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Os filhos esquecidos do império português

MYANMAR: A ilha dos portugueses

–Se vai ao meu país, não se esqueça de visitar a ilha dos portugueses. – Foi com estas palavras que se despediu de mim o jovem secretário da embaixada de Myanmar em Pequim quando aí fui solicitar um visto de turista, já lá vão uns bons anos. Dessa vez, não chegaria a utilizar o visto requerido, mas aquilo da «ilha dos portugueses» ficou-me na ideia durante algum tempo.

Quando, finalmente, visitei pela primeira vez essa nação que já se chamou Birmânia e que um punhado de generais teimava em considerar um feudo seu, levava a lição minimamente estudada, graças à informação que em Macau me fora fornecida por um amigo entusiasta dessas coisas das miscigenações.

Quem primeiro nos relata o pioneirismo dos portugueses na Birmânia é o cronista Duarte Barbosa, que em 1501 ruma à Índia com uma frota de várias dezenas de navios, só regressando a Portugal quinze anos depois. No decorrer da sua viagem pelo subcontinente e pelo Sudeste asiático refere-se, por diversas ocasiões, ao reino da Birmânia, com «os seus habitantes de pele escura que andam nus da cintura para cima», e aos «mouros e pagãos» (entre estes últimos estavam incluídos os chineses), os grandes comerciantes da época, rivais dos portugueses. Barbosa é, provavelmente, o primeiro europeu a mencionar a existência da Birmânia, na altura, o nome dado ao principiado de Tangu, que, juntamente com Ava, Pegu e Arracão, era um dos mais importantes reinos da região que hoje constitui o estado de Myanmar.

Se tivermos em conta que os portugueses chegaram oficialmente à Birmânia por altura da tomada de Malaca, abastecida de mantimentos originários daquela região, e que era acima de tudo comercial o interesse e a razão de ser das viagens lusas, fica explicado o seu estabelecimento nas zonas costeiras. Contrariamente aos reinos do interior – caso do reino de Ava –, minados por conflitos, virados sobre si próprios, com economias baseadas na agricultura, os reinos costeiros, Pegu e Arracão, prosperavam. A sua sobrevivência dependia do comércio, dinamizado pelo contacto com os estados muçulmanos, de civilização mercantil.

Pegu consolidara a sua soberania sobre pequenos lugares e importantes portos de mar, como Martavão e Cosmim, administrando-os com toda a cautela e eficiência.Nesses portos iriam negociar os portugueses. Em busca do arroz e das embarcações, mas também de produtos hortícolas vários, prata e o afamado lacre.

Em 1511, os mon (uma das muitas etnias da região) estabeleceriam um tratado comercial e de amizade com Afonso de Albuquerque, que lhes enviou um seu mensageiro chamado Rui Nunes, procurando com isso o apoio dos gentios contra o inimigo comum: os muçulmanos. Pegu, reino budista, era um aliado precioso.

Em Agosto de 1512, Pêro Pais e Jorge Álvares rumam ao Pegu a bordo do junco São João. Estava assim iniciada uma prática corrente de compra de juncos para Malaca, que daria origem a uma rota de duas semanas com escala, para carregamento de pimenta, no porto de Pacém, ilha de Samatra. Passaram a ser construídas em Martavão, a partir de então, inúmeras dessas embarcações que seriam escoadas para Malaca, de maneira que esta pudesse responder de forma eficiente às intensas relações marítimas que mantinha com vários portos da Ásia e da Insulíndia. Por vezes eram os malaqueiros que rumavam a Pegu em busca de juncos; outras, eram os pegus que se dirigiam a Malaca, onde os vendiam depois de saldado o trato.

Na sua Peregrinação, Fernão Mendes Pinto refere-nos as riquezas da Birmânia, chamariz para mercadores portugueses, que ali demandavam a partir de Malaca, buscando as afamadas madeiras, cereais, laca e pedras preciosas, como os rubis ou as safiras, entre tantos outros produtos, e visitando no processo o arquipélago de Mergui, as cidades de Tavoy, Sirião, Cosmim, Akyab, e tornando-se aliados do rei de Pegu. Chegaram acompanhados pelos respectivos capelões, e assim se foi instalando o cristianismo na região.

