lugar uma lei autoconcedida por uma ditadura visando seus agentes e torturadores teve validade no processo democrático. De fato, essa lei é contra os tratados do direito internacional sobre superação democrática de regimes ditatoriais. O pacto arcaico das elites que promoveram a ditadura, que refizeram o pacto na democracia para virar a página e esquecer as próprias violências, foi politicamente vitorioso. Talvez essa impunidade e a história mal contada da violência de Estado brasileira e seus promotores e apoiadores na sociedade civil e no empresariado seja de longe a maior vitória da ditadura militar de 1964. Talvez, e provavelmente, a ditadura de 1964 foi de fato tão vitoriosa que ela desenhou mesmo a consciência da justiça e da história estritamente ao seu modo e desejo, já na democracia, e nenhuma força social, incluindo aí as estranhas esquerdas que emergiram na redemocratização, tocaram no projeto de ditadores e apoiadores de blindar e manter a sua história de terror e exceção acima e fora do julgamento e da punição, política e legal. Talvez o prestígio de políticos arcaicos como José Sarney venha exatamente deste pacto generalizado de blindagem do poder brasileiro. É preciso lembrar que apenas no apagar das luzes do segundo governo Lula, no final do tardio ano de 2010, sendo processado e perdendo a ação por motivos óbvios na Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Brasil se viu, por força exterior – mais ou menos como os ingleses precipitando o fim da escravidão brasileira com a força das suas canhoneiras – obrigado a instaurar, de modo bastante tímido, a sua muito tardia comissão da verdade.

Sibila: A fragilidade do Poder Judiciário, do Ministério Público e da polícia decorre em parte da impunidade dos agentes de 1964?

Tales: A tortura contra pobres e negros presos é generalizada no Brasil. Um escândalo civilizatório. O país é simplesmente um país perverso sobre este aspecto. Além de campeão mundial de assassinato de jovens. Sempre pobres. Penso que a impunidade absoluta da tortura e do terror de Estado da ditadura militar brasileira dá o fundo da fantasia prática do direito à tortura e ao assassinato dos agentes públicos, da polícia brasileira da democracia. O traço de caráter autoritário, que a elite nacional espera da sua polícia, se sobrepõe à lei, aos acordos internacionais de direitos humanos, e libera a tortura como prática legítima e comum de gestão social. Estas práticas são, ao meu ver, continuas, não sofreram descontinuidade, com o estado de exceção torturador, legitimado pela própria força e pela demofobia, da ditadura militar de 1964. Isso quando os presos não são entregues à própria sorte e barbárie, sendo dissecados vivos no presídio de Pedrinhas, no Maranhão da família Sarney. Assim funciona a polícia da democracia que, nada por acaso, prossegue sendo polícia militar.

Sibila: Considerando as teorias da Nova História e do culturalismo, gostaria que o senhor falasse um pouco de fatos como Sergio Paranhos Fleury ter sido guarda-costas de Roberto Carlos de 1965 a 1968 e guarda-costas de todo o grupo da Jovem Guarda – criada pela agência de publicidade de Carlito Maia, irmão de Dulce Maia (da ALN). Roberto Carlos que elogiou em 1973 o general Pinochet, chamando-o de “senhor presidente, Don Augusto Pinochet. Houve colaboração de artistas com o regime militar em geral e com a OBAN e o DOI-CODI em particular?

Tales: As ambiguidades de consciência de uma certa classe média brasileira necessariamente deveriam se expressar como convívio e tentativa de se dar bem com os jogos do poder absoluto, a nova corte ditatorial empresarial brasileira que se estruturou nos anos de 1970. Muitos trabalhavam e ganhavam de empresas comprometidas com a sustentação e o espírito de arrocho geral do regime, e artistas escapistas e apaixonados, por vezes evocadores de um Jesus Cristo pop e kitsch, contribuíam para o clima cultural de estabilidade, contando com o avanço entre regressivo e modernizador dos meios de comunicação de massa no país, principalmente a televisão. Aliás, creio que o saldo musical estético da cultura da ditadura brasileira foi uma imensa onda kitsch que tomou as rádios do país, que amaciava uma modernização dura em sonhos fáceis de inserção no novo mundo do consumo de massa, a resposta capitalista à crise social redobrada do país. O único ator cultural que pagou o preço do apoio aberto à ditadura brasileira, e talvez o único agente, cultural, da ditadura que foi punido, foi o negro pobre, de ascensão meteórica à nova riqueza da incipiente indústria cultura local, Wilson Simonal. E sempre me causou estranheza que Simonal tenha sido cobrado até o fim da vida e que Jorge Ben, que fez as canções pró-ditadura de Simonal, tenha sido considerado pela crítica cultural um modelo de modernização a favor da classe pobre brasileira, um gênio dos novos tempos de negritude e alegria ritmada de mercado… Os pactos culturais de sustentação da modernização conservadora são um dos segredos mais bem guardados da ditadura militar brasileira de 1964.

