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Parnaso de Bocage, Rei dos Brejeiros

Para Hilda Hilst

“Este que vês, com olhos macerados,
Não é Bocage, não, rei dos bregeiros.
São apenas seus olhos descarnados:

Fugiu do cemiterio aos companheiros:
Anda agora purgando seus peccados
Glosando aos cagaçaes pelos outeiros.”
(Belchior Manuel Curvo Semedo)

“Amor sempre varia os seus deleites,
Eu mostrei-te o modelo(…)”
(B.)

Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) é um caso e tanto em matéria de libertinagem. Mesmo que não se tenha lido jamais qualquer de seus poemas, o seu nome, trombeteado pelas mil bocas da má Fama, está definitivamente inscrito na lista dos sócios cativos desse clube, em geral bem animado. Outro frequentador dos arredores, Nelson Rodrigues, já dizia a propósito que o “Bocage fidedigno”, restrito aos poemas autógrafos ou enfim às suas obras, esse “nunca existiu”:

“Para mim, o verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o Bocage de anedota.”[1]

Que, aliás, pelo que se lê da sua crônica “Bocage no Futebol“, de 1956, é sobretudo o mestre dos “rijos e imortais palavrões da língua”: o boca suja, enfim. Daí deduzir muito necessariamente que “está para nascer um jogador ou um torcedor que não seja bocagiano”[2].

Pela calçada contrária da mesma rua, entretanto, esse eco que vagabundeia do pitoresco ao devasso e ao debochado, teimando em divulgar-se com Fortuna própria, sem o cotejo dos textos, fez com que Olavo Bilac postulasse a urgência de se depurar, desse emaranhado fantasioso e popularesco, o Bocage que era um dos grandes da língua e ombreava com Camões no esmerilho de todas as formas poéticas elevadas. Sua grande fraqueza fôra ter cedido ao gosto da fama fácil que sempre se obtém a custo de “extravagâncias jocosas ou escandalosas e pequeninas infâmias”. Não seria preciso mais para que o vulgo se animasse a, como diz, catar “caramujos neste rosal” e rebaixar a montanha ao pântano[3].

Assim, nessa mesma conferência, pronunciada em março de 1917 na Sociedade de Cultura Artística de S.Paulo, conclama a que

“congreguem-se todos os bons amigos da Poesia no piedoso trabalho da rehabilitação de tão alto cantor e adoravel artista! Não fiquem sobre o seu nome tantas crustas de lodo! Esqueçam-se as tristes palavras de amargo rancor e feia licenciosidade, que o descontentamento, a má educação do tempo, a miseria, o desamparo moral inspiraram a Elmano; rasguem-se, queimem-se, com asco e horror, todas essas invenções impressas, com que descarados escrevinhadores procuram, sob a capa da fama do grande poeta, explorar a algibeira e depravar o gosto do povo; leiam-se e releiam-se os perfeitos versos em que ele cantou seus amores e as suas desgraças; e alvoreça para ele a verdadeira e definitiva gloria.”[4]

As duas posições ajudam a balizar um pouco a “questão” Bocage. Mas o que é penoso perceber, antes de mais nada, é que Bilac podia falar de exploração comercial em edições vulgares dos poemas de Bocage. Para nós, hoje, é quase um sonho isso. Graças ao fantástico descalabro da educação no Brasil, cultivado com aplicada continuidade desde os governos militares até agora, Bocage, por aqui, sequer mais má fama tem. O “gosto do povo”, sem apurar-se, já não parece estar interessado por quaisquer de seus versos, brutalmente satíricos ou não. O futebol e os palavrões parecem resistir um pouco melhor.

A crítica literária também pouco tem-se ocupado dele, mas isto não só no Brasil; em boa parte, talvez, devido à dificuldade de se lidar com um autor que fica nesse lusco-fusco da produção letrada do último quartel do século XVIII ibérico, em que os valores gongóricos, árcades, neoclássicos, iluministas, rococós e pré-românticos aparecem todos, ao mesmo tempo, diluídos e misturados. Não bastasse isso, a amplitude de sua obra, a variedade dos gêneros que exercitou, os equívocos alicerçados na má fama e nas más edições, seja o que for –, conhecemos Bocage cada vez menos. Dar-me-ia por satisfeito, pois, em esboçar uma ou outra baliza relevante para a sua leitura.