Estabelecido em Martavão, o feitor português Duarte Peçanha de Alenquer acabaria por bater em retirada, após escaramuças com a população local e os portugueses aí residentes. Eram as primeiras manifestações do poder dos «lançados» ou «homiziados», que em toda aquela região comerciavam por conta própria e que desde sempre ofereceram resistência à tentativa monopolizadora do Estado da Índia. Fossem eles mercadores ou soldados, teriam um papel fundamental na formação política da Birmânia, nomeadamente na conquista de Pegu, em 1598, pelas forças aliadas birmanesas dos reinos de Tangu e de Arracão.

Em 1519, na sequência de um novo tratado de paz e comércio, assinado por António Correia, representante do rei português, e o soberano de Pegu, as trocas intensificar-se-iam ainda mais. De acordo com os relatos de Faria de Sousa, na sua Ásia Portuguesa, as relações comerciais entre Portugal e os reinos de Ava e Pegu expandiram-se de tal maneira que, por volta de 1556, encontravam-se já «ao serviço do rei Bayinaung mais de um milhar de soldados e marinheiros portugueses sob as ordens de António Ferreira de Braganza». Em alguns dos capítulos da Peregrinação Mendes Pinto relata-nos vários episódios envolvendo estes mercenários, e cita até o nome de muitos deles. Ele próprio exercia na altura a função de mercenário, e, ao chegar ao porto de Cosmim após uma atribulada travessia do país, deparou com uma pequena colónia de católicos, precisamente o resultado dos casamentos inter-raciais entretanto efectuados pelos soldados e mercadores portugueses ali estabelecidos.

Curiosamente, o primeiro religioso a pregar entre os birmaneses era um franciscano francês, Pierre Bonfer, capelão dos marinheiros e comerciantes lusos, de 1554 a 1557, em Sirião, à época, o principal porto da região. Escusado será dizer que as pioneiras tentativas de missionação caíram em saco roto.

Esse porto, na embocadura do rio Irrauadi, frente a Yangon, ficaria para sempre ligado ao nome de Portugal e dos portugueses, graças ao controverso desempenho de um aventureiro chamado Filipe de Brito, que, de 1600 a 1613, fez o que muito bem lhe apeteceu em Sirião e na vizinha zona costeira. Brito tinha absoluto poder sobre a região e os seus habitantes, tendo sido sob a sua protecção e auspícios que os capelões jesuítas puderam dar início ao processo de «evangelização entre os gentios», como se dizia então.

Filipe de Brito não foi o único, mas tratou-se seguramente do mais famoso dos lusos aventureiros que pululavam naquela e noutras regiões da Ásia.

Os descendentes desses soldados portugueses, que na época de Seiscentos lutaram ao lado dos soberanos de Ava e do Pegu, ou que faziam parte do pequeno exército de Filipe de Brito, ou do seu companheiro de armas, Salvador Ribeiro de Sousa, senhores feudais em terras do Oriente, ambos empossados com o título de «rei do Pegu», são hoje conhecidos em Myanmar como bayingyis.

INDONÉSIA: Um maremoto devastador

As notícias do terrível tsunami de 26 de Dezembro 2004 chegaram no mesmo formato que a tragédia em si. Numa torrente. O cômpito de vítimas que, inicialmente atingia as centenas, ao fim de uma semana, era já da ordem das centenas de milhares.

No Norte da ilha de Samatra, arquipélago da Indonésia, a devastação teria de ser necessariamente massiva, já que o epicentro do sismo se situara a centena e meia de quilómetros de uma orla costeira praticamente desconhecida dos ocidentais. Uma costa fustigada por um conflito já com três décadas entre as forças governamentais e a Frente Nacional de Libertação do Achém, mais conhecida pelo acrónimo GAM, cujo líder e fundador, Tengku Hasan Muhammad di Tiro, fora destacado defensor do ideal nacionalista e embaixador da Indonésia na ONU em 1950.