Sibila: Como o senhor avalia o fato de Fleury ter tido como amante, de 1977 a 1979, Eleonora Rodrigues, irmã de Raimundo Pereira (jornais Opinião e Movimento)? Essa promiscuidade percorre até hoje a sociedade e a cultura brasileiras?

Tales: A promiscuidade entre o poder e as esferas críticas, o rebaixamento das expectativas sociais e culturais por servilismo e amor conservador pelo poder é uma constante sociológica brasileira. Ela tem origem na mínima classe de homens livres que necessitava se agregar aos senhores da riqueza e da acumulação absoluta no Brasil Império, homens livres agregados que viviam sobre todos os aspectos em um regime de favor dos grandes senhores da renda nacional, e que buscavam com todas as forças negar e se diferenciar do povo, então de fato a massas de trabalhadores escravos. Hoje, passados 130 anos do fim do Império escravocrata do Brasil, a condição pós-moderna do pacto geral pelo consumo e pelo mercado criou uma nova região simbólica e pública, a do amor geral à mercadoria e sua escala geral de fetichismo, para o encontro promiscuo dos senhores do país da maior acumulação de renda, e os cidadãos degradados da má vida brasileira, mas todos iguais e pactados no desejode consumo. É a nova promiscuidade de mercado brasileira, que simula uma integração nunca realizada, integração subjetiva no consumo.

Sibila: Paris e Londres eram as referências gerais. Uma parte dos intelectuais seguia Paris (campo socialista) e outra, Londres (“pós-política”, música, sexo livre e marijuana, marcada pela contracultura, “subversiva” aos olhos dos militares). Parece que, ao longo do tempo, a linha londrina prevaleceu na cultura brasileira. O senhor concorda? Isso tem relação com 1964?

Tales: A partir dos anos de 1960, o campo crítico ocidental sofreu um imenso abalo e um desdobramento de perspectivas e consequências. As tradicionais questões de justiça social envolvendo a cisão de trabalho, renda e cultura, próprias da modernidade, e a crítica às estruturas de poder que fundamentavam a sociedade de classes, ganhou um novo campo, paralelo, de demandas sociais diferenciadas, que podia ou não se articular à crítica geral das estruturas de poder que envolviam a economia política. Era o universo novo das formas de experimentação contraculturais, das demandas identitárias, das lutas antirracismo, feministas, pró-direitos LBGT, multiculturalistas. Há uma verdadeira explosão do campo cultural e das demandas emancipatórias ligadas ao corpo e ao cultivo de si mesmo – no auge da universalização da “aldeia global” da televisão via satélite – em uma esfera de práticas culturais ambíguas em relação ao campo do mercado e ao desejo de desmobilização da dinâmica envenenada da sociedade de classes, mais própria da modernidade. O mundo do engajamento político moderno, marxista, sartreano, foi desdobrado no mundo das figuras contraculturais, do direito do reconhecimento das diferenças, de uma nova política do corpo e micropolítica da vida, já pós-moderno. O Brasil pré-1964 estava engajado no campo da crítica terceiro-mundista aos processos globais, então ditos imperialistas, de concentração de capital, exploração periférica, atraso de situações nacionais pós-coloniais, e crítica às formas desiguais globais de reprodução das sociedades de classe centrais. O engajamento nacional desenvolvimentista, terceiro-mundista, era de tipo sartreano, marxista dialético, e envolvia a formação crítica de uma juventude formada pela arte moderna, e seu constante exercício negativo, local e internacional. Não por acaso, após visitarem Cuba em 1962, Sartre e Simone de Beauvoir vieram ao Brasil. O Cinema Novo, por exemplo, que alcançou seu máximo e seu fim em 1964, era simultaneamente cinema de busca estética particular, mas moderna, formação de experiência reflexiva nacional e crítica, e engajamento real no processo agudo do tempo da luta pelas reformas de base, a transformação social atrasada e necessária do país. E era inteiramente realizado por jovens. Caetano Veloso, o herói maior de nossa contracultura tropical, também conhecida como o “desbunde” a partir dos anos 1970, comentou com perspicácia em sua autobiografia o fato de nossa contracultura só ter emergido no Brasil no período mais extremo da ditadura militar. Porque originalmente, no pós-guerra, a contracultura política periférica, que engajava os jovens de um país como o Brasil, era a crítica ao Imperialismo internacional, visando processos de integração nacional de matiz socialista. Essa grande guinada para o cultural e para uma espécie de novo narcisismo político do pensamento crítico, que abandonou a crítica do poder duro para se concentrar na esfera dos costumes, que substituiu a crítica ao Estado e ao Capital pela crítica aos país, ao machismo, à homofobia etc., foi de fato um movimento global, que em Londres, em 1967, já se expressava como fusão do pop de mercado de massas com o indivíduo em busca de si mesmo e em Paris ainda conheceu a primavera política do maio de 1968, antes de tomar o mesmo rumo. E, interessantemente e nada por acaso, uma terceira leva de artistas marginais brasileiros, com Hélio Oiticica na proa, ainda buscou um outro destino, já bastante significativo, para seu exílio e grandes aspirações globais: Nova York.