I. Gênero e sistema de decoros

A primeira coisa a fazer, retomando o que dizia a partir das posições de Nelson Rodrigues, que apenas queria saber do chocarreiro, e Olavo Bilac, que desejava um Bocage limpo da lama que o século acumulara sobre o seu gênio, é deixar de lado essa idéia de um autor que cabe recortar ou repartir para servir a gosto. Sequer temos suficiente conhecimento do todo, para que possamos disputar a sério a respeito da conveniência das partes. Depois, o abandono a priori do satírico baixo, ou inversamente do lírico alto, é procedimento que, na crítica — não em criadores como Bilac ou Nelson –, faz água por todos os lados. É perfeitamente reconhecível o puritanismo dos estudos literários, imbuídos sempre de alguma missão pedagógico-iluminista, cívico-nacional ou revolucionário-popular, que usualmente leva a que lidem bastante mal com os gêneros baixos. Sobretudo, mostram-se incapazes de compreender que, para estes, ao menos na chave aristotélica largamente reposta pelas poéticas dos séculos XVII e XVIII ibéricos, valem critérios de mestria de composição, engenho de invenção e refinamento de gosto e doutrina, tão rigorosos quanto para os gêneros elevados.

Assim, por exemplo, o Conde Emanuele Tesauro (1592-1675), patritio torinese, em seu célebre Il Cannochiale Aristotelico (Veneza, 1654), a mais importante e complexa preceptiva do século XVII a propósito da elocução aguda, ao lado daquela do jesuíta espanhol Baltazar Gracián, observa o seguinte no capítulo intitulado Tratado dos Ridículos:

“Ora, não deves ter nojo de filosofar sobre Matérias nojentas para colher quase que da lama as gemas de uma Arte nobre; sendo o raio do Intelecto humano semelhante ao do Sol, que tem o privilégio de fluir sempre limpo por sobre as imundícies. Também a mente humana participa da Divina e com a mesma Divindade habita nos pântanos e nas estrelas: e do mais sórdido lodo, fabricou a mais Divina das Criaturas Corpóreas.”[5]

Mesmo admitindo que mais tarde declina o peso das analogias tomistas aí postuladas, é evidente que a sátira, enquanto gênero, com regras perfeitamente definidas, está em alta na produção letrada do século XVIII português, cultivadíssima ainda nas mais sisudas academias de província. Nesse sentido, deveríamos admitir decididamente que para lermos bem a obra de Bocage, mesmo a mais séria, conviria ter presente no espírito a obra satírica a que dedicou enorme atenção, não fôra tempo apenas, ao longo de sua grande produção e curta existência.

Mas não basta reconhecer a arte do sórdido, para expurgar o moralismo de vez do reino. Nosso atual Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens é pelo menos tão moralista ao ler o baixo como supérfluo ou secundário, quanto em propô-lo como principal e interpretá-lo logo como arauto triunfante da subversão. Moralismo às avessas, muito típico de modernos, pseudos. Já não basta que vejamos uma sátira, e mais ainda as que se fazem com despique e dor, segundo o aristotelismo perverso do barroco[6], e logo queiramos ver aí a chave da modernidade do autor? (Que, em tudo o mais, mísero, teve a má sina de viver no seu próprio tempo, que julgamos atrasadíssimo, com consciência possível que não chega a meia?) Não desistiremos de encontrar aí algum toque revelador de seu gênio inconformista e libertário?

Pois, verossimilmente, não é o caso: nem geral, para os autores do Antigo Regime ibérico, muito ciosos da unidade do corpo místico da res publica; nem particular, para Bocage. Neste, não há meio de sustentar o seu afã revolucionário ou contestador, mesmo tomando-se a sua obra obscena como primeira de todo o conjunto. A boa sociedade portuguesa, do fim do XVIII, enfiada no mundo de mediocridade pacífica e segura em que mais ou menos se firmava depois de Pombal, tudo supervisionado muito a miúdo pelo Intendente de Polícia, o temível Sr. Pina Manique[7] –, pois, essa boa sociedade assistiu inúmeras vezes o talento de Bocage desempenhar vivamente o elogio das autoridades do Reino, encabeçadas pelo Ministro José de Seabra da Silva e pelo Príncipe D. João, regente primeiro, depois sexto rei do nome. Aniversários e natalícios de gente principal, por exemplo, não era ocasião que o bardo deixasse passar em branco. Nos “faustíssimos anos da fidelíssima Rainha de Portugal, D. Maria I”, cantava:

“Maria, a mãe de heróis, de heróis a filha,
A Jove mereceu tão novo indulto,
Trouxe tão novo indulto à Natureza.
Seu natal sobressai aos mais fulgentes
Quanto no etéreo cume, alardeando
Torrentes de fulgor, que o pólo inundam,
Vence o planeta majestoso, intenso
Tênue luz, que esmorece em negra estância.”[8]

Comparável grandeza, apenas a do Príncipe a que dera luz:

Sim, Rainha imortal, se a bem do mundo
Prenda tão cara, não lhe houvesse dado;
Se, doce fruto de amorosa planta,
Teu mimo, teu penhor, delícias tuas,
João, sangue de heróis, que o Tejo adora,
A nossos corações negado fosse,
Ninguém te igualaria aquém dos numes.”[9]

