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A dialética do canto e das palavras

Entrevista de Pèire Bec (Pierre Bec) a Antoni Rossell

A seguir uma entrevista com Pèire Bec ou Pierre Bec, um dos maiores especialistas em poesia trovadoresca das últimas décadas, oportuna pelo fato de Bob Dylan acabar de receber o prêmio Nobel de literatura, reacendendo-se, em consequencia, toda uma discussão sobre a poesia trovadoresca e sua complexidade, sobre a alta e a baixa cultura e suas fronteiras agora também no século XXI. E, igualmente, sobre as origens da própria poesia e o debate sobre a qualidade das obras dos dos poetas-músicos. Bob Dylan faz parte de uma geração, a meu ver única, única, a dos anos 1960, que reinventou a figura do poeta bardo, como observa o professor Crhistopher Lebold, da Universidade de Strasburgo. Lebold lembra de uma definição dada por outro poeta-músico acerca de Dylan: “Ele é o Picasso da canção”.

Pierre Bec, escritor e músico, nascido em 1921 e morto em 2014, não trata diretamente de Dylan, nesta conversa realizada exatamente em 2014 por Antoni Rossell. Mas da complexidade da poesia trovadoresca e suas nuances. Da dialética entre palavras e música.  Da idade Média aos dias de hoje.

De origem gascona, Bec passou a infância na região francesa de Comminges, onde aprendeu o ocitano. Sem os estudos secundários  completos, começou a trabalhar como intérprete para os refugiados da Guerra cicil espanhola. No começo da Segunda Guerra Mundial foi deportado para a Alemanha, de onde volta no ano de 1945, para se licenciar em língua alemã e italiana. Doutorou-se em Paris no 1959.

Publicou a sua tese Les Interférences linguistiques entre gascon et languedocien dans les parlers du Comminges et du Couserans em 1968 e, em seguida, um livro de divulgação importante para  filologia e dialectologia ocitana: Manuel pratique d’occitan moderne em 1973.

Foi  o primeiro linguista a padronizar, em termos científicos, o ocitan (occitan larg), em princípios dos anos 1970. Depois de décadas de docência na capital francesa, transladou-se a Poitiers, onde lecionou, na Universidade, até 1989.

É considerado um dos principais especialistas na dialectologia ocitana e na literatura ocitana medieval. Foi ativo também na ação política ocitanista, na investigação filológica e na criação literária, escrevendo poemas, contos e novelas, em língua ocitana. Colaborou com publicações como Cahiers de Civilisation Médiévale , Revue de Linguistique RomaneEstudis Romànics, ‘Òc e muitas outras. Régis Bonvicino

 

Antoni Rossell: De acordo com sua experiência filológica e musicológica, até que ponto o que se canta hoje da música medieval se parece com aquela que se cantava na Idade Média?

Pèire Bec: Limitarei minha resposta à dicção cantada da lírica medieval – coisa que, por sinal, já é algo complicado: tudo depende de quem canta. Há interpretações que tentam “medievalizar” de forma séria; outras já não. Não vou citar ninguém, mas – digamos – há interpretações que fazem um esforço de reconstrução, uma tentativa de recordar o que pode ter sido a música medieval, mas é uma aposta obviamente difícil, uma vez que não sabemos grande coisa de como cantavam as gentes da Idade Média. Então, o que se faz hoje? Ou se cantam os trovadores em bel canto, com uma voz trabalhada, ou se cantam com voz “popular” (leia-se populista), ou pelo menos como se acha que ela é. Mas isso também não funciona, pois não se deve esquecer que a lírica dos trovadores é uma lírica sábia e aristocrática, e não popular, tanto pelo texto, quanto pela música.

O segundo problema é epistemológico: deve-se tentar reconstituir, valendo-se de meios científicos sérios, a pronúncia e a música tais como eram na Idade Média, ou deve-se – ao contrário – tentar passar a ouvintes do século uma música que não é a deles? Acredito que este é o problema que se coloca aos intérpretes, a escolha entre essas duas atitudes, ou mesmo uma atitude entre as duas.

 

AR: O que o senhor pensa da interpretação das músicas monódicas trovadorescas com muitos instrumentos? Para o senhor que estudou os instrumentos medievais, qual é o acompanhamento que considera o mais arqueológico?

