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Um século para a psicanálise

Palavras-chave: psicanálise, cultura contemporânea, século XX, resistência.

The paper deals with the social and cultural insertion of  psychoanalysis during the twentieth century and attempts to show the ambiguity of its position in the cultural environment. When alive and operating with its full therapeutic and transforming power, psychoanalysis necessarily originates resistance. Nevertheless, if  psychoanalysis diffusion in culture reveals the demand for psychic and social transformation,  it is,  at the same time,  one of the contemporary resistances to psychoanalysis.

Key words: psychoanalysis, contemporary culture, twentieth century, resistence.

 

Impossível contar a história interior e subjetiva desse século que se prepara para terminar sem incluir um capítulo sobre Freud e seus inúmeros e diferentes seguidores nos quatro cantos do mundo. Não apenas a psicanálise ocupou espaços significativos em campos mais ou menos especializados, principalmente nas áreas da saúde mental e educação, como muitas de suas idéias infiltraram-se nas produções literárias, artísticas, cinematográficas e televisivas e, ainda mais amplamente, nos planos dos modos, costumes, valores e ideais do Ocidente.  O próprio psicanalista veio a ocupar o lugar de personagem em novelas, filmes e romances.  Sua palavra começou a ser procurada pelos repórteres para que se “esclarecessem” variados episódios da vida social e política das nações. A maneira dos homens ocidentais pensarem sobre si mesmos, suas relações, sentimentos e projetos está bastante marcada  pelo legado do neurologista vienense. E mais: é quase certo, que além de influenciar as idéias que fazemos de nós mesmos e dos outros, os próprios afetos (desejos, receios, angústias) estejam sendo  transformados sob o impacto das noções psicanalíticas até no caso de quem nunca se deitou no divã.

Em um processo de difusão como o que ocorreu com a herança de Freud, é inevitável, vai se perdendo o rigor, a contundência e a complexa arquitetura dos conceitos, virtudes da teoria e da prática psicanalítica que precisam ser cotidianamente resgatados e reafirmados pelos profissionais e pelas associações cientificas em que eles se reúnem. No entanto,  seria tolo condenar a difusão ou procurar impedir que ressonâncias do pensamento psicanalítico venham a ser detectadas, mesmo que quase irreconhecíveis, nas regiões mais diversas e distantes dos seus centros de irradiação. E se a difusão pode prestar algum mau serviço à psicanálise, não o faz, fundamentalmente, pelo fato de transformar a teoria em meia dúzia de chavões.  Por outro lado, seria ingênuo acreditar que, dada sua ampla e penetrante ação no campo da cultura, a psicanálise tenha vencido a batalha contra as resistências às suas idéias e ensinamentos, reações negativas tão realçadas e mesmo valorizadas por Freud. A difusão da psicanálise não é incompatível com a resistência à psicanálise; ao contrário, uma certa vulgarização pode ser uma das formas de se resistir a ela. No entanto, o importante é que se saiba que a psicanálise mantém-se viva quando ainda é capaz de provocar resistências; ela morre (morte por diluição) quando obtém uma certa aceitação unânime e feliz.

O que tornou a psicanálise possível e necessária à sociedade contemporânea é a dificuldade de se enfrentar situações dramáticas  e conflitivas no plano interior das subjetividades. O século que se prepara para terminar não só proporcionou experiências de conflitos externos de uma magnitude inaudita – guerras totais, guerras de extermínio, genocídios programados cientificamente – como incentivou a interiorização dos conflitos. Isso não foi uma novidade absoluta. Toda a modernidade assistiu a um progressivo adensamento da vida subjetiva de indivíduos cada vez mais obrigados a recorrer ao foro íntimo para interpretar o mundo à sua volta e para decidir seu destino. Em acréscimo,  as referências morais (bom e mau, certo e errado),  estéticas (feio e bonito) etc, foram perdendo toda unanimidade consensual, foram se multiplicando, se contrapondo, se relativizando.  Fomos perdendo o pé e o chão de “certezas” indiscutíveis, o rumo predeterminado pelos antigos critérios e valores sociais e religiosos.  É esse terreno em que vivemos,  o terreno em que habitam indivíduos muito isolados, muito desamparados e sem referências coletivas e tradicionais,  indivíduos muito perdidos entre autoridades, exigências, demandas, valores, desejos e medos contraditórios,  confusos diante de tanta ambivalência. É nesse regime de vida que a criação e manutenção de uma mínima integridade psíquica se converteu em um problema central e urgente.