Não se trata, entretanto, de qualquer particular compulsão subalterna e bajuladora, como poderíamos apressadamente imaginar, pouco afeitos a compreender as determinações históricas da cultura. Por um lado, o oferecimento dos poemas em tais ocasiões inscreve-se no domínio tradicional do elogio, em que o encômio do superior podia garantir valimento ao poeta, ou mesmo socorro econômico imediato. Tratava-se de desempenhar um gênero, que não é apenas formal, mas compreendido numa pragmática, e Bocage, como todos os outros de mesmo ofício, desincumbia-se perfeitamente disso. Por outro lado, necessariamente, as qualidades assinaladas pelo poeta postulavam verossímeis de valor, que referiam as virtudes constituídas como obrigação efetiva para os príncipes e senhores:

“Sim, Rainha imortal, modelo augusto
De quantas perfeições, quantas virtudes
De Astreia ao lado para o Céu fugiram (…)”[10]

Elogiar, aqui, é igualmente lembrar o dever amoroso do governante para com sua gente, fundamento da legitimidade do exercício do poder. Como recomendações poéticas já não têm peso algum, fizemos bem em retirar qualquer dignidade atual no exercício do gênero; mas então não era o caso:

“(…)Agora se embelezam céus, e terra
Na glória, no prazer, nos bens sem conto,
Que do grande João recebe a pátria,
A pátria de que é pai, senhor, e ornato.”[11]

Embora relativizada, vale ainda para Bocage uma afirmação como a que John Beverley vai fazer, de maneira muito apropriada, a propósito da poesia encomiástica de Sor Juana, que representava para ela “precisamente la possibilidad de su inserción directa en la estructura de poder virreinal”[12]. Claro que, entretanto, “inserção no poder”, para Bocage, não significava mais que reconhecimento institucional de seu ofício e obtenção de valimento, traduzido em benesses mais ou menos localizadas. Vão longe as exigências radicais de Camões ou de Vieira que viam na assimilação de suas artes pelo Reino uma verdadeira condição de expansão imperial.

E vale a pena lembrar que Bocage, no que toca ao elogio genérico da autoridade, sequer deixou de vibrar a sua lira a favor do “Gênio Lusitano”, muito amigo da “Polícia”, que expulsou das imaculadas terras portuguesas o fantasma falacioso da “Libertinagem”. É este o argumento de “A Virtude Laureada”, drama para música num único ato; aí, a personagem alegórica do “Gênio”, passeando só, na praia, percebe que um “ufano baixel retalha o Tejo”:

“Eis voa, eis se aproxima!… Um quase monstro,
De aspecto feminil, tigrinas garras,
De traje multicor, lhe volve o leme!
Que turba enorme à sua voz mareia,
E o ferro curvo, e negro ao fundo arroja!
Desce a vaso menor a horrível Fúria,
Reconheço-lhe o rosto, os fins lhe alcanço…
Lá vem, lá toca sobre a areia e salta.
Inimiga dos Céus! És tu, profana!
Sacrílega, falaz, blasfemadora,
Peste dos corações, órgão do Averno!
Vens também macular com teus venenos,
Com hálito infernal, e atroz sistema
Campos, que meu bafejo elíseos torna!”

Ao que torna, insidiosa, a “Libertinagem”:

“Órgão não sou do Averno, o Averno é sonho
Para mim, para os meus; não sofro o jugo,
Que sobre os corações tão férreo pesa.
Fantásticos deveres não me iludem;
O sensível me atrai, do ideal não curo,
Só de palpáveis bens fecundo a mente;
O bando, que alicio, e que prospero,
Vive em prazeres, em prazeres morre.”[13]

E adianta a sua fala mansa, com o anúncio de uma boa nova para Portugal:

“Delícias ao teu seio, ó Lísia, trago,
Não cruas opressões, nem agros males,
Que o fantasma Razão produz, maquina;
Eu sou a Natureza: ela não manda,
Que o gosto oprimas, que os desejos torças (…)”[14]

Não se comove, entretanto, o incorruptível “Gênio” da nação com o canto de sereia da “Libertinagem”:

“Moral, religião, saudável jugo,
Que pesa aos ímpios, que aos iníquos pesa,
Nunca foi grave a Lísia (…)”[15]

Por fim, a “Libertinagem” confessa inúteis os seus desvelos face ao “grêmio da Inocência” que é Portugal:

“Colheste contra mim triunfo inútil:
Lísia perdi, mas senhoreio o mundo.”[16]

E o “Gênio” triunfante exalta a sua “tropa armada”:

“Graças, ó numes, sucumbiu a infame!
Heróis, eu vos bendigo o márcio fogo,
O rápido valor, que num momento
A melhor das nações salvou do estrago…”[17]

Assim como exorta a Jove para que abrase com seus raios o baixel da fera em fuga, no que é prontamente atendido. O “Gênio lusitano”, então, ao lado da “Hospitalidade”, encaminha-se para o salão majestoso da “Polícia”, diante do qual manifesta o seu “profundo respeito”:

“Eis-me na estância da Polícia augusta,
Cultora da razão, das leis, do sólio.”[18]