Julio Plaza, 1974
Julio Plaza, 1974

Sibila: Como o senhor vê o rebaixamento cultural brasileiro de hoje? Ele tem causas em 1964? Ou na civilização global do espetáculo, na qual o entretenimento substituiu a cultura em si, na qual a arte se tornou uma arte simplificada e sem referências que perturbem sua recepção?

Tales: Penso que o rebaixamento cultural é o resultado lógico, e desejado, do movimento total de tomada das consciências, e da vida prática dos cidadãos, pela vida mais cotidiana da lógica da mercadoria. Em uma cultura a) historicamente iletrada, b) autoritária por tradição de formação nacional, c) com grandes déficits de acesso a bens de consumo, duráveis ou não, d) dados pela imensa exploração e pela baixíssima renda relativa da classe trabalhadora e dos pobres, e) com deslumbramento crônico de uma elite irresponsável que tem nos modelos americanos e europeus de riqueza e consumo conspícuo a sua medida civilizatória mais verdadeira para o próprio país socialmente ruinoso, a vida para o consumo das formas mais simples de existência e de imagens da cultura mais comezinhas, ligadas diretamente à mercadoria e sua circulação de massa, é a prática social e simbólica suficiente do país, liquidando-se deste modo a necessidade social de cultura exigente, trabalhada ou crítica. Este amor brasileiro mais direto e concreto pelas coisas articulou-se perfeitamente bem à liquidação da cultura letrada, humanista ou crítica, realizada pelo próprio desenvolvimento técnico dos meios de circulação e produção de imagens e textos, a escalada histórica representada pelo rádio, pela televisão e pela internet, que em pouco mais de setenta anos passaram a definir inteiramente as dimensões e as práticas da cultura real, agora uma cultura globalizada. Educação no Brasil, como sabemos, é meramente instrumental, diz respeito a aumentar a renda e a capacidade de consumo, e não a exigência cultural, estética ou crítica. O governo tucano dos anos de 1990 traduziu este movimento mais geral em elitismo deslumbrado do acesso dos ricos às benesses internacionais do mercado e do mercado de luxo, com o real valendo 1 dólar na fantasia de seus economistas. O petista, dos anos 2000, introduziu uma massa de pobres no baixo crédito, e na esmola pública, para a busca do santo graal do carro financiado, e sua propaganda e texto simbólico universal, o celular, e sua propaganda, o shopping, e sua propaganda… Criou-se uma cultura generalizada, de pobres e ricos, de consumidores de vinho e cerveja, de pacotes de turismo de massa, de alavancagem no crédito para o máximo consumo de bens possível. Este movimento em pinça de ricos e pobres pelo consumo e seu espetáculo, como é evidente e facilmente comprovável, não implica a leitura a exigência estética e a checagem pela cultura da vida social. Nenhum valor crítico, ou mesmo de prática, modernos de formação e de uso estético e político da cultura está em jogo no mundo que herdamos de nossa ditadura pró-capitalista, mais a nossa democracia pró-capitalista. A cultura é, de fato, prática de distinção de grupos mínimos de elite, que apenas garantem a sua superioridade imaginária, de resto impotente, em um mundo que o consumo e sua fantasmagoria cultural é tudo, e aí todos estão satisfeitos. Isso quando não se trata de imensa mistificação de massa das feiras e exposições block busters, espaços em que indústria cultural, entretenimento e capital cultural se encontram para explorar as velhas imagens da cultura.