PB: O mais arqueológico e o mais estético, no meu entender, é um acompanhamento discreto com um único instrumento. Seja um alaúde, seja uma viola, mas a melhor é uma viola com arco. Isso porque na dialética do canto e das palavras, são elas que têm o papel mais importante. Seria preciso, em princípio e idealmente, que o texto fosse compreendido. Mas é preciso também ter em conta a diferença entre os gêneros e os poetas. Tomemos, por exemplo, um poema de Bernat de Ventadorn, um poeta do “trobar lèu” – temos um texto de acesso fácil sobre uma música em geral bastante elaborada, muito sofisticada, muito melismática, logo – difícil de ser interpretada.

Reciprocamente, se tomarmos a sextina de Arnaud Daniel, um poeta do “trobar ric”, temos sobre um texto difícil, muito elaborado, uma melodia relativamente simples, e silábica. Vemos, portanto, que a música e sua interpretação podem esposar a repartição dos gêneros. Mas – de uma maneira geral – eu sou contra o acompanhamento pluridimensional com todo um ruído de instrumentos (veja-se, um piano!) como já tive ocasião de ouvir.

Eliane Bec: A harpa?

PB: A harpa pode convir, também: é um instrumento discreto.

 

AR: O senhor com certeza estudou a viola também, pois estou vendo que o senhor tem um livro sobre a viola. Seria ela o instrumento de acompanhamento do cantar cortês?

PB: Bem, aqui há um problema a resolver: será que os trovadores acompanhavam a si próprios ou não? Temos alguns exemplos de trovadores que tocavam a viola; temos pelo menos três exemplos de miniaturas onde se pode ver o trovador em posição de performance instrumental: tocar a viola. Mas estaria ele acompanhando a si próprio ou não? Existia um prelúdio musical? Um interlúdio musical entre as estrofes? Nada se sabe a respeito. O que é interessante é que o verbo “cantar” pode ser aplicado a um instrumento. Há casos em que se vê o trovador começando por “cantar” a melodia sobre seu instrumento, antes de passar diretamente ao canto recitado. Existe uma quantidade de discussões a respeito, de hipóteses contraditórias. Mas existe mesmo um testemunho em latim que diz que, quando o cantor canta, o instrumento cala. Isso pode querer dizer que poderia haver uma alternância música canto-música-canto sobre a mesma melodia.[1] É verdade, também, que uma poesia tão elaborada como a dos trovadores devia se acomodar muito mal quando acompanhada por acompanhamento muito ruidoso, que podia ser um obstáculo à mensagem especificamente textual. Não estou, portanto, de acordo – conforme falei – com uma instrumentação de cinco ou seis instrumentos. Um é suficiente. Dois, no máximo.

Os trovadores de Dante

AR: Qual é a formação, a preparação que deve ter, hoje, um cantor de música medieval, ou seja, a música cortês?

PB: Diria que é uma formação múltipla, que corresponde, aliás, a meu próprio percurso. Eu vim da filologia, estudei primeiro os trovadores, depois passei rapidamente se não à música propriamente dita, ao menos à consciência de sua utilidade, se quisermos apanhar e amar a mensagem poética de forma completa, ou seja, em sua dupla face: texto e melodia. Sinto-me constrangido quando ouço que se continua a falar, na Universidade e em outros locais, da leitura dos trovadores como sendo uma poesia, que – tal a de Ronsard ou de Baudelaire – seria destinada apenas a ser lida… Concordo que não seja fortemente musical, mas considero necessário que se tenha ao menos certa “abertura” quanto à existência de uma melodia que acompanha formalmente um texto.

Mas então, e a formação de um cantor? Penso que, idealmente, um bom intérprete, além de suas qualidades óbvias de voz e de dicção, deveria ser também um pouco filólogo. Isso, para compreender bem o texto que ele interpreta, captar todas as nuances semânticas de suas componentes lexicais, na sintaxe, na prosódia e no gênero ao qual pertence. Claro que o conteúdo e o contexto históricos devem ser acrescentados a isso. É muita coisa, é verdade, mas ninguém impede de sonhar…

AR: O senhor colaborou com muitos grupos, aconselhando-os por ocasião das gravações. O que pode nos dizer sobre esse tipo de experiência? Enfim, o que esses grupos aproveitaram de suas informações?

PB: É verdade, tenho colaborado com um certo número de grupos, ao menos parcialmente, como conselheiro filológico e literário. Ajudei cantores, mas principalmente cantoras, como Brigitte Lesne e Barbara Thomson, que faz muita falta, do grupo “Sequentia”.

Com Barbara e seu companheiro Ben Bagby, preparamos, durante uma semana, na abadia de Royaumont, um disco sobre os trovadores de Dante. Ambos, excelentes cantores, com um único problema: a pronúncia americana. Isso não é uma queixa, mas, às vezes, representou certo problema. Em particular, certa nasalização que os americanos nem percebem que têm e que se torna desagradável quando se passa à língua dos trovadores.