Mas que não se leia nisto, tampouco, enganadamente, qualquer fanatismo ordeiro de Bocage, que não há. As tópicas repassadas pela fala da alegoria da Libertinagem são amplamente desenvolvidas, e favoravelmente, em outros poemas seus, como aquele da “Epístola a Marília”, que inicia “Pavorosa ilusão da Eternidade…”, e que, segundo consta do anedótico a seu respeito, seria um dos que lhe teria valido a prisão de 1797, que lhe durou um ano. Trata-se aqui, como antes, de empenhar seu engenho nas tópicas e ocasiões que o solicitavam, nem sempre igualmente toleradas pelo empirismo rijo da autoridade, mas sempre aplicando o decorum das poéticas classicizantes. Vale dizer, aplicando o sistema de conveniências que faz corresponder o estilo à matéria tratada, e assim, incorpora regradamente mesmo a matéria mais vil. O próprio Bocage o afirma, de maneira claríssima, numa passagem da epístola Pena de Talião, escrita contra seu antigo companheiro da Nova Arcádia, Frei José Agostinho de Macedo (1761-1831):

“Tema, que escolhes, gênero, que abraças,
Não te honra, nem desluz: no desempenho
O lustre, a glória estão. Tem jus à fama
O vate, ou cante heróis, ou cante amores,
Contanto que Febo as leis não torça,
Aos mui vários assuntos ajustadas.
Coa matéria convém casar o estilo:
Levante-se a expressão, se é grande a idéia,
Se a idéia é negra, a locução negreje,
E tênue sendo, se atenue a frase.”[19]

Afirma-se, pois, a pertinência do sistema de decoros e desqualifica-se a hierarquia do temas face à qualidade do desempenho. Percebe-se então que seria parcial demais tomar-se exclusivamente a matéria fescenina como afeita a Bocage, ou contrariamente apenas a lírica. E isto ainda por um outro motivo, além dos já referidos que nos obrigam a recusar moralismos, diretos ou às avessas, e compreender a funcionalidade, formal e pragmática, do decoro. É que, a rigor, se estamos interessados no Bocage libertino, dificilmente poderíamos deixar de considerar alguns de seus poemas rococós, em geral pessimamente lidos pela sua fortuna crítica, nisto muito mais infeliz que afortunada. Eles têm sido frequentemente despachados como sem interesse, sobretudo em nome de seu convencionalismo, de modo a valorizar os poemas que referem as experiências solitárias no cárcere e que permitem entrever os lugares noturnos de turbulência pré-romântica. Como se, nestes, não houvesse construção e o locus horrendus não fosse tão efeito de artifício e retórica[20], quanto o locus amoenus.

Apenas generalizando os critérios posteriores da crítica romântica, que desqualificaram as produções de modelo universal, cuja invenção assentava nos lugares comuns, vale dizer, no dado de tradição cultural, e não na especificidade local ou na originalidade pessoal, pudemos passar por esses poemas sem reconhecer de imediato o quanto têm de deliciosamente maliciosos e atrevidos. Assim é só surpreender um desses sonetos em que Bocage desenrola a cena galante dos pequeninos Amores, “brandos sequazes” de Cupido, estabanado e cruel, para percebermos que, se o caso é pensar o libertino bocageano, simplesmente eles não podem ficar de fora. Eis um desses, tomado quase ao acaso:

“Mavorte, porque em pérfida cilada
O cruel moço alígero o ferira,
Não faz caso da mãe, que chora e brada,
Quer punir o traidor, que lhe fugira:

Na sinistra o pavês, na dextra a espada,
Nos ígneos olhos fuzilante a ira,
Pula à negra carroça ensanguentada,
Que Belona infernal coas Fúrias tira:

Assim parte, assim voa; eis que vê posto
No colo de Marília o deus alado,
No colo aonde tem mimoso encosto:

Já Marte arroja as armas, e aplacado
Diz, inclinando o formidável rosto:
“Valha-te, Amor, esse lugar sagrado!”[21]

O Amor encolhido como um bichinho de estimação nas elevações do colo de Marília, ou zombando, matreiro, da ferocidade das armas de Marte face ao atavio das suas, é cena de um buliçoso inestimável, que Boucher ou Fragonard apenas saberiam dar à vista com inteiro charme e malícia. O mesmo colo deleitoso de Marília é objeto de um gracioso equívoco em que a fidelidade de seu ânimo amoroso confunde-se com a dureza dos seios:

“Reside em teus costumes a candura,
Mora a firmeza no teu peito amante,
A razão com teus risos se mistura(…)”[22]

Divulgadas as perfeições da amada nos ornatos delicados do recreio campestre, o lugar do amor, mais que ameno, nunca ingênuo, é mesmo quase perverso, tantas são as inocências e delícias, ajuntadas, ornadas e oferecidas:

“Olha, Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?

Vê como ali beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores!

Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurrando gira (…)”[23]

A cena pastoril, recortada pelos beijos que se dão os Amores a excitar os amantes, tem remate insuperável nesse movimento inquieto das “abelhinhas”, insetos galantes por excelência pela disposição das cores, o picante e o venenoso, que parecem hesitar, mas não, e finalmente já não zumbem: sussuram. O libertino de tipo bocageano, aqui, assinala a graciosidade falsamente inocente, que dispõe véus apenas para insinuar as perfeições do corpo da amada; e quando não o faz por desenho e vista, convoca logo o exercício concupiscente da fantasia:

“Debalde um véu cioso, oh Nise, encobre
Intactas perfeições ao meu desejo;
Tudo o que escondes, tudo o que não vejo
A mente audaz e alígera descobre:

Por mais e mais que as sentinelas dobre
A sisuda Modéstia, o cauto Pejo,
Teus braços logro, teus encantos beijo,
Por milagre da idéia afoita, e nobre:

Inda que prêmio teu rigor me negue,
Do pensamento a indômita porfia
Ao mais doce prazer me deixa entregue:

Que pode contra Amor a tirania,
Se as delícias, que a vista não consegue,
Consegue a temerária fantasia?”[24]

Enfim, nesses poemas, todo o assustadiço, o grácil ou mavioso é tudo melindre e indústria maliciosa que, exatamente porque fere de través, com a face mais terna e inocente, parece ainda mais avizinhar-se da licenciosidade. Talvez mais do que em poemas em que o mesmo desejo se confessa às claras:

“Em deleitoso e tácito retiro,
Suspensa entre temor, entre o desejo,
Flutua a bela, a cuja posse aspiro(…)”[25]

Certo é, pois, que não chegaríamos a conhecer bem a libertinagem de Bocage, qualquer que seja, sem nos determos nesses poemas próprios de um tipo de galanteria encantadoramente brejeira e equívoca, típica do rococó, para os quais encontra soluções admiráveis. O libertino, nele, certamente não é privilégio da chalaça ou da poesia burlesca.

II. Convicção política e retórica do sublime

Exatamente por isso, é fundamental considerarmos as determinações do gênero para entendermos o libertino. Não fôra assim, seria preciso retornar à cirurgia que desde o início procuramos evitar e que reteria de Bocage apenas a parte que nos parecesse verdadeira, atribuindo ao fingimento público e à dependência a indiscreta existência das demais. Aliás, não faltariam termos do próprio Bocage a nos autorizar a drástica medida, figurados todos no célebre fecho: “Rasga meus versos, crê na eternidade”[26].

No interior dessas determinações de gênero, também os sentidos efetuados por elas precisam ser examinados, a fim de que seus conteúdos nem sejam tomados literalmente — o que criaria equívocos impressionantes de interpretação, pois, segundo o caso, Bocage trata-os de maneira oposta entre si –, nem segundo uma hermenêutica romântica, como referentes imediatos da sinceridade pessoal. Sem tais precauções, não seria possível compreender, por exemplo, como alguém que louva desta maneira a liberdade anunciada pela Revolução Francesa e a consolidação da República:

“Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (triste de mim)! porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?

Da santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo que desmaia:
Oh! Venha… Oh! Venha, e trêmulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao mortal, que frio e mudo
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo:

Movam nossos grilhões tua piedade;
Noso númen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do gênio e prazer, oh Liberdade!”[27]

— não seria possível compreender, dizia, como alguém que aguardava ansiosamente a liberdade que viria romper o despotismo vigente em Portugal, pela mesmíssima época andasse igualmente chorando a “trágica” morte de Maria Antonieta ordenada pela “turba feroz de monstros pavorosos”, e maldizendo a geral impiedade desse “século nefando” e “horrendo aos séculos vindouros”. A esperada liberdade, de um momento para outro, já não passava de “funesta” e “insolente”, e a pobre Rainha “malfadada vitima inocente” do “infame e sacrílego atentado de que treme a Razão e a Natureza”:

“Justos Céus! Que espetáculo tremendo!
Que images/stories de terror; que horrível cena
Vou na assombrosa idéia revolvendo!

Que vítima gentil, muda e serena:
Brilha entre espesso, detestável bando,
Nas sombras da calúnia, que a condena!”[28]

O ornato do “gesto brando”, as “graças” dos olhos voltados para o Céu, “aquelas mãos que semearam dádivas” e que brincaram com “cetros auríferos”, nada disso vale à semidéia face à “raiva dos terríveis assassinos”. E quando cai a guilhotina, o que soa é o “duro corte” da “tirania” — sim, Bocage agora descobre-a do lado oposto ao do poema anterior, em meio ao “povo alucinado”.

Ora, está bem claro que, em um caso e outro, nunca foram as convicções políticas que inspiraram o entusiasmo ou o gosto desses versos. Neste último, o que evidentemente impressionou a fantasia de Bocage foi o patético da cena condensada no choque entre o porte hierático da rainha, frágil embora, e o tumulto brutal da multidão: o flagrante da paixão vívida, turbulenta, contrastada com a branda majestade feminina. Seria possível falarmos aqui talvez de um galante patético, há nisso uma imagem verossímil de Bocage; a de revolucionário, jamais.