Por razões óbvias, a região não constava dos pacotes promocionais das agências de viagens, malgrado as praias selvagens de areais brancos e águas cristalinas pontuadas por pitorescas aldeias piscatórias de gente hospitaleira.

O subdistrito de Lamno viu a metade das suas 48 aldeias serem varridas pela força das vagas. Entre elas, Kuala Daya, Ujon Meuloh, Lamso e Lambesu, onde, desde finais do século XVI, vivia uma comunidade de luso-descendentes, os ditos «portugueses de Lamno». Distinguia-os do resto da população um modo de vida intercomunitário e traços fisionómicos caucasianos: tinham o cabelo e os olhos claros, amiúde verdes, ocasionalmente azuis. Viviam da agricultura e da pesca e professavam o islamismo, à semelhança dos restantes achéns.

Importa realçar que o destino dessa comunidade única – «um perfeito exemplo de miscigenação assimilada» – suscitou muito mais interesse na Indonésia do que em Portugal. Vários órgãos da comunicação social do arquipélago lhe deram o devido destaque, assumindo aqui a revista semanal Tempo um papel de relevo, visto que consagrou ao tema uma reportagem de nove páginas. O assunto continuaria a despertar curiosidade durante alguns meses, como o confirmava a publicação de artigos nos jornais Waspada Medan e Jakarta Post. Este último, em Outubro de 2005, publicara um texto intitulado The Last Portuguese-Acehnese of Lamno. Em Hong Kong, o consagrado South China Morning Post, na edição de 4 de Março de 2005, incluíra nas suas páginas uma peça da France Press denominada «Acehnese lament the disappearence of their blue-eyed heritage». A dada altura, feita a devida contextualização histórica, o autor do artigo escrevia o seguinte: «Na escola primária de Meutara, duas ou três crianças parecem mais europeias do que indonésias. O cabelo louro de Rauzatul Jannah, demasiado novo para frequentar as aulas, faz com que pudesse passar por europeu». Estes e outros testemunhos alertaram desde logo para a possibilidade da existência de sobreviventes dessa comunidade, que inicialmente fora dada como extinta.

Em Portugal, exceptuando uma ou outra menção, do tipo fait divers e nunca como reportagem de fundo, o assunto passou praticamente despercebido junto do grande público. Ora, essa falta de interesse estava bem expressa no episódio do programa da RTP Príncipes do Nada dedicado ao apoio humanitário português às vítimas. Catarina Furtado limitou-se a uma lacónica observação, sem ter tido a preocupação de contactar com um desses sobreviventes. Eu próprio, quando uns dias após o tsunami, abordei algumas publicações sugerindo-lhes o meu testemunho escrito e fotográfico, uma vez que convivera de perto com essa comunidade, ano e meio antes da tragédia, fui recebido com frieza e velado desinteresse. Atitude que nem me chegou a surpreender, pois lendário é o desprezo a que o país vota temáticas como esta.

No rescaldo da calamidade, o embaixador português em Jacarta, José Santos Braga, aquando de uma deslocação a Achém para contactos com as autoridades locais, manifestara a possibilidade de as entidades portuguesas poderem, de algum modo, participar na reconstrução de Lamno. Seria um «processo moroso, que exige um plano geral de reordenamento territorial, o que implica a relocalização e o redimensionamento dos antigos aglomerados populacionais». Mas, para isso, havia que conciliar a vontade da população e das autoridades locais com «a vontade dos portugueses em se envolverem numa acção de solidariedade». Claro que, para a haver era preciso que os portugueses soubessem da existência dessa comunidade, ou melhor, dos sobreviventes dessa comunidade. O que era pouco provável, pois, exceptuando uns quantos despachos da LUSA e umas quantas menções num ou noutro blogue, os meios de comunicação nacionais, praticamente ignoraram ao assunto. Em contrapartida, o miúdo encontrado na praia com uma camisola da selecção nacional recebeu toda a atenção, tendo sido exibido pelo país qual um animal de estimação.

