Em uma cena do documentário A história do jazz, de Ken Burns, Duke Ellington, ao ser indagado pelo entrevistador sobre a questão de onde, de que lugar insondável tirava as ideias para suas composições, responde que é assediado por uma infinidade de sonhos: portanto, o que ele mais faz é sonhar, o tempo todo. O crítico e jornalista, sentado em sua poltrona, reage como se desse um xeque e, com uma ponta de ironia, retruca: “Mas eu sempre pensei que você tocasse piano…”. Duke Ellington, “desguiando” e encerrando a partida virtual com um mate, responde: “Isto não é piano, é sonhar, ouça…”. Nesse momento, Duke, até então encostado preguiçosamente no instrumento, mão no rosto, posiciona-se e começa a executar uma harmonia, mas faz isso como se apresentasse uma argumentação irretorquível; depois, enquanto seus dedos desenham um acorde, olha para o contrabaixista, e ambos sabem o que está acontecendo. Por fim, Duke Ellington se volta para o especialista em jazz e diz: “Isto é sonhar”.
Esse pequeno episódio, com seu “argumento” em forma de performance notadamente não verbal, parece perfeito para uma abordagem do álbum Ou não (1973), de Walter Franco, que comemora seu quadragésimo aniversário de lançamento.
Aquilo que para Walter Franco, com relação à sua expressividade musical, terá sido sonhar – a materialização de suas composições como uma espécie de determinação significante de um imaginário a ser dividido com o público –, do ponto de vista de algumas camadas de recepção, converteu-se em uma forma de pesadelo. Isto tem alguma analogia com a proverbial dificuldade que o público médio tem em relação à música erudita contemporânea ou, de resto, com a música instrumental. Para o ouvinte-tipo dessa faixa recepcional, a chamada música erudita contemporânea – por força de sua autorreflexividade, seus indicativos dodecafônicos, atonais e eletrônicos –, soa como um pesadelo relativamente ao sonho com que, do seu lado, a música popular é fruída pela maioria, cujo interesse é o entretenimento e não a ilustração musical.
Em outra analogia possível, o sonho musical de Walter Franco talvez tenha algo a ver com o sonho poético-visual de Arthur Bispo do Rosário. Walter Franco não deixa de ser uma espécie de ativista de certo irracionalismo aplicado à estética musical. Suspeito mesmo que, à maneira de Rosário, Walter Franco resista a se deixar apanhar como um artista, no sentido de que teria autoridade exaustiva sobre suas obras, isto é, que seria um produtor desassombrado de objetos “artefeitos”. Bispo do Rosário dizia que seus mantos não eram arte, mas coisas sagradas, cuja realização tinha a ver com uma missão divina. Para ele não havia espaço para uma explicação, digamos, secular de sua tarefa criadora, que pressupunha uma pureza inventiva ex nihilo. De certo modo, a música de Walter Franco está comprometida com a proposição de uma transcendência, cujo pano de fundo é um ecumenismo místico votado à iluminação.
A esse respeito, diz uma de suas letras: “saiba de tudo/ fique calada/ me deixe mudo / seja num canto / seja no centro/ fique por fora/ fique por dentro / seja o avesso / seja a metade/ sinta o começo / fique à vontade / não me pergunte / não me responda”. Numa espécie de transposição da noção do não verbal, deparamos com a tópica da “mente quieta” ou vazia de pensamentos como pressuposto para que a meditação faculte ao sujeito a perspectiva do autoconhecimento. Essa tópica se presentifica tanto no emprego do verbo ser (consagrado filosofema) como na escolha do tempo verbal imperativo afirmativo que rege outros verbos: seja o avesso, seja a metade, fique à vontade. Outros verbos usados na letra apontam para a deriva epistêmica de Walter Franco: “saiba de tudo / fique calada”; “sinta o começo”; por fim, lançando mão da forma negativa do imperativo, o compositor canta “não me pergunte / não me responda”. Com suas acepções que indicam às vezes a certeza de algo ou de uma realidade, outras, uma ordem ou sugestão, de resto, o imperativo afirmativo está presente no verso-síntese “eu quero que este afeto saia já”, misto de divisa, slogan, anáfora e estribilho, que aflora e se dissipa entre uma faixa e outra ao longo de todo o álbum.