No poema anterior, interessa-o igualmente outro contraste: o que há entre as novidades que pareciam voar seguidamente da França e o mundo miúdo e pasmado do Portugal da virada para o século XIX. Não porque devote-se a romper o provincianismo ou guarde na mente algum plano ilustrado, progressista, para o Reino; nem porque, enfim, tenha aderido verdadeiramente às idéias republicanas; mas porque nada parece ser mais provocativo ou comovente para a modorra da província que as “novidades” vinda da corte ou dos centros de agitação intelectual ou mundana. No século XVIII português, claro, a única capital é Paris: de lá vêm as modas, os “sistemas”, as notícias atraentes e temíveis. Daí que, por exemplo, quando Bocage quer desautorizar a ciência de algum desafeto, logo vem a denúncia de afetação frança:

“Pilha aqui, pilha ali, vozeia autores,
Montesquieu, Mirabeau, Voltaire, e vários;
Propõe sistema, tira corolários,
E usurpa o tom de enfáticos doutores (…)”[29]

Com efeito, no caso dos poemas anteriores, Bocage, por assim dizer, vozeia igualmente. Nem república, nem liberdade têm substância própria em seus versos: vivem do susto que dão, do frisson que acendem ou congelam. Libertino bocageano, se algum há aqui, é relativo ao gosto da novidade bouleversante, do murmúrio enervante e provocador.

Ademais, o interesse de Bocage pelos temas revolucionários, que não é por convicção filosófica ou política, é-o por gosto dramático e estratégia retórica do chamado “pré-romantismo”. Trata-se então de produzir comoção mediante o traçado de cenas que se caracterizam tipicamente como “sublimes”, de acordo com as formulações de seu contemporâneo inglês, Edmund Burke, ou seja, que concentram poder, força e energia e fazem incidir sobre seus expectadores uma ameaça potencial[30].

Cumpre apenas ressaltar que, quando Kant, em 1764, em seu Observações sobre o sentimento do Belo e do Sublime[31] –, na trilha de Burke, portanto –, distingue este “sublime” (prazer misturado com horror) do “belo” clássico (sentimento plenamente agradável), assinala com clareza as diferenças entre dois “sentimentos”, que, em Bocage, apenas se excluem na aplicação imediata e concomitante, mas que são ambos recursos perfeitamente utilizáveis em situações retóricas diversas. Bocage, com efeito, é um perfeito exemplo das “dos caras del Siglo de las Luces”, que, para o caso ibérico, vão ser estudadas, entre outros, por Guillermo Carnero[32].

Esse mesmo raciocínio ajuda a entender porque Bocage escreve poemas encomiásticos a Napoleão, “novo redentor da Natureza”:

“Era triste sinônimo do nada
A morta liberdade envolta em danos;
Mas eis que irracionais vão sendo humanos,
Graças, oh Corso excelso, à tua espada!”[33]

E igualmente ao almirante Nelson, “britano herói”, que livra a Europa do jugo napoleônico:

“Cum diadema de luz no Elísio entrava
Envolto Nelson em sanguíneo manto;
Lavrou nos manes desusado espanto,
E a turba dos heróis o rodeava:

Grita Alexandre (e nele os olhos crava)
‘Quem és, que entre imortais fulguras tanto?’
‘Sou (lhe diz) quem remiu de vil quebranto
Europa curva, opressa, e quase escrava(…)”[34]

Outra vez, é o sublime atingido pela potência heróica, energética e também ameaçadora, que ressalta Bocage: não as razões de Nelson, marinheiro como ele, ou as de Napoleão, este que, de um poema a outro, passa de alegoria da liberdade à da tirania. Aliás, num terceiro poema, a causa que descobre para as beligerâncias entre França e Inglaterra é mesmo ao antigo estilo analógico-providencialista da Península:

“Mãe de chefes heróis, de heróis soldados,
A Gália herdou de Roma o gênio, a sorte;
Seus filhos no ígneo jogo de Mavorte
Viram márcios leões tremer curvados:

Mas alta lei dos penetrais sagrados
Baixou, que o fatal ímpeto reporte;
Fervendo em raios no oceano a morte
Te obedece, ó Britânia, ao mando, aos fados:

No continente o galo é deus da guerra;
O anglo audaz sobre o pélago iracundo
Da vitória os pendões, troando, aferra:

Ah! Nutram sempre assim rancor profundo!
Um triunfa no mar, outro na terra;
Se as mãos se derem, que será do mundo!”[35]

Por tudo isso, vê-se que uma leitura imediatamente “sincera” dos poemas de Bocage é inconveniente: o termo, quando muito, pode ser utilizado referindo-se a uma determinação particular de gênero, como se vai ver mais adiante. Seus versos obedecem estritamente à lei do decoro, da aplicação ao caso das tópicas adequadas, da busca de efeitos de sentidos particulares, sem chegar à idéia de constituição de uma personalidade subjetiva única ou que tenha adesão íntima aos efeitos persuasivos que fabrica.