Sibila: Aprofundando a questão anterior, por que parece não haver mais condições para uma arte crítica no Brasil? Trata-se do fim das utopias, da globalização, do consumismo, do narcisismo “Facebook”, em suma, do “espírito da época”, incluindo certa “demissão da crítica”, em grande parte mercadologizada, como, aliás, a própria mídia, ou o modelo social e econômico brasileiro é parte necessária da resposta, de que o atrasado modelo “agrário”, isto é, agroexportador, é exemplo e talvez parte implicada?

Tales: O Brasil abriu mão estrategicamente de ser um país produtor forte de ciência e de conhecimento. Ele vive de vender, em escala global, soja, ferro, laranja… ou seja, uma produção primária, movida por fazendeiros globais, que se tornou commodity bastante significativa no mundo das trocas de hoje. De algum modo, o país ainda pega sua riqueza da terra que tudo dá, como um dia o fez com Pau Brasil, cana, ouro, café… O atraso do desenvolvimento de um capital criativo no país, articulado à ciência e à universidade de ponta, talvez seja um dos resultados do déficit de democracia e das opções autoritárias e burras da ditadura de 1964, que demonizava a universidade, polo crítico por excelência, e não previa uma expansão de renda e de mercado interno. É importante lembrar que a ditadura burra de 1964 liquidou a mais importante experiência universitária da época, justamente a da Universidade de Brasília, de Darcy Ribeiro. Nossa real crise de expressão cultural reflete um país que abriu mão, dirigido por filisteus culturais, de produzir sentido sobre a própria experiência, sentido estético, sentido crítico. Por outro lado, temos sempre exemplos de todas as práticas de civilização entre nós – mais ou menos como Lévi-Strauss anotou nos anos 1930 – alguma boa MPB – insisto em Romulo Fróes – alguma arte plástica, tentando se tornar satélite da escala global de negócios do mercado hiper acumulado das artes mundiais, que falsifica tudo; algum cinema excitante – principalmente dos cineastas de Pernambuco, mas também de alguns jovens interessantes de São Paulo – algum teatro e movimento ao redor, alguma literatura espinhosa, alguma poesia com certa força… Mas nada disso consegue articular um sistema de autopercepção cultural do próprio país, cindido nas experiências radicais sem contato de suas classes, siderado pela cultura geral do consumo, e que só se encontra na mediação universal da grande indústria cultural, ainda a novela de televisão e o nosso sofrível futebol. O jornalismo cultural expressa com perfeição em sua irrelevância e inconsequência crônicas tal estado de inanição cultural, em meio a uma vida cultural real. Mas creio que o principal ponto de encontro da consciência de todas as classes é de fato a multiplicação da propaganda das coisas, o texto e o imaginário, a fantasmagoria, dizia Benjamin, da vida geral da mercadoria entre nós. Este é o texto que preenche a cultura, e a blinda para alguma experiência exigente da cultura.

Mané Garrincha, vestindo a camisa do Botafogo
Mané Garrincha, vestindo a camisa do Botafogo

Sibila: Por que não há políticas públicas para a cultura no Brasil? Por que a cultura é tratada como evento? Por que tantos eventos culturais vazios no Brasil? Por que tanta festa literária e tão pouca literatura relevante?