Diante desse problema dois caminhos se abrem: um implica em recalcar  (reprimir) certas tendências afetivas, impedir que elas se alojem na consciência, “optar” por um certa ignorância de si mesmo para poder se adequar mal ou bem ao que a vida em sociedade parece exigir. A parte reprimida  (o inconsciente recalcado) continuará viva, contudo, expressando-se através de sonhos e fantasias (o que pode ser bom), mas também produzindo sintomas incômodos e um estado difuso de insatisfação e mal estar. A outra linha de “defesa” é ainda mais  radical: para impedir que as  ambivalências venham a se constituir como elementos de um campo insuportável de conflito, entram em cena as cisões do tipo Dr. Jekyll e Mr. Hyde.  Partes dissociadas do indivíduo levam vidas mais ou menos paralelas, obedecendo a ditames incompatíveis. Além do senso de fragilidade, inconstância e  inconsistência a que a pessoa e seus relacionamentos ficam expostos, essa desintegração, se por um lado alivia a tensão dos conflitos, de outro coloca sempre o indivíduo “à beira de um ataque de nervos”, ou seja, a ponto de uma explosão (ou implosão) psicológica de alcance imprevisível.

Mesmo com o pesado ônus de se estar eternamente convivendo com sintomas incômodos, com um mal estar difuso ou  com o risco de explosões catastróficas (surtos de raiva, desespero ou terror – como na famosa “síndrome do pânico”), nada mais difícil do que procurar uma solução alternativa. Ora, é de soluções alternativas que se trata quando um psicanalista intervém.

Muitas forças atuam contra o projeto terapêutico  da psicanálise, projeto comprometido com  o combate às formas mais nocivas de repressão e cisão. Combater a ignorância de si auto-imposta ou as dissociações defensivas radicais e propiciar a construção de subjetividades mais aptas a entrar em contato com os “fatos da vida” em toda a sua extensão e complexidade   mobiliza o que há de mais obscuro e terrível dentro de cada um de nós e no campo da vida coletiva. Como veremos adiante, essas forças de resistência são capazes de recrutar nada menos que a própria psicanálise para se opor ao que uma prática psicanalítica deve sustentar.

Uma das provas de que a psicanálise está viva é a resistência que ela ainda é capaz de despertar. No entanto, cada vez mais os indivíduos precisam dela para uma  pequena mas indispensável compreensão das dores, aflições e perplexidades do dia a dia. Daí a inevitável difusão da psicanálise pela cultura.  Ela funciona  ajudando a “mapear” (Sérvulo Figueira) um território existencial novo e repleto de ambigüidades. Essa difusão, porém, move-se na direção oposta à da teoria e da clínica psicanalítica. A “psicanálise difundida” responde à demanda por um certo enquadre capaz de  manter as repressões e cisões operando – as defesas em ação – com o disfarce de que estão sendo reconhecidas e superadas.  Ou seja, a psicanálise torna-se muito visível  no plano social ao se tornar quase inoperante como prática transformadora. É como a localização da “carta roubada” do conto de Poe, difícil de encontrar justamente porque deixada no lugar mais visível. O  recalcamento tanto mais oculta quanto mais  coloca o “segredo” diante dos olhos.

Enquanto isso, na sua verdadeira eficácia terapêutica a psicanálise fica restrita a ambientes bastante isolados (nossos consultórios) aonde se torna alvo de muitos ataques. Cabe-lhe aí, entre outras, a acusação de elitismo, que não é de todo infundada. No entanto, quando os psicanalistas tentam escapar desses ambientes exclusivos e partem para uma ação social mais ampla (no seio das instituições e coletividades), é aí mesmo que as resistências à psicanálise aparecem com a máxima força.

Em outras palavras, ela própria convive com o risco de ser vítima dos processos de repressão e dissociação que  tanto  a tornaram necessária quanto inconveniente. Mas, identificá-la como vítima das resistências, como vimos acima, não diz tudo a respeito da posição paradoxal da psicanálise na cultura: se ela deve ser compreendida principalmente como um instrumento de transformação radical das subjetividades, por outro lado, no bojo de seu processo de difusão social, ela também joga no time contrário, no time da conservação das condições da vida moderna e de suas repercussões subjetivas nos termos das cisões e recalques acima mencionados. Nesse sentido, ela contribui, involuntariamente (mas com a participação ativa de muitos psicanalistas), para uma “maquiagem” da existência tão a gosto das operações de defesa psíquica contra as dores da vida.

Cria-se então um paradoxo que resume a ambivalência do século diante dos seus próprios problemas, o paradoxo da pertinente impertinência e da impertinente pertinência da psicanálise no século XX.

Um século para a centenária psicanálise, no mais rico e polissêmico sentido da expressão. Nada indica que o próximo vá ser diferente…

 


Uma versão um pouco menor deste artigo foi publicada no Correio Brasiliense de31/12/99.