Por ocasião do bicentenário do nascimento de Charles Baudelaire, em abril 2021, deixemo-nos embriagar pelo gênio das Flores do Mal que perturbou a literatura. Baudelaire mostra sua singularidade, indo de encontro à tradição poética: “Poetas ilustres há muito compartilhavam as províncias mais floridas do campo poético. Pareceu-me tão agradável, e tanto mais agradável quanto a tarefa era difícil, extrair a beleza do Mal. “Um trecho do poema “Uma carniça” parece ilustrar, entre outros exemplos, essa nova estética:
“Recorda o objeto vil que vimos, numa quieta,
Linda manhã de doce estio:
Na curva de um caminho uma carniça abjeta
Sobre um leito pedrento e frio,
As pernas para o ar, como uma mulher lasciva,
Entre letais transpirações,
Abria de maneira lânguida e ostensiva
Seu ventre a estuar de exalações”.
No entanto, em 1857, a justa França de Napoleão III considerou essa literatura obscena e o promotor imperial Ernest Pinard condenou o autor e seu editor por “insultar a moralidade pública e religiosa e a boa moral”. Seis poemas considerados particularmente infames foram retirados da venda e só em 1949 essas “peças condenadas” foram reintegradas em Fleurs du mal. Apesar dos incansáveis censores e críticas da época, alguns contemporâneos ilustres (incluindo Victor Hugo, Théophile Gautier e os irmãos Goncourt) apoiaram Baudelaire. Ferido pelo julgamento, mas acostumado a ser incompreendido, nem que seja pela vida boêmia, pelas dívidas acumuladas e pelo gosto demonstrado pela provocação, não deixa de saber que o escândalo garante a publicidade de sua coleção e da posteridade de seu nome. Tudo ao seu redor, e nele, é atingido pela dupla postulação, este “Baço e Ideal” (título da primeira seção de Fleurs du mal) de que sofre, está bem e ao mesmo tempo se orgulha. As mulheres (sua mãe, suas amantes, as prostitutas que frequentava), mas também o progresso de seu tempo (a imprensa, a fotografia, a renovação de Paris) o fascinavam e o atormentavam. Essa ambivalência fundamental está presente na coleção inacabada de Pequenos poemas em prosa, que ele compôs no final de sua vida e será publicada postumamente em 1869 (Baudelaire morreu em 1867). Menos lendário que Les Fleurs du mal, Le Spleen de Paris é, segundo o crítico Antoine Compagnon, “o pináculo da modernidade antimoderna por excelência” deste espírito irreconciliável e “irredutível”:
“E agora a profundidade do céu me desanima; sua clareza me enfurece. A insensibilidade do mar, a imutabilidade do espetáculo, revoltam-me. Ah! Devemos sofrer eternamente ou fugir eternamente do belo? Natureza, feiticeira impiedosa, rival sempre vitoriosa, deixe-me! Pare de tentar meus desejos e meu orgulho! O estudo da beleza é um duelo onde a artista grita de medo antes de ser derrotada. ” (Pequenos poemas em prosa).
De Baudelaire, e paradoxalmente graças a ele, a poesia se abre a essa modernidade saudada por todos os seus herdeiros. Se sob sua pena o belo se torna “bizarro”, “discordante”, “ardente e triste”, nenhum escritor jamais se atreveu a ir tão longe em expressar horror e o êxtase misturados. “Criar um clichê é genial. Tenho que criar um clichê ”, ele disse. Duzentos anos após seu nascimento, a ambição do maldito poeta se realiza e ainda nos espelha, seu “leitor hipócrita, [seu] companheiro, [seu] irmão”:
“Pois eu extraí a quintessência de tudo,
Você me deu sua lama e eu a transformei em ouro. ”
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Uma carniça
Charles Baudelaire
(1821 – 1867 )
Recorda o objeto vil que vimos, numa quieta,
Linda manhã de doce estio:
Na curva de um caminho uma carniça abjeta
Sobre um leito pedrento e frio,
As pernas para o ar, como uma mulher lasciva,
Entre letais transpirações,
Abria de maneira lânguida e ostensiva
Seu ventre a estuar de exalações.