Santos Braga, que se dizia «à disposição de todos» os que demonstrassem interesse em «fazer renascer a comunidade dos portugueses de Lamno», apontou até sugestões: «Se a ajuda se concretizar, julgo que poderia abranger, por exemplo, um serviço público – escola, centro de saúde, centro de reuniões da comunidade, infra-estrutura desportiva. Também me parece que poderia ser útil o apoio na área da formação profissional, continuação de estudos e retoma da actividade piscatória». Lamentavelmente, o desejo do diplomata parece ter caído em saco roto, e, até hoje, nada foi feito nesse sentido.

Entre as centenas que perderam a vida no tsunami de 2004, constava T. R. Adam, um nativo de Lamno que, ano e meio, antes me indicara o nome de pessoas que me poderiam ajudar nas minhas pesquisas. A investigação mostrar-se-ia, como mais adiante demonstro, difícil de concretizar, pelo que decidira guardar a tarefa para uma outra viagem ao Achém. Infelizmente, esta só se realizaria uma vez consumada a tragédia. Limito-me agora, através de fotos e recordações escritas, a prestar tributo à memória dos membros dessa comunidade. Uma comunidade que me demonstrou a sua hospitalidade, quebrada a inicial barreira da desconfiança, naturalíssima numa zona de conflito. Há que considerar que muitos deles eram simpatizantes da causa independentista, já que achéns de corpo e alma se assumiam.

MALÁSIA: O kampung portugis de Malaca

Todo o desenho arquitectónico no centro histórico da velha Malaca, dominada pelo vermelho ocre, é assim uma espécie de adaptação holandesa do estilo indo-português. Pouco se acrescentou aos motivos decorativos que encontramos noutras cidades da região, como Macau, por exemplo, onde os holandeses nunca estiveram, apesar das tentativas. Em grande destaque surge a Christ Church Melaka, templo protestante com o pavimento pejado de lajes tumulares com inscrições portuguesas, pois foram retiradas das nossas igrejas aquando a destruição da cidade pelos calvinistas. De pé, ficaram apenas as paredes da igreja da Nossa Senhora do Monte, erguida e 1571 no outeiro de São Paulo. Este era a templo dos jesuítas, várias vezes visitado por Francisco de Xavier que aqui repousou temporariamente os ossos, antes de ser transladado para Goa. Encostadas às paredes interiores, lápides funerárias com inscrições em latim, português e holandês. Entre elas, destaco a lápide de D. Miguel de Castro, um dos capitães da fortaleza da Malaca, posto muito apetecido naquela época.

Outro importante testemunho é a Porta de Santiago, único sinal visível da outrora imponente A Famosa. Mas até aí a mão calvinista se fez sentir, substituindo o brasão original pelo da Companhia das Índias Ocidentais, datado de 1670. Ali perto, embutida num muro, uma laje com o brasão de armas de Afonso Henriques, encontrada quando se escavava a colina de Malaca.

Muito antes da chegada dos portugueses, povoavam Malaca inúmeros chineses, como o bem demonstra a animada e colorida chinatown. De entre o típico casario, assumem particular relevância as casas dos peranakhan (chineses nascidos no Estreito de Malaca) e dos baba-nonyas (chineses resultantes da miscigenação com os portugueses) transformadas em casas-museu, antiquários ou até pensões. Se era certo que chineses, indianos e malaios resguardavam, no centro histórico de Malaca, os seus mais antigos templos – respectivamente, Cheng Hoon Teng, que honra o almirante Zheng He, o templo hindu Sri Pogyatha Vinoyagar Moorthi, e a bela mesquita de Kampung Kling, de um estilo importado da vizinha ilha de Samatra –, certo era que a maior cartaz turístico continuava a ser o Kampung Portugis, publicitado pelos estabelecimentos comerciais espalhados pela cidade que aproveitavam o exotismo dos luso-descendentes para tirar dividendos. A tão apregoada «portuguese seafood», cuja degustação era ponto assente entre os visitantes, longe andava de uma aceitável autenticidade. Mas isso pouco importava. Era deliciosa, os preços acessíveis e quanto baste a variedade, com a vantagem de poderem, os curiosos, assistir às actuações de dança e música luso malaia contactando de perto com uma distinta classe de gente, essencialmente pescadora, que teria todo o prazer em comunicar, se fosse caso disso, com o camerada portugi recorrendo ao papiá kristang, o crioulo local que alguns dos mais velhos ainda falavam.