A linguagem de Ou não tem a ver com certa “liberdade informalista”. Cada canção apresenta um conjunto de procedimentos através dos quais um objeto estético consegue produzir um desvio das normas estatísticas de sua linguagem. Walter Franco opera em uma faixa expressiva que abole os elementos automatizados da linguagem musical. O compositor tem consciência de que esses processos da cultura pop não chamam atenção para si; simplesmente comunicam, levam uma espécie de mensagem rebaixada ao ouvinte médio. Os elementos automatizados da música pop ocorrem com probabilidade muito alta: portanto, são redundantes e, afinal, cosméticos. Walter Franco experimenta outras chances de informação nova, ao instaurar em sua música signos-limite que, em termos estatísticos, indicam uma baixa taxa de ocorrência de elementos redundantes, ressaltando a função poética e o estranhamento contidos em sua música.
Referências, senhas irônicas em Ou não: a mosca que, a um só tempo, serve tanto de ícone como de símbolo trocadilhesco, estampada na capa alva do álbum, alude ao clássico dos Beatles, e funciona como paratexto ou ruído semiótico. Walter Franco fez teatro durante um bom tempo: quase todas as faixas figuram como verdadeiros monólogos teatrais, pois o músico coloca em movimento, ou em cena, a cada interpretação, um protopersonagem; pode-se comparar suas performances a materializações de vozes dramáticas.
Algo dos ritmos e da música latino-amaricana subjaz a uma vaga lembrança dos Rolling Stones na primeira faixa de Ou não, mas, nesta observação, deixo em aberto a possibilidade de refazê-la em sentido contrário. O certo é que causa um grande prazer ouvir as duas coisas numa tensão singular.
Em todo caso, consoante o que procurei esboçar como o gesto informalista ou intuitivo do compositor (que permanece o tempo todo rente ao errar do sonho ou de sua “lógica”), cabe observar que a execução do violão de Walter Franco é suficiente para os propósitos musicais que procura e, na verdade, não quer achar. As harmonias e as melodias de Walter Franco são simples: por isso, apesar da referência aos Beatles – que, a rigor, não é senão uma citação paródica –, já apontada na analogia visual entre as duas capas, a pegada assumidamente dos Stones acaba por ser mais eficiente como medida de comparação.
A estética do precário assumida por Walter Franco em Ou não leva-o a andar rente às instâncias “não comunicantes”, tanto no que diz respeito à sua performance vocal quanto aos recursos eletrônicos e acústicos de que se serve para definir os arranjos de suas canções. Repetições incansáveis de sintagmas, sua interpretação vagido rente ao gutural, ecos, gravações sobre gravações, reprodutibilidade e redundância entrópicas que, no extremo, convertem-se em imprevisibilidade: “o raciocínio lento / o poço [o] pensamento / o olho [o] orifício / o passo [o] precipício / eu quero que esse teto caia / eu quero que esse afeto saia, já / o vermelho natural / no rosto e no lençol / com gosto de água e sal / misturando o bem e o mal”; “o rádio o tédio a canção / no asfalto no alto falante / o passo lento”.
Em alguns momentos, seu canto se converte numa sequência de “engasgos”, e as palavras se esfacelam por completo. O canto de Walter Franco parece atualizar o “abolido bibelô de inanição sonora” sugerido no verso de Mallarmé. Essa quase afasia, enquanto metáfora de uma determinação de linguagem que recusa qualquer responsabilidade pelo significado último, conecta-se com a concepção de Barthes segundo a qual a moral social exige do artista “uma fidelidade aos conteúdos, enquanto ele só conhece uma fidelidade às formas”. A lição da “inanição sonora” requer do ouvinte-fruidor a aceitação do fracasso, pois para Walter Franco sua música, tal como a capacidade de sonhar, ameaça significar uma série de coisas, mas, a rigor, significa afinal uma ameaça ao significado.
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