Em 1957, logo após a publicação de GrandeSertão :Veredas, Antonio Candido o comparou com Os Sertões, chamando a atenção para algo fundamental. Lembrando que GrandeSertão:Veredas tem as 3 articulações da obra de Euclides da Cunha, a terra, o homem, a luta, propôs que a semelhança pára aí, pois onde Euclides descreve para classificar sociologicamente, Rosa descreve para sugerir ficcionalmente[a();1]. Aqui, vou tratar dessa sugestão em termos das interações funcionais do autor com o leitor. Peço sua atenção para algo material útil para especificá-las, o ponto de vista do autor figurado no romance como integração funcional de representação e avaliação. Provavelmente, é óbvio; e, certamente, sem a altura, a interioridade, a exterioridade e a profundidade das interpretações que se ocupam dos conteúdos do texto. Pressuponho que, assim como acontece exemplarmente com Machado de Assis, a verdadeira questão crítica quando se trata de Rosa não é a de interpretar conteúdos da representação de seus textos, mas a de especificar seu sentido estético e político, o que deve necessariamente incluir o modo como o autor estabelece comunicação com o leitor. Para isso, lembro que em Rosa a forma produz indeterminação.
Plásticas, visualizantes, suas images/stories são compostas de elementos abstraídos do natural por uma observação acuradíssima de naturalista que põe as coisas frente ao olho do leitor, como a enargeia ou a evidentia antigas. Quando lidas pontualmente, isoladas da correlação dos materiais simbólicos transformados no texto, parecem “realistas”; no entanto, “Zola vinha apenas de São Paulo”, como Rosa dizia a Günter Lorenz, em 1965, no Congresso Internacional de Escritores de Gênova, ironizando a vulgaridade da ficção que dissocia instrumentalmente forma e conteúdo[a();2]. Desde os contos de Sagarana, sua figuração do sertão não é um rol da roupa ou apontamento exterior, pois a nitidez de suas images/stories, como a luz daquela estrada vermelha em S da obra-prima que explicita sua poética, O Recado do Morro, é um aparecer sensível da força da imaginação. Em Rosa, a imaginação atua na forma como movimento da sensação em ato, sugerindo outra cena indeterminada em que a percepção por assim dizer instintiva do leitor tem de ignorar as noções e os conceitos sensatos que conhece, para imaginar uma idéia superior sugerida como idéia só captável pela intuição.
A enunciação dos seus narradores, como Riobaldo, é um jogo de linguagem em que o dizer postula que a determinação da fala é uma visão interior sem conceito definido, presentada ou presentificada na forma reclassificada e recategorizada gramaticalmente como algo anterior às categorizações culturais do sujeito, das normas sociais que regulam ações e dos esquemas verbais de comunicação que nós, leitores, vivemos como natureza petrificada em nossos usos. Afirmando-se como imaginação produtiva que passa ao lado das reproduções da semelhança modelar, seu jogo de linguagem reativa o sentido primeiro do poiein grego[a();3], não só como um ver e um dizer aplicados à representação de coisas e ações empíricas, mas como produção de significações que fazem o leitor ler o dizer do texto como o outro da visão interna de algo secreto que murmura no devir da sensação. Esse algo indeterminado faz com que a fala e a ação de seus personagens sejam figuras hieroglíficas da força que determina as palavras como um teatro do mundo. Realizando uma verdade secreta, a palavra é força. Como os logoi spermatikoi de platônicos ou a imaginação das images/stories pelo espírito fantástico em Marsilio Ficino, a palavra dos narradores de Rosa não é mero signo convencional, arbitrário e imotivado, como repetimos com Saussure. É força que, atuando na substância da expressão e na substância do conteúdo em que se determina a forma sensata dos usos exteriores que Rosa despreza, produz images/stories como código que traduz sensivelmente o dicionário universal do ser[a();4], dizendo o “quem” das coisas. Ecoando a presença indefinida desse “quem” anônimo no fundo que sobe, a forma dissolve significações previsíveis, enquanto reagrega seus restos como movimento unitivo do existente. Rosa é um artista extraordinário; diferentemente da grande literatura moderna marcada pelo mais absoluto pessimismo quanto ao homem e à história, sua arte é afirmativa.