Foi no Medan Portugis, a praça principal do bairro, que reencontrei o meu amigo Joe Lazaroo, entusiasta dinamizador da tradição musical portuguesa. Depois de uma bebida celebrativa no seu Restauran San Pedro, o mais antigo do bairro, inaugurado em 1977 – não resistindo o homem em cantar o Tia Anica acompanhado à viola –, levou-me a uma das esplanadas locais para degustarmos os pratos típicos da cozinha local, toda ela fortemente condimentada. Falo do curry seku (caril seco, habitualmente de bife), do debal curry (caril de galinha ultra picante, «o caril do diabo») e o curry kapitan.

Joe conduziu-me ainda à concorrência, ao Restauran de Lisbon, onde conheci o famoso Jorge Alcantra, que logo correu ao baú para retirar uma quantas fotos que me mostrou com orgulho. Ali estava, uns bons anos mais novo, no convés do navio escola Sagres, na companhia do comandante e demais oficiais, nas duas ocasiões em que a barca aí fizera escala nas viagens de circum-navegação, de 1984 e 1993. Mostrou-me ainda o livro com aguarelas de Roger Chaplet, que o comandante da barca do Infante lhe tinha oferecido, devidamente autografado.

Se na Malásia o bom nome, espírito jovial, a música e a culinária dos kristang eram sobejamente conhecidos, no bairro, em contrapartida, poucos eram os que tinham uma ideia do que realmente Portugal significava ou como pensavam e sentiam os portugueses. O contacto com os patrícios ocidentais limitava-se a encontros esporádicos com os raros visitantes que prometiam muito mas pouco faziam.

– Estamos para aqui esquecidos – queixava-se Joe Lazaroo. – Se não alterarmos esta situação, passaremos de museu-vivo a uma simples decoração folclórica para turista apreciar.

Era o apelo que todos faziam, sempre que tinham oportunidade. E quem estivesse disposto a ouvi-los ficava com as orelhas a arder.

Um lugarejo de setenta habitantes com casas de chão de areia distribuídas por doze hectares a três quilómetros do centro da cidade, assim era o Kampung Portugis original, louvável iniciativa de dois missionários, em 1930, daí o local ser inicialmente conhecido como Chão di Padre. Em jeito de homenagem, as ruas do peculiar bairro adoptariam os apelidos de cinco ilustres personagens da história de Malaca: Albuquerque, o conquistador; Sequeira, Diogo Lopes Sequeira, o primeiro navegador luso a pôr os pés na cidade, em 1509; Teixeira, oficial enviado a terra para oferecer presentes ao sultão; Araújo, soldado aprisionado juntamente com Sequeira; e, finalmente, Eredia, Manuel Godinho Eredia, o malaqueiro instruído, que, em 1615, escreveu uma história da cidade. Os lusos apelidos subsistiriam com as famílias; sobreveio depois a miscigenação com as nonyas – mulheres de famílias chinesas estabelecidos na Malásia e que perderam as suas raízes com o Império do Meio – mas isso seria outra história. Para que conste: foi da união matrimonial entre portugueses e chinesas da Malásia – que se deslocariam posteriormente para Macau – que surgiriam os primeiros macaenses.