 

Eliane Bec: Você fez mais de dois discos…

PB: Com Joël Cohen e Anne Azéma, efetivamente. Fiz três discos com eles, um sobre Bernat de Ventadorn e o outro sobre as Cantigas de Santa Maria, gravados no Marrocos (Fez). O acompanhamento era confiado a uma orquestra árabe-andaluz, com khanoun, rabab, ‘oud, e o texto parcialmente cantado por falantes árabes, portanto com suas inflexões verbais. É curioso, mas é uma experiência que Joel quis tentar e que foi apaixonante. Mas resta o problema da pronúncia do galego-português da Idade Média, que voltei a encontrar recentemente, por ocasião de um outro disco sobre essas mesmas Cantigas, sob a direção de Dominique Vellard, mas dessa vez, com cantores falantes do francês. O problema que surge (muito mais delicado que para o occitano medieval) é – com efeito –, geralmente o seguinte: que pronúncia escolher para os que não falam português (americanos e franceses, por exemplo)? A pronúncia dos galegos de hoje, (mais hispanizante) ou a dos portugueses? A diferença é bem sensível. Diante disso adotei uma solução híbrida, com traços do galego moderno e do português. Sabe-se, outrossim, que a grafia das Cantigas é completamente ilógica – como, por sinal, a de todo texto medieval – podendo elas serem escritas de três ou quatro maneiras diferentes, que é preciso decifrar para se chegar a uma articulação única. Exemplos: deve-se pronunciar o – n – intervocálico quando (raramente) ele se apresenta? Devem-se pronunciar as nasais? E as vogais átonas? Os cantores não têm ideia do trabalho que isso exige sempre, incluindo a compreensão do texto enquanto tal. Mas o mais difícil não são os portugueses nem os trovadores occitanos, o mais difícil são os herdeiros dos trovadores no norte da França (os trouvères) que se exprimem na langue d’Oil. A pronúncia do francês antigo é terrível, nunca se sabe como pronunciá-lo corretamente.

 

AR: E isso muda desde o século XII.

PB: No século XII e no século XIV! E ainda existe um problema de princípio: é melhor optar por uma pronúncia sabiamente reconstituída, como faz o professor de filologia, como fazem muitas vezes os cantores alemães, para os quais o francês antigo ou moderno é, de qualquer maneira, uma língua estrangeira – coisa louvável em si, mas que encerra o risco, junto a um público francês, de uma incompreensão total por parte do auditório. O que fazer, então? Modernizar sem escrúpulos? Isso parece-me igualmente inaceitável, uma vez que se arrisca, então, a cortar o ritmo e toda a “poeticidade” do original. Optaria – novamente – por uma via de meio: conservar um matiz medievalizante, conservando os únicos arcaísmos poéticos que o público moderno consegue assimilar. Mas quanto ao ritmo, mantenho-o ferozmente. Quando se canta, é impossível não respeitar o ritmo.

Conforme se vê, para cada caso surge uma nova dificuldade que deve ser contornada…

 

AR: Qual era seu objetivo ao publicar seus livros sobre os instrumentos musicais?

PB: Simplesmente porque eu toco violino. Mais ou menos, mas toco, e havia lido tantas bobagens quanto à origem da palavra violino que disse a mim mesmo: “você vai escrever um artigo sobre a etimologia e a história do termo”. Assim é que, aos poucos e uma coisa puxando a outra, verifiquei que para levar adiante uma pesquisa séria era necessário fazer um levantamento do que havia bem antes da aparição do violino. Com isso, iniciei por um estudo linguístico, textual e literário. Mas é evidente que não seria possível falar da designação de um instrumento sem saber a época a que essa designação remonta, uma época dada, um espaço dado e uma língua dada – no plano organológico. A problemática essencial é que, para os nomes dos instrumentos (de resto, como ocorre também para os nomes populares de animais ou plantas), tem-se – de um lado – um nome que continua o mesmo e que acaba por designar um instrumento diferente e – por outro lado – um mesmo instrumento que, no decorrer dos séculos, acabou por tomar nomes diferentes. Tomemos, por exemplo, o nome “viola”. No começo, no espaço francófono, era uma viola tocada com arco. No século XV, quando esse tipo de viola foi substituído por instrumentos de maior performance, como a viola ou a lira “da braccio” (à qual sucederá o violino), a palavra viola assumiu um matiz pejorativo e remeteu, afinal, apenas à viola de roda, ou à “viola de cego” como se diz em Portugal, e que é tocada pelos cegos. Hoje distingue-se a viola de arco e a viola de roda por um artifício meramente gráfico. Na época da Renascença, qualquer cordófono a arco era designado, na França, como “viola”, termo de origem occitana, ou italiana. Falar de viola para o francês do século XII e XIII era um anacronismo: o termo só aparece esporadicamente e em contextos específicos. Enquanto que em catalão ou em occitano o termo (viula/viola) é encontrado desde o século XIII. Foi dessa maneira que aquilo que devia ser um artigo se transformou em um livro.