Reverberava o sol sobre aquela torpeza,
Para cozê-la a ponto, e para,
Centuplicado, devolver à Natureza
Tudo quanto ali ela juntara.
E o céu olhava do alto a soberba carcassa
Como uma flor a se oferecer;
Tão forte era o fedor que sobre a relva crassa
Pensaste até desfalecer.
Zumbiam moscas sobre esse pútrido ventre,
De onde em bandos negros e esquivos
Larvas se escoavam como um grosso líquido entre
Esses trapos de carne, vivos.
Isso tudo ia e vinha, como uma vaga,
Ou se espalhava a borbulhar;
Dir-se-ia que esse corpo, a uma bafagem vaga,
Vivia a se multiplicar.
E esse mundo fazia a música esquisita
Do vento, ou então da água-corrente,
Ou do grão que, mexendo, o joeirador agita
Na joeira, cadenciadamente.
As formas eram já mera ilusão da vista,
Um debuxo que custa a vir,
Sobre a tela esquecida, e que mais tarde o artista
Só de cór consegue concluir.
Entre as rochas, inquieta, uma pobre cadela
Fixava em nós o olhar zangado,
À espera de poder ir retomar àquela
Carcaça pobre o seu bocado.
– E no entanto, hás de ser igual a esse monturo,
Igual a esse infeccioso horror,
Astro do meu olhar, sol do meu ser obscuro,
Tu, meu anjo, tu, meu amor!
Sim! tal serás um dia, ó tu, toda graciosa,
Quando, ungida e sacramentada,
Tu fores sob a relva e a floração viçosa
Mofar junto a qualquer ossada.
Dize então, ó beleza! aos vermes roedores
Que de beijos te comerão,
Que eu guardo a forma e a essência ideal dos meus amores
Em plena decomposição!
(Tradução: Guilherme de Almeida)
Une charogne
Rappelez-vous l’objet que nous vîmes, mon âme,
Ce beau matin d’été si doux:
Au détour d’un sentier une charogne infâme
Sur un lit semé de cailloux,
Les jambes en l’air comme une femme lubrique,
Brûlante et suant les poisons,
Ouvrait d’une façon monchalante et cynique
Son ventre plein de exhalaisons.
Le soleil rayonnait sur cette pourriture
Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande Nature
Tout ce qu’ensemble elle avait joint.
Et le ciel regardait la carcasse superbe
Comme une fleur s’épanouir;
La puanteur était si forte que sur l’herbe
Vous crûtes vous évanouir.
Les mouches bordonnaient sur ce ventre putride,
D’où sortaient de noirs bataillons,
De larves qui coulaient comme um épais liquide,
Le long de ces vivants haillons.
Tout cela descendait, montait comme une vague,
Ou s’élançait et pétillant;
On eût dit que le corps, enflé d’un souffle vague,
Vivait en se multipliant.
Et ce monde rendait une étrange musique
Comme l’eau courante et le vent,
Ou le grain qu’un vanneur d’un mouvement rhytmique
Agite et tourne dans son van.
Les formes s’effaçaient et n’étaient plus qu’un rêve,
Une êbauche lente à venir,
Sur la toile oubliée, et que l’artiste achève
Seulement par le souvenir.
Derríere les rochers une chienne inquiète
Nous regardait d’un oeil fâché,
Épiant le moment de reprendre au squellete
Le morceau qu’elle avait lâché.
-Et pourtant vous seres semblale à cette ordure,
A cette horrible infection,
Étoile de meus yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion!
Oui! telle vous serez, ô la reine des grâces,
Après les derniers sacrements,
Quand vous ires sous l’herbe et les floraisons grasses
Moisir parmi des ossements.
Allors, ô ma beauté! dites à la vermine
Qui vous mangera de basers,
Que j’ai gardé la forme et l’essence divine
De mes amours décomposés!