Não se pense que a ramificada e abundante descendência dos homens de Albuquerque, tenha permanecido no perímetro delimitado pela rua principal e as quatro transversais que retalhavam o Chão di Padre em casas com pequenos jardins e imagens de santos populares nas paredes. Ela espalhou-se por toda a Malásia, gozando hoje de excelente reputação. Os kristang são conhecidos pelos seus dotes culinários e artísticos e pelo seu espírito galhofeiro. Ocupam, no país e em Singapura, as mais diversas actividades profissionais – políticos, funcionários públicos, médicos, músicos, actores e jornalistas. Pude comprovar isso mesmo folheando o jornal diário em língua inglesa The Sun. Na primeira página, a analista de política, Claudia Theofilo, relatava mais um caso de corrupção que viera recentemente a lume. No verso, Neville de Cruz falava-nos de um político malaio acusado de dever dois milhões de dólares australianos contraídos em dívidas por causa do jogo, e, a página três, Martin Carvalho registava, a partir de Malaca, os comentários proferidos por um dos embarcadiços malaios feitos reféns por piratas indonésios, uns meses antes. A jornalista Anna Maria, por sua vez, analisava o recrudescimento das doenças cardíacas na Malásia, enquanto a sua colega Claudia Lopez apontava o dedo as deficiências existentes no sistema de abastecimento de águas nos centros urbanos e o repórter Nelson Fernandez entrava em detalhes sobre um crime de foro comum. No suplemento de economia, Phillipe Reis tecia comentários sobre a débil situação do ringgit, e na secção do desporto Aloises Francis e Graig Nunis traziam-nos as últimas do futebol e do atletismo malaio. Todos esses jornalistas eram filhos di Malaca que deixaram o bairro português (muito provavelmente já nem falam a língua dos seus antepassados) e partiram para as grandes cidades. A sua preponderância na sociedade é tal que, é à minhota que traja uma das quatro raparigas que interpretam o hino nacional malaio no fecho da emissão do canal televisivo estatal. As outras três envergam a veste tradicional malaia, chinesa e indiana.

Na sua obra Entre chineses e malaios, o cardeal José Costa Nunes, bispo de Macau, responsável pelas missões de Malaca, Singapura e Timor, nas primeiras décadas do século XX, dá-nos prova da vitalidade dessas comunidades, sobretudo as de Serembam e Kuala Lumpur, para onde viajou na companhia de «um português de Malaca chamado Lopes». Ali o esperavam 200 luso-descendentes, entre os quais funcionários do governo inglês, médicos, advogados, professores, negociantes, proprietários, empregados bancários e de companhias comerciais, «muitas senhores e homens», enfim, toda uma população eurasiana exprimindo-se em papiá kristang e gloriando-se dos seus apelidos e da sua ascendência lusitana.

Talvez devido a essa experiência no terreno, o prelado açoriano insurgiu-se contra a posição, nesta matéria, de uma das mais importantes figuras da intelectualidade portuguesa do final do século XIX, o historiador, político e cientista social Joaquim Pedro de Oliveira Martins. Costa Nunes escreve o seguinte: «Quando os escritores de qualquer país procuram reivindicar glórias nacionais, Oliveira Martins parece sentir um prazer cruel negando-as, como acontece, por exemplo, na questão da prioridade do descobrimento da Austrália atribuído a Manuel Godinho de Erédia, natural de Malaca».

Assumindo uma toada derrotista, sofrendo da neurastenia que afectou os homens da sua época,Oliveira Martins atribuía a posse de Macau a «um bando de piratas portugueses», e, em sua opinião, Malaca não passava de «um convento e um quartel onde os frades e os soldados mercadejavam», considerando miseráveis as populações mestiças da cidade, classificando-as de «degeneradas, simiescas e abjectas». Eis alguns dos seus mimos: «Sobre todos se levanta o português, com a sua Erx, templo ou fortaleza, que devia ser de civilização ou extermínio, e que por fim, lástima é dizê-lo, foi apenas a nau que nos levou, aos portugueses de Malaca, a descermos à condição de degenerados, poluindo o nosso sangue ariano, esquecendo as nossas tradições europeias. Já disse com melancolia que ainda hoje há «portugueses» em Malaca, mas que esses portugueses são como os orangbemas. Em contacto com a caducidade venenosa do Extremo Oriente, intoxicámo-nos».