 

AR: Depois, o senhor escreveu um livro sobre a cornamusa (gaita de fole, com bordão) e agora sairá um sobre as palavras de tradição árabe que designam instrumentos musicais. Por que este livro? Foi feito com intenções musicais práticas ou se trata apenas de um estudo filológico?

PB: Mais uma vez, a respeito da cornamusa a questão inicialmente foi filológica, com uma metodologia semelhante à que usei com a viola; com uma diferença, entretanto, pois não se tratava aqui de um instrumento desaparecido como acontecia com a viola medieval. Claro que há violas que, bem ou mal, podem ser reconstruídas hoje, mas – de uma maneira geral – trata-se de um instrumento morto. Ao contrário, a cornamusa continua existindo, de uma forma ou de outra, num quadro de uma tradição que vai da Idade Média até hoje. Limitando-me à Europa e às línguas românicas (não tenho competências suficientes nem em árabe, nem nas línguas eslavas), consegui levantar duzentas designações diferentes da cornamusa, mas todas elas baseadas em uma motivação tríplice: o saco, o tubo e o timbre. Em suma, uma motivação, uma “pulsão denominativa” que é sempre igual em qualquer lugar e que gerou os termos mais diferentes. Vou dar dois exemplos: o termo catalão “sac de gemecs”, formação metafórica única sobre o timbre, e o occitano “cabra” (em francês, cabra, cabreta), designação ao mesmo tempo objetiva (pois o saco, em geral, é feito de pele de cabra) e fundada sobre o timbre, ou seja, a impressão do som do balido da cabra que é dado pelo instrumento.

 

AR: E a cabreta também?

PB: Cabreta ou chabreta? De fato, a diferença entre os dois termos não é organológica, mas simplesmente linguística (dialetal) entre uma forma sul-occitana e outra norte-occitana. No momento, porém, os etnomusicólogos e principalmente os intérpretes do instrumento, em geral pouco informados quanto às nuances dialetais, retomaram artificialmente uma dualidade inicialmente puramente fonética, e lhe deram o sentido de uma dualidade organológica: a “cabreta” se distingue (não sei como) da “chabreta”…

“A arte é uma embriaguez ordenada”

AR: O senhor falou de sua experiência com Joël Cohen e a Camerata Mediterrânea,  com  Bernat de Ventadorn cantado em árabe. O que o senhor acha dessa prática musical de acompanhar cantos trovadorescos com músicas como a música árabe, por exemplo? É uma tradição longa, ainda viva hoje em dia?

PB: Não sou especialista no assunto, mas não acho que a música árabe tenha algo a ver com os trovadores. Mais adiante vamos falar disso.

 

AR: E a outra questão: a outra maneira que está em voga agora, de interpretar as canções dos trovadores como música tradicional, com instrumentos – e mesmo timbres vocais – tradicionais?

PB: Voltamos a encontrar a questão que coloquei no começo desta entrevista: ou uma interpretação no estilo do bel canto, ou uma interpretação no estilo “tradicional”, popularizante. É difícil responder de forma curta sem ser pedante ou imprudente. Na verdade, não se sabe muita coisa sobre as técnicas vocais da Idade Média: timbre, tessitura, emissão de som, fôlego, vibrato ou não etc… A priori não acredito que os cantores dessa época tenham cantado com uma voz trabalhada, de ópera, como aconteceu, às vezes, em algumas interpretações de nossos precursores. De qualquer maneira – e para responder à questão acima – cantar “à moda árabe”, a não ser em experimentos, não me parece pertinente. Confundiram-se – é verdade – os melismas trovadorescos com certa inflexões específicas da melopeia árabe, em terços e quartos de tons. De acordo com a maioria dos pesquisadores, a música trovadoresca é uma música paralitúrgica, uma música sobre o modelo do canto gregoriano (plain-chant) e nada tem a ver – na minha opinião, repito – com a música especificamente árabe. Recentemente, Brice Duizit tentou um ensaio de interpretação, que se quer jogralesca: a dicção e a pronúncia são boas, sobre canções de Guilherme IX. A empresa é relativamente mais fácil por se tratar de melodias criadas de todas as peças e das quais o intérprete pode dispor à sua maneira. Mas vou fazer dois reparos: em primeiro lugar, a questão do mesmo estilo interpretativo para as canções obscenas ou lúdicas e para a canção cortês. Essas peças correspondem a registros bem diferentes na poesia do primeiro trovador que as cantou. Em segundo lugar, no que concerne às três canções para os companheiros, eu acho que a pausa entre os hemistíquios do verso longo, marcada sistematicamente pelo jogo instrumental, é um pouco demasiado longa e dá a impressão de algo fragmentado. Mas se trata de uma criação, um pouco “à maneira de”, logo de uma posição do autor e do intérprete que tem toda sua liberdade. Por isso mesmo, não acho que esta tentativa, não sem interesse, possa servir de referência interpretativa à lírica cantada, em sua totalidade.