Tales: As festas literárias são modos de traduzir a experiência da literatura na forma de enquadre, divulgação e circulação, abstratos mais próprios das mercadorias e de suas imagens. São espécies de shoppings, construídos para fazer circular livros como “imagens de livros” e para fazer autores se apresentaram, por meia hora, como estrelas de televisão, como “imagens de autores”. Elas são a tradução do livro em imagens do livro e dos autores em imagens de si mesmo. Ajudam a indústria falimentar a vender um pouquinho, valorizando o marketing de massa, com o apoio cultural da Globo, o que alimenta mais o modo de ser do consumo do que a vida do espírito, para atingir, em falso, leitores em potencial. São festas de turismo e de cultura da felicidade, pois fantasiam, contra todas as evidencias concretas, que lá, em três dias de passeio em Paraty, a cultura se tornou plena e realizada. Talvez esta prática festiva, e de mercado, não implique a experiência verdadeira, estrangeira, atritosa, por vezes negativa, que demanda autonomia, julgamento e repertório e que intervém na vida do espírito, que é a da leitura. Nesta mesma linha de problemas, existe política pública de cultura no Brasil, que transfere renda pública via isenção de impostos para a produção cultural. Em geral é o mundo da cultura mainstream derivada da televisão e em contato com ela que recebe esta massa de dinheiro. Não há nenhuma política pública de valorização de leitura, modo barato e silencioso de criar sujeitos algo livres da compulsão por consumir. Por que isto seria valorizado em um país que quer apenas aumentar o número de felizes consumidores e o PIB, entendido como circulação de bens e serviços e exibição cultural do dinheiro, e nada mais?

Sibila: João Cabral, em duas conferências famosas, de 1952 e 1954, já discorria sobre o problema do fatal (mais uma vez) distanciamento moderno do público de poesia. As coisas pioraram ou melhoraram, paradoxalmente, durante o regime militar? Alguns poemas de A rosa do povo, de Drummond (1944), ou “A rosa de Hiroshima” de Vinicius (1954), e livros como Poema sujo de Gullar, tiveram então certa popularidade, pela temática politizada, e parecem ter conseguido manter a poesia dentro de um contexto de certa efervescência político-cultural reativa, que incluía o teatro (Arena, Opinião etc.), a música popular e mesmo a prosa, como no caso das coletâneas de contos brutalista s de Rubem Fonseca dos anos 1970. Se houve melhora ou piora em relação à situação descrita por Cabral nos anos 1950, ou melhora pontual e piora geral, e outras variações, estas se amenizaram ou se acentuaram com a redemocratização à brasileira? [A resposta a esta pergunta esta contida na seguinte]

Sibila: À época do golpe militar, o mercado editorial brasileiro era bastante apequenado. Os números de novos títulos, de traduções, de leitores etc. eram mínimos, incluindo a esfera acadêmica. Além disso, serviam a uma pequena intelligentsia de escritores, críticos e intelectuais. Não havia nem um público de massa nem um público médio de literatura “média”, de mercado. Hoje este público está em formação e, segundo os otimistas, em ascensão, mas em detrimento daquela intelligentsia, minguada em sua influência e mesmo em sua existência, substituída pelos algo fantasmáticos “formadores de opinião”. O senhor concorda com esta avaliação, que parece seguir certo modelo brasileiro de ganhar por perdas?

Tales: A ascensão de um público leitor de qualidade é mínima. Os livros best-seller de literatura brasileira qualificada, não vou entrar aqui no mérito, não ultrapassam tiragens de 5 mil exemplares. É comum tiragens de 1500 exemplares não se esgotarem entre nós. Creio que no tempo de Machado de Assis os números não eram muito diferentes. Mas o processo da literatura era infinitamente mais relevante. Temos uma literatura e experiência social literária residuais se comparadas com qualquer número que envolva a indústria de massas, incluindo aí toda a cultura de massas televisionada ou circulando, como cultura da fofoca e do fascínio pelas coisas, pela internet. Além disto, cultura ativa e exigente não se mede por quantidade de leitores, mas pelo efeito social real e de checagem da vida pública que produz. A geração de Drummond e de Cabral conseguiu muito mais, e a força da cultura moderna brasileira, e sua exigência de modernização social do país, esteve por trás da crise que rachou o país em 1964. Não há mais nenhum horizonte semelhante para a cultura em nosso mundo. Entre nós apenas dois filmes sobre o tráfico de drogas, as favelas e a crise da polícia carioca, um certo núcleo duro da vida e da crise do país, chegaram a ter efeito global e real na cultura dos últimos tempos. A tentativa histórica importante da editora Hedra, por exemplo, de produzir livros que não fossem caros, de bolso para a circulação em grandes quantidades, de alta literatura ocidental, deu mais ou menos em nada, sendo recusado pela elite elegante viciada em livros de luxo, e pelas livrarias que preferem vender um livro chique da Cosac Naify e 5 mil padres Marcelos, do que centenas de livros baratos de qualidade. Esse movimento editorial real e seu impasse deveriam ser estudados, nele está oculta a verdade cultural do Brasil. O resto é vida literária fantasmática, e feliz, jogos de cena de grupos autorreferidos, cultura morto-viva de departamento, ação entre amigos e cultura como medida autoprotetora de elites impotentes diante da verdade das coisas de seu próprio mundo. Temos uma elite endinheirada que dispensa amplamente os problemas da cultura, e uma vida popular que praticamente não lê, e está satisfeita com a produção industrial para o espírito que lhe é dedicada.

