Skip to main content

CARLOS QUIROGA — A REFERÊNCIA GALEGA

Carlos Quiroga, Professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Santiago de Compostela, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e passou pela poesia e pela prosa com trabalhos em vários acervos particulares e públicos.

Deve-se também a ele, além de muitos outros trabalhos em vários âmbitos, a consolidação da revista Agália onde publicou quatro números trimestrais. Escreveu também a triologia Viagem ao Cabo Nom onde se integra mutuamente na editora portuguesa Quasi e na galega Laiovento.Depois do poemário g.o.n.g., e o tríptico narrativo Periferias, publicados em 1999, voltou de novo à poesia no ano 2002, com A Espera Crepuscular.

Ainda no ano 2002 merece salientar que Carlos Quiroga orientou a tese de doutoramento Inês de Castro na Literatura, no Cinema e nas outras artes, apresentada por Rosa Maria Pais Ribeiro e defendida na Universidade de Santiago de Compostela.
Quiroga tenta-nos ao criar images/stories desconexas e frias meditando sobre as diversidades do ser. O Ser como sensibilidade.

“A frialdade da onda hertziana vai entrar-me funda
na orelha adentro como aço fino com palavra na ponta […]”

“(Seco e acre agora como um pláncton está-me ardendo
na boca a alma que já percebe as sedes a dominar depois) […]”

A sua poesia é também uma poesia do corpo e do “eu” por vezes áspera e nua vista como um sistema reator utilizando a própria sensibilidade como elemento de transgressão. A sua ambiguidade pode ser, talvez, exprimida no desejo de movimento realizado no não movimento:

“Sento fora
e aguardo por rosa
até que os turistas correm
e se refugiam […]” ;

“nom me mira
porque está ausente em dinamarca
no fundo da chávena branca […]”

Quiroga torna-se incansável no processo de busca dos deslocamentos dos seus objetos, abarca-se numa sensação da imobilidade do próprio tempo que se perpetua em vários dos seus versos. Não existe outra receita senão ultrapassar a dor através da razão ou, através de uma profunda consciência, dar-se conta da sua própria irracionalidade, a irracionalidade da dor que emite voz própria e parece tomar posse do poeta inquieto e ao mesmo tempo incapaz.

“Era outra vez um adolescente temendo usar as moedas para resolver o desespero com as únicas palavras ainda informes que me inflamavam toda a lucidez do cérebro. Som tremendamente ingénuo. Som timidamente pouco prático […]”;

“nesta malfadada cabeça entre as mãos, e eu
nom som capaz de espalhar baldes de diamantes por compostela […];

nom tenho os sapatos que tirei para sempre, e tosso…”

A sua poesia corta a abstração pelo olhar contínuo que tenta fazer numa crise de afastamento e aproximação do próprio Eu poético que nos permite penetrar o real que se mostra, a uma primeira mirada, quase opaco e impossível de penetrar.
Ao ler alguns poemas de Quiroga percebo um desejo de vazio numa confusão muitas vezes camuflada por uma simplicidade confusa, que causa o estranhamento.
Quiroga é obsessivo em relação ao prazer, dando cores e traços vivos a esse mesmo prazer que intensifica a cada toque. Explora a sua própria (não) articulação que culmina numa solidão mediatizada pelo erotismo, pelo corpo solidificado na procura.

“Aprendim que bocas pintadas desenham melhor mapas de paixom
sobre a húmida febre dos corpos arfantes
e o prazer pode marcar para sempre o violeta no rosto
sem que a prévia vertigem da insónia e do vinho
alcancem a exaurir os nervos metálicos […]”;

“Era tam difícil pensar noutra cousa que nom fosse a eloquência dos teus olhos tolerando-me. Som como tu. Afinal és c! omo eu. E acontece-nos este prodígio de amor que nos separa.”;

“cartas fotos a seda oriental da tua pele asteca e o cristal tamém água
que nos separou último.”

As palavras parecem subir e descer por uma colina de estranha inquietação com a vida, envolvidos com o mistério como veias inusitadas, inflamadas por um fluxo imagético de densidade existencial. Apresenta-nos as Verdades poéticas que o atormentam e as quais ele venera e transforma. Quiroga vai de encontro a uma poesia quase inocente, quase bruta, quase biograficamente intimista, exaltando o dom e ao mesmo tempo o prazer da sua própria liberdade e da sua conseqüente exposição. Exposição do Eu que ora dramático, ora poético, nos surpreende com as images/stories e as sensações de uma poesia num canto urbana, citadina, despegada, limítrofe, noutro quarto resvalando o erotismo ascendente numa linguagem intimamente comtemporânea. Encontramos aqui uma maturação da escrita na maturação da própria vida na sua plena maturidade poética. Oferece-nos relações audazes, por vezes perigosas e inflamadas, chegando mesmo a ser catárticas até às últimas conseqüências. Sem Medo. Sem fugir ao niilismo do próprio ceticismo.
Quiroga tenta transbordar e ultrapassar conceitos, diferenças e conseqüentes afastamentos no seu tratamento poético. O seu trabalho resulta de pequenas mortes e pequenos nascimentos, de prazeres criativos e de atitudes refletidas e interpretadas de vigorosa inquietude. Nos seus silêncios eficazes e fugidios, ou compactos e restritos, tenta aproximar-nos de cultivas marcações e emoções contidas recortadas nos momentos poéticos, dimensionalmente humanistas.