Na ficção desses efeitos platonizantes, a língua é falada pelos personagens como nas definições psicanalíticas da loucura: como se fossem falados por ela, que irrompe neles presentando algo que os anima e sobressalta e que não podem conhecer racionalmente, mas que intuem. Em GrandeSertão:Veredas, isso ocorre principalmente nas duas dimensões fundamentais da proposição- a designação e a significação. Quando o lemos, observamos já no “Nonada” que o abre a projeção de uma significação de significações, a idéia de Bem e Amor, que o autor traduz como “Deus”, compondo a verossimilhança do sertanejo Riobaldo. Quando fala, Riobaldo designa as coisas, ações e eventos do sertão como tendo realidade própria; ao mesmo tempo, como elementos de um alfabeto que soletra parcialmente a significação de outra cena só intuída e invariavelmente indiciada como excesso da presença muda e anônima que os une. O intensíssimo efeito de oralidade na escrita do romance sempre sugere a voz anônima, que insiste em cada ponto dele, marcando as designações do narrador como potência de alusão ao segredo implícito no mundo. Em GrandeSertão:Veredas, o autor inventa esse efeito relacionando o ato de fala de Riobaldo com referências da cultura sertaneja e da cultura ilustrada, que o preenchem. O ato de fala nunca coincide com a significação do que diz, mas escorre diferencialmente em novas posições, como falta de unidade das versões que se refratam nele. Na leitura, o princípio de analogia que o constitui como ato de fala compõe o corpo de papel de Riobaldo como unidade imaginária de um sujeito que lembra; mas, como sujeito de uma enunciação que tenta dizer o sentido da experiência passada, só pode produzir metáforas como figuração provisória do que supõe ser no presente o sentido do que imagina ter sido no passado. O tempo corroeu a unidade da experiência e o que consegue dizer dela no seu presente, que também passa, é sua reverberação prismática em images/stories nas quais já é outro. Assim, o sentido da experiência da cegueira do poder e da perda do amor permanece inexpresso, enquanto se desloca como ausência nas metáforas que tentam dizê-lo. A ausência é sempre algo elidido, que permanece aludido no efeito simbólico do ato, que produz o imaginário iludido do leitor levado a entendê-la como ausência de algo substancial que deve ser interpretado com conteúdos buscados em seus sistemas familiares de interpretação. Literariamente, contudo, a ausência não é algo substancial a ser preenchido por conteúdos exteriores ao ato, mas um “exterior” ou um “antes” apenas relacionais, produzidos pela fala que tem de calar o que não pode dizer justamente para que o texto figure a duração afetiva da experiência existencial do personagem nas images/stories que a figuram indeterminadamente. Por isso mesmo, a recategorização e reclassificação da língua não se esgotam num neoparnasianismo exterior, sendo também muito equivocada a afirmação de Ferreira Gullar de que GrandeSertão:Veredasé livro escrito para lingüistas. A recategorização e a reclassificação são meios para produzir o indeterminado da intensidade sem palavras do tempo perdido.
Para determinar significações para o indeterminado desse efeito em GrandeSertão: Veredas, a crítica costuma pôr ênfase em questões temáticas e estruturais da representação, interpretando-as por meio de conteúdos buscados à sociologia, à filosofia, à história, à psicanálise, à lingüística, à mitologia etc. Obviamente, a crítica feita como hermenêutica de conteúdos é, como tantos outros, um modo legítimo de construção de sentido, mais ainda quando não se deixa seduzir pelo demônio da analogia; no entanto, quando a ficção de GrandeSertão: Veredas é reduzida a reflexo realista do sertão empírico ou expressão figurada dos conteúdos dos vários saberes que a crítica aplica para interpretá-lo, sua representação é lida de modo documental e instrumental, que parece não pressupor que literatura não é coisa representada, mas representante[a();5].