Enfim, para seguir Bocage até a construção de sua libertinagem verossímil é de lei que não pretendamos buscar as pistas além do genérico convencional e do temperamento da persona letrada objetiva. Que ele se arrependa aqui, do que jurou ali; que proteste fé, simultaneamente, num valor e no seu contrário; que condene o “blasfemo ateu”, “monstro horrendo”, ou que levante escrúpulos contra as tentações armadas por um Deus que anda “embelezando” vícios, tudo é parte da história fidedigna da sua poética. O baixo satírico, assim, não é mais verdadeiro ou mais sincero que o elevado árcade, e o que há de verossímil no libertino não é, de modo algum, como vimos, exclusividade do gênero mais pedestre, maledicente ou obsceno.

III. A simetria baixa da poesia burlesca e satírica

Admitida a sombra do libertino no lirismo alto dos poemas rococós e a ausência de aderência política de Bocage às teses ilustradas e revolucionárias referidas em seus versos –, muito mais atentos ao que nelas favorecia à constituição de objetos sublimes e à obtenção de efeitos de sentido patéticos e emocionais –, cabe examinar agora a parte de sua produção que se propõe explicitamente como libertina e bandalha, vale dizer, a que se dá no domínio da poesia satírica e burlesca.

Esta repõe em registro baixo objetos que são proporcionais ou análogos àqueles empregados no gênero alto, produzindo geralmente um efeito imediato de simetria. Para deixar isso evidente, podemos concentrarmo-nos no esquema clássico do exórdio, bastante rigoroso sobretudo no registro alto da épica, mas passível de adaptar-se a outros produções elevadas. Assim, por exemplo, à “proposição”, o anúncio da maté_ia a ser tratada, segue-se a “invocação”, a convocação das musas que devem dotar o poeta da fúria adequada ao perfeito desempenho de seu engenho e arte. Pois bem, de maneira sistemática, Bocage projeta no baixo, tudo o que é distintivo do alto, produzindo um tipo de exórdio cuja captatio benevolentiae certamente conta com o reconhecimento dessa transferência imprópria. Ri-se exatamente do efeito cômico do “conceito” gerado pelo contraste do elemento baixo posto em estrita correspondência com a arquitetura retórica do gênero alto.

Assim, se a hierarquia dos deuses olímpicos dá a Jove o primeiro posto, a mesma hierarquia, reposta simetricamente para o baixo, faz com que o lugar da potência primeira seja ocupado por Priapo. Ao cetro e aos raios que Jove empunha corresponde neste, mais ou menos previsivelmente, o disforme falo tríplice que ostenta, infernal. Ao menos é pintado desse modo que surge a um dos “porri-potentes heróis” dessa épica às avessas, o “fodaz Ribeiro, preto na cara, enorme no mangalho”. O “preto priápico” sendo obviamente uma personagem tópica, como o “marido corno e impotente”, “o frade glutão e sodomita”, a “prostituta sifilítica”, o “judeu fingido e venal” etc.. Tudo naturalmente posto em sonorosa e grandíloqüa oitava rima camoneana:

“Eis de improviso em sonhos lhe apparece
Terrifica visão, que um braço estende,
E pela grossa carne que lhe cresce
Debaixo da barriga ao negro prende:
Acorda, põe-lhe os olhos, e estremece
Como quem ao terror se curva e rende:
Com o medo que tinha, a porra ingente
Se metteu nas encolhas de repente.

Do tremendo phantasma a testa dura
Dois retorcidos cornos enfeitavam;
E debaixo da pança, a matta escura
Tres disformes caralhos occupavam:
O sujo aspecto, a feia catadura,
Os rasgados olhões iluminavam;
E na terrivel dextra o torpe espectro
Empunhava uma porra em vez de sceptro.

Ergue a voz, que as paredes abalava,
E co’a força do alento sybilante
Mata a pallida luz, que a um canto estava
Em plumbeo castiçal agonisante:
‘Oh tu, rei dos caralhos (exclamava)
Perde o medo, que mostras no semblante:
Que quem hoje te agarra no marsapo
É de Venus o filho, o deus Priapo”[36]

É verdade: eis aí a forma que toma, muito embaixo, o Cupido gentil dos sonetos galantes, a mimada prole de Amor.