“mas afinal só serei capaz de lamentar a mim encostado
e pensar se saberei fingir a paródia piedosa de nom saber
e ficarei como um imbecil à solta polo pátio da vida
(sem realmente nada saber nem compreender de todo)”

 

De A ESPERA CREPUSCULAR

(Viagem ao Cabo Nom .1)[1]
Carlos Quiroga

 

QUERIDA

Cresce o rádio do sumo de laranja ou misto aí à esquina no Maracanã. Às vezes dou um salto ao Café Versailles mas há turistas e os empregados demoram. Melhor o Café Marquês de Pombal a horas que nom sejam horas de empregados ao café. Quero crer que escrevo, depois do sumo e do café com bolos de nata (melhor, afinal, os do Maracanã), o resto da manhá no hotel. Mas nom escrevo, dormito sobre o jornal. Depois, a Tasca do Zé já nom é o que era e o Metro, aí em Picoas entrando polo Centro Comercial Imaviz, coloca à porta qualquer restaurante perdido da cidade anónima. E volto. O carro descansadamente abaixo, vejo a piscina, vejo o carro. Fumo. Mais da conta. De tarde, com o sol caindo a fio, dá para amolecer na piscina e ler mais Público sem público derrotado espreguiçadeira abaixo. Até resulta exótico ler aqui português jornal. Algum velho a suar por trás da vitrina para o ginásio ao lado. Algumha velha a ler um livro umha revista estrangeira. Toda a letra é estrangeira veja-se por onde se veja estrangeiro tudo, todos, voluntários.
E era a fuga para a escrita, fingia eu. Porque a energia optimista também pode correr polas veias minhas, mesmo que seja engano, mesmo que a brincadeira tenha pouca hipótese de mudar o mundo, o meu, o que me está à volta. Mas vale a pena acreditar em que algo vale a pena. Continuar fingindo-se insecto no esplendor do verao. Até sendo Inverno. Nomeadamente.
Ai a tradiçom  história existência simples da forma literária da viagem. Desde que existe escrita e humano deslocando-se, aí. Mas poucos humanos como os galegos tam legitimados para falar disto e poucos galegos voluntariamente, sem que se oculte a vergonha de emigrar. Antiga ideia e antigo material antigo como a forma literária da viagem. Real, imaginária. Viagem. Com deslocaçom física ou viagem imóvel porque já sem Fernando António intuíamos que a melhor maneira de viajar é sentir. É o que venho aqui trazer-te, querida. E digo querida, porque estou até ao caralho do tópico “leitor”, sei que sempre é mulher a que lê mais. Ou melhor. Enquanto dormito.

 

estrangeiro

A mai continua a falar conselhos imperturvável para a minha imperturvável desatençom. A mai de quem eu pensava que me tinha feito tanto mal por meu bem, da que talvez acabe pensando que me fijo tanto bem por meu mal. A mai nada aborrecida de falar para um cadáver adiado vai dormir. A sesta. Na terra em sábado e à sesta ‘tá tudo parado tudo parado calmo. Só crescem os vegetais quando a gente dorme. E se fai mais velha. A gente. Mas quase sem dar por isso ambos. Os vegetais. Tens que fechar os olhos por semanas anos. Entom os carvalhos mudos iguais e firmes acusam à volta. E as bétulas negrilhos ulmeiros as canas do rio nos caneiros com anzóis em mergulho de minhocas grilos e o saltom gafanhoto de criançada por baixo dos salgueiros, ah os arbustos mortos nas mortas horas da sesta que te acusam.
E eu fico à solta como se procurasse ou esperasse no meio do deserto verde de insectos. Nom ouso aparecer polo café do Adolfo ou do Perilhas. Encontrar gente que eu nom conheça ou me reconheça. Desconhecidos velhos conhecidos qualquer pessoa que me olhe curiosa e queira explicaçom passiva activamente. E entom o Picha Susinho Quanto tempo Pois por aqui verás… Que tal Tonhito o Galhardo da Cachonda o futebol já nom jogo os anos a vida nom sei… Ai Quiro quanto para conversar e nunca o tempo e o Chapas take walk on the wild side, lou, ‘Tás escancarado pola sujeira daquelas malandrices todas, meu, Olá Carlitos como vai a farinha as motos seu louco reformado em computador e filhos… E talvez o único lugar do mundo onde podo circunstancialmente sentir a síndrome de estrangeiro, o pecado de vir de fora com dureza confrontada de explicar-me que caralho pinto aqui seja aqui. Como na vida toda em sentido metafórico agora concentrada aqui. O antropólogo Claude Levi-Strauss teria adorado esta mata verde à volta de Escairom. O filósofo Caetano teria cantado saudades seguramente aqui. E eu, totalmente estrangeiro na vida, só estrangeiro no mundo aqui… Aqui.

. . . . . . . . . .

1: Coedição da Quasi Edições (Portugal) e da Edicións Laiovento (Espanha), 2002. Certas disgrafias aparentes devem-se ao facto de o texto estar escrito na norma ortográfica de aproximação galego-portuguesa que conserva alguma peculiaridade galega. O autor não se importa em usar o português padrão, mas prefere deste modo levantar a questão da própria identidade na sociedade galega.