Iria mais longe o reputado escritor, assumido «vencido da vida», ao perfilhar as apreciações de um antropólogo, um tal Dr. Yvan, que teria analisado a compleição física dos cristãos portugueses de Malaca, afirmando que estes «são fisicamente horrendos e moralmente abjectos, que têm feições bestiais, que são uns degenerados morais, que são inferiores aos malaios e que já se lhes apagou da memória a tradição, essa saudade das raças decaídas». Enfim, um pensamento proto fascista muito na linha do filósofo francês Arthur de Gobineau, autor do Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855), e inventor de um dos grandes mitos do racismo contemporâneo, o mito ariano, sendo dele a célebre frase «não creio que viemos dos macacos mas creio que vamos nessa direcção».

Recorde-se que foi em homens como Gobineau, e mais tarde no inglês Houston Stweart Chamberlain, que Adolf Hitler buscou inspiração para por em prática a sua tristemente célebre «solução final».

Tal como Gobineau, Oliveira Martins era declaradamente racista, pois defendia a tese de que os povos formados a partir do negro e de índio eram incapazes para o tão desejado progresso. Parece óbvio, que o insigne historiador nunca pôs os pés no Extremo Oriente, se alguma vez chegou a sair do rectângulo ibérico, que tanto admirava, pois era um convicto iberista.

Persistentes, cônscios das suas tradições centenárias, os habitantes do bairro, os tais orangbemas de que falava Oliveira Martins, tinham sobrevivido a todas essas teses e continuavam a celebrar o Natal, o Entrudo, a Páscoa e, sobretudo, a Festa de São Pedro, padroeiro dos pescadores, em finais de Junho, incluída no calendário oficial dos Serviços de Turismo da Malásia. A mais concorrida festividade do país, o San Pedro, como lhe chamam, é excelente pretexto para reencontros entre residentes e seus familiares de Singapura, Kuala Lumpur e demais províncias malaias.

Estávamos na véspera desse evento. O largo do bairro enchera-se com barracas de comes e bebes, tômbolas e feirantes chineses – estes últimos alheios ao espírito da festa, mas que a tolerância dos locais admitia. Ao longo da tarde suceder-se-iam jogos tradicionais para crianças e mulheres, competições de pesca à rede entre os homens do mar, o jogo do pau, a manilha e a malha e, à noite, entrariam em acção os dois ranchos do bairro, o Rancho Folclórico de San Pedro, liderado por Joe Lazaroo, e o Tropa di Malaca. Tempos houve em que existiam vários destes grupos, assim como equipas de futebol, entretanto desaparecidas.

No palco, além de se interpretarem cantigas como o Malhão, a Tia Anica ou o Vinho Verde, devidamente ilustradas por bailadores e bailadoras trajando à minhota, que batiam o pé ao som do violino e do acordeão e ao compasso do tambor de caixilho, houve espaço ainda para às bandas de rock locais e as coreografias de adolescentes dando corpo aos êxitos musicais do momento, culminando a festa com o branyo – bailar típico dos pescadores de Malaca – que reuniu novos e velhos numa animada pesta que se prolongaria até de madrugada.

O momento alto desta festividade é, contudo, a missa de domingo seguida do préstito com o andor do santo e a bênção dos barcos engalanados e de cara lavada que, varados, aguardam à beira mar. A decoração dessas embarcações dá azo a concursos muito disputados, e a cruz, a imagem de São Pedro e os versos bíblicos escritos em português e em inglês, lado a lado com figuras de peixes, pescadores, sereias e utensílios de pesca são os motivos decorativos mais usuais. Vi, no topo de alguns mastros, esvoaçar a bandeira das quinas, prova de que, apesar dos constrangimentos, os kristang continuavam a identificar-se com os seus antepassados; insistiam em olhar para Portugal como a sua verdadeira pátria.

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Extractos da obra OS FILHOS ESQUECIDOS DO IMPÉRIO, de Joaquim Magalhães de Castro.


 Sobre Joaquim Magalhães de Castro

É escritor e jornalista de viagens. Acabou de publicar o seu terceiro livro, O Mar das Especiarias, pela editora Presença.