Não penso a indeterminação como se ela correspondesse a conteúdos ausentes ou ocultos por formulações metafóricas que devem ser explicitadas alegoricamente por meio dos conteúdos exteriores dos sistemas aplicados pelos intérpretes. Penso a indeterminação como objeto intencional, ou seja, como objeto artificialmente construído pelo trabalho técnico do autor evidenciado na forma como posição autoral comunicada funcionalmente ao leitor como avaliação crítica da técnica e da representação. Pressuponho o que Robert Weimann dizia sobre outros autores de ficção: ao inventar a história de GrandeSertão:Veredas, Guimarães Rosa teve que enfrentar não só problemas técnicos de composição do texto e problemas retóricos da comunicação dele com o leitor, mas também o fato bruto de viver num mundo dividido como o Brasil, em que, como autor que pretendia transformar sua experiência em arte, tinha de figurar sua relação com ele como um ato simultaneamente estético e social. Sua experiência como artista da história do país e na tradição literária do país tinha de necessariamente supor que a flexibilidade e a precariedade dessa relação só podiam se realizar artisticamente como integração da representação e da avaliação por meio de um ponto de vista particular[a();6]. Quando se interpreta apenas a função representativa do texto, a indeterminação é facilmente emoldurável como expressão de identidades substanciais e indizíveis, o que muitas vezes também determinou juízos negativos sobre a obra e o autor. Nos anos 1960 e 70, estalinistas adeptos do reflexo realista prescreviam que a literatura devia refletir as contradições sociais do campo brasileiro e acusaram Rosa de “formalismo”, “metafísica” e “reacionarismo”, demonstrando mais uma vez sua luminosa misologia ignorante do simbólico. Nesses anos, neovanguardistas de São Paulo compararam a linguagem de Rosa com as images/stories espacializantes do Joyce do Finnegan’s Wake, supervalorizando os experimentos como autonomia lingüística de arte “revolucionária”. Nem uma coisa nem outra, quando se considera a função avaliativa com que o autor orienta o leitor na representação, o indizível do “sertão que aceita todos os nomes” é efeito de seleção, correlação, estilização, paródia, pastiche e dissolução programáticas das unidades de significação das linguagens do iletrado e das representações ilustradas sobre elas.
Rosa dizia que o sertão é o mundo em que o homem ainda não provou do fruto da árvore do bem e do mal. Também dizia que o sertão, que em sua arte só existe como a realidade do possível poético, é a “brasilidade”, acrescentando que “Provavelmente Riobaldo é somente Brasil” e que “brasilidade” é “a língua do indizível”, pois o grande sertão não é só o das images/stories referenciais da natureza física e da civilização do couro do chapadão dos Gerais, mas principalmente o da alma. Ele usava outras expressões teológicas e mitológicas para nomear o estilo desse grande sertão, como “língua que se falou antes de Babel”. Também emitia opiniões que eliminam o ficcionante da sua arte. Lembro, por exemplo, uma carta dele para Vicente Ferreira da Silva, datada de 21 de maio de 1958, em que afirma: “Valeria a pena (quem sabe?) reler também o GrandeSertão: Veredas– que, por bizarra que V. ache a afirmativa, é menos literatura pura do que um sumário de idéias e crenças do autor, com buritis e capim devidamente semi-camuflados”[a();7].
Seria útil não interpretar teologicamente essas formulações, mas entendê-las tecnicamente, como metáforas críticas de pressupostos artísticos e procedimentos retóricos que se evidenciam objetivamente na forma de seus textos como atos compositivos do autor, como ocorre em GrandeSertão:Veredas, em que o autor avalia a representação como travessia dos signos pela enunciação que relaciona e mistura programaticamente representações orais e escritas da chamada “brasilidade”, produzindo vazios na significação delas para afirmar a historicidade de sua prática literária moderna que relativiza a unificação ideológica desse mito. O ponto de vista do autor não deve ser entendido como categoria biográfica, pois o texto de GrandeSertão:Veredas não pode ser deduzido diretamente das crenças religiosas e opiniões literárias e políticas do homem João Guimarães Rosa.