tales4Sibila: A literatura brasileira, hoje, cresce por diluição, em mais de um sentido, em meio a um mercado polimorfo e à convivência com a internet, seja no caso da publicação em e-books ou da reedição eletrônica e dos downloads, seja no caso de criações originais feitas na rede e para a rede, que podem ou não vir a ser publicadas em livro. Ao mesmo tempo, o mercado editorial em si também cresce, ainda que manco, pois centrado e concentrado em modismos mercadológico-literários. Mesmo a poesia encontra, apesar de muito pontualmente, espaços passageiros de grande presença, de que é exemplo a recente publicação da obra poética completa de Paulo Leminski, que se tornou um best-seller. Como pode, se pode, a literatura contemporânea voltar a ter alguma influência cultural? Neste caso, o período do regime militar ficará na história como seu último momento de presença forte, apesar de tudo?

Tales: Gostei da formulação “a literatura brasileira, hoje, cresce por diluição”. Cresce por aproximar-se perigosamente do campo geral do entretenimento, do cultivo do mínimo, da cultura do conformismo, feliz, do mercado geral que se tornou a vida. Os próprios homens de cultura, diferentemente de mundo de um Paulo Leminski, não aspiram a uma vida diferente da massa geral de consumo, de distinção e de pequenos luxos e gozos dos bem postos, os pequenos privilégios hedonistas de classe média. Como todos os demais, querem casa na praia, viagem de turismo para Nova York e cultura do vinho nos trópicos. A imensa babel da internet, com muita grita fascista e grosseria marcada pela mais contundente imediatez, ainda não ofereceu perspectiva melhor ao processo geral de diluição, não apenas da literatura, mas das formas culturais em geral. Mas, certamente, a oscilação constante, simples, mas envenenada, da imagem na tela do computador preenche o espírito e o dia de quem não lê. A literatura brasileira, bem como toda a cultura, foi rica no período do regime militar porque herdou a grande força e legitimidade de três gerações de fortes aspirações modernistas, cujo horizonte exigente era nada menos do que a integração cultural e social do país, e, como sabemos desde um célebre ensaio de Roberto Schwarz, foi essa cultura exigente moderna ainda alavancada que representou a mais forte resistência não armada à ditadura militar, de modo que o campo cultural explorou fortemente as contradições do processo, chegando a formas elevadas no cinema, nas artes plásticas e na música popular jamais vistas, e, por exemplo, figurando no fundo do espírito da marcha dos 100 mil, em 1968, um dos disparadores do golpe dentro do golpe, do fascismo escancarado do AI-5. Foi necessário então à ditadura atingir a cultura, e cortar o seu processo de transmissão histórica, para implementar plenamente o mundo que vivemos, do pleno mercado em país sempre socialmente atrasado, no qual cultura passou a ser irrelevante gesto de congratulação para medalhinhas e medalhões de todos os portes, pelo privilégio absurdo de apenas lerem um livro.

Sibila: Se as mentalidades são mesmo prisões de longa duração, podemos afirmar que há uma característica histórica permanente na mentalidade brasileira? Qual?

Tales: País atrasado, cindido, com elites basbaques tentando apenas atualizar a sua experiência com o andamento do dinheiro global, visando o dinheiro e sua representação de mercado, e não a conquista, que custa caro e vai contra a acumulação, de um país socialmente desenvolvido. Penso que esta é a nossa prisão de longa duração.

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 Sobre Tales Ab´Sáber

É professor de filosofia da psicanálise no Curso de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É formado em cinema pela Escola de Comunicações e Artes da USP, por onde é mestre em artes, e psicológo pelo Instituto de Psicologia da USP, onde defendeu doutorado sobre clínica psicanalítica contemporânea. Em 2005 recebeu o Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Psicologia, Psicanálise e Educação com O sonhar restaurado - formas do Sonhar em Bion, Winnicott e Freud (Ed. 34). Publicou, em 2012,A música do tempo infinito, sobre cultura tecno e subjetivação contemporânea (Cosac Naify).