 

AR: O canto natural…

PB: Seria necessário, antes de mais nada, saber o que se entende por canto “natural”. Há pessoas que cantam naturalmente bem (ao menos, segundo nossos critérios – digamos – europeus) e outras, que cantam naturalmente mal… Estou me lembrando, agora, de um cantor “popular”, sem cultura musical erudita cuja voz (evidentemente não trabalhada) serviu durante certo tempo, para fazer dançar (ao som da voz – a son de votz) e que participou do primeiro disco que gravamos com Joël Cohen (Lo gai saber). Ele cantou Direi vos senes duptansa, de Marcabru e a Lauseta, de Bernat de Ventadorn e ficou ótimo. Mas a partir do momento em que ele deixou de se manter dentro desse contexto, apesar de estar dentro da escola de Cohen, ele partiu para todo lado… Acredito, portanto, que a natureza necessita sempre mais ou menos de certo dirigismo, ou mais simplesmente, de rigor. “A arte é uma embriaguez ordenada”, dizia Paul Valéry.

 

AR: O senhor falou da direção de grupos de música medieval de Joël Cohen. Se o senhor tivesse a possibilidade de reunir um grupo de música medieval com um diretor, seria idealmente…

PB: Vou responder negativamente, com uma boutade e uma leve provocação que meus patrícios hão de me desculpar. A primeira condição (ideal) é que ele não seja francês. Há, com efeito, esquematicamente, três tipos de grupos que abordam o canto medieval occitano: os italianos e os espanhóis, que não fazem esforços e pronunciam relativamente bem; os alemães que se esforçam bastante e o pronunciam relativamente mal; e os franceses que não fazem esforço nenhum e pronunciam geralmente mal. Claro, não é que queira fazer aqui “racismo articulatório”, mas posso afirmar o que eu disse por experiência própria. Tudo isso para dizer que um mínimo de preparo filológico – desculpem-me por puxar a brasa para minha sardinha – qualquer que seja a proveniência linguística do grupo, parece-me indispensável. Dito isto, tenho perfeitamente consciência das dificuldades que se deparam ao cantor. Ele tem diante de si uma tarefa difícil: a dificuldade – no começo – de uma compreensão imediata, musical e textual; o problema, seguinte, de transmitir essa música e esses textos a um auditório que não está geralmente habituado a isso, a um auditório do século XXI que não tem os mesmos gostos, o mesmo ouvido, a mesma paciência e – acima de tudo – não deve cansar o público. Talvez valha a pena renunciar a cantar a peça inteira (o que costumava fazer Barbara) e limitar-se a dar extratos que variam nos ritmos, nos tipos melódicos e nos gêneros poéticos. Em suma, limitar-se a um leque representativo. É isso que faz Joël Cohen. Tudo isso, naturalmente, é o ideal. Porque não se deve esquecer que o intérprete (vocal ou instrumental), tal como o trovador ou o jogral da Idade Média, vive frequentemente de sua arte e do público que o recebe. Neste momento o filólogo e o musicólogo se calam. A recepção do texto (em sentido amplo) depende, agora, apenas do intérprete.

 

Brigitte Lesne canta os provençais

[1] Glosa de um texto de Martianus Capella (Chailley, 1982, p. 25).

Fecere silentium, id est dedere musica instrumenta sicut faciunt

ioculatores: dum instrumentum suum tangunt, silent;

est dum silet instrumentum suum, cantant.

Chanson de Horn: Chanson de Horn, v. 2842-43 (Chailley, 1982, p. 25).

Apres en l’estrument fait les cordes suner.

Tut issi cum en voiz l’aveit dit en premier.