E a simetria dos decoros extremos, para o exórdio, não fica por aí. Se o poeta de alto coturno invoca a proteção de Apolo, que tem primazia no domínio das artes, e de seu séquito de belas ninfas nuas a banhar-se, segundo sua natureza própria, em fontes ou praias, ou a pastorear nos montes, etc., o bardo da baixa não tem o favor senão das Tágides adoentadas dos bordéis mais sórdidos. E se, nos gêneros altos, o poeta apresenta a digna autoridade de sua pena e demonstra ser justiça o influxo da musa; se mostra estar movido de um fundo afeto pátrio ou de um vivo transporte amoroso, que o legitima como pregão de sua gente e de sua amada…, o poeta de gênero baixo, documenta-se igualmente à caráter:

“Oh! musa gallicada e fedorenta!
Tu, que ás fodas d’Apollo estás sujeita,
Anima a minha voz, pois hoje intenta
Cantar esse mangaz, que a tudo arreita:
D’esse vaso carnal que o membro aguenta,
Onde tanta langonha se aproveita,
Um chorrilho me dá, oh! musa obscena,
Que eu com rijo tezão pego na penna.”[37]

Ou, alternativamente à formidável ereção, Bocage assegura a conformidade do tom à matéria com a revelação da origem vil de sua lira, que soa com gravidade virgiliana, quando celebra, por exemplo, a bela Ana de Montaiguy, esposa do alferes francês Jacques Phillipe de Montaiguy, e amante do Vice-Rei da Índia:

“Canto a belleza, canto a putaria
De um corpo tão gentil, como profano;
Corpo que, a ser preciso, enguliria
Pelo vaso os martellos de Vulcano:
Corpo vil, que trabalha mais n’um dia
Do que Martinho trabalhou n’um anno;
E que atura as chumbadas e pelouros
De cafres, brancos, maratás e mouros.

Vênus, a mais formosa entre as deidades,
Mais lasciva também que todas ellas:
Tu, que vinhas de Troya ás soledades
Dar a Anchises as mammas e as canellas:
Que grammaste do pae das divindades
Mais de seiscentas mil fornicadellas;
E matando um vez da crica a sede,
Foste pilhada na vulcanea rede:

Dirige a minha voz, meu canto inspira,
Que vou cantar de ti, se a Jacques canto;
Tendo um corno na mão em vez de lyra,
Para livrar-me do mortal quebranto:
Tua virtude em Manteigui respira,
Com graça, qual tu tens, motiva encanto;
E bem póde entre vós haver disputa
Sobre qual é mais bella, ou qual mais puta.”[38]

A simetria dos decoros é rigorosa, e não se detém no exórdio. Alcança, por exemplo, a pintura do caráter da amada: aquilo que no gênero alto é “tirania” ou “esquivança”, no baixo é apetite excessivo, incontinência sexual; o que, no alto, é “ingratidão” ou “mudança”, “feminil costume”, no baixo é venalidade, prostituição, crime contra-natura, enfim, monstruosidade. Perfeições do corpo da amada que, na matéria alta, podem esconder (e em geral escondem) “refinado veneno em taça de ouro”, na baixa, quando existem e não são apenas ruínas e deformidades (e em geral o são), guardam marcas explícitas de cobiça e bestialidade:

“Seus meigos olhos que a foder ensinam,
Té nos dedos dos pés tezões accendem;
As mammas, onde as Graças se reclinam,
Por mais alvas que os véus, os véus offendem:
As doces partes, que os desejos mimam,
Aos olhos poucas vezes se defendem;
E os Amores, de amor por ella ardendo,
As pissas pelas mãos lhe vão mettendo.

Seus cristalinos, deleitosos braços,
Sempre abertos estão, não para amantes,
Mas para aquelles só, que, nada escassos,
Cofres lhe atulham de metaes brilhantes;
As niveas plantas, quando move os passos,
Vão pizando os tezões dos circumstantes;
E quando em ledo som de amores canta,
Faz-lhe a porra o compasso co’a garganta.”[39]

A correspondência dos opostos nos gêneros alto e baixo é tão nítida que, interpretada substancialmente, pode ter efeito satírico. Assim é que um soneto anônimo, maldizendo as maledicências de Bocage, comenta num trecho:

“Toda a moça, que d’elle se confia,
É virgem no serralho do seu peito;
Janela, que se fecha, é putaria!”[40]

O poema ajuda a compreender também que a escolha do gênero e de suas variantes de desempenho, longe de meramente formais, podem inscrever-se numa pragmática, demasiado humana talvez, que, para ser conhecida teria que levar em conta os usos da poesia previstos nos limites da vida boêmia portuguesa da virada do século XVIII para o XIX. Por ora, entretanto, basta assinalar a simetria dos gêneros como índice ostensivo do sistema de decoros aplicado por Bocage.

Recapitulando, por um momento: se antes éramos obrigados a reconhecer no convencional galante um ponto de parada necessário para a caracterização do libertino em Bocage, já que os poemas de fatura rococó mostravam-se substancialmente picantes, de graça essencialmente erótica, agora devemos perceber que a sua obra obscena guarda determinações de gênero tão rigorosamente convencionais quanto as válidas para os poemas elevados, e, mais do que isso, supõem convenções elaboradas em rigorosa consonância ou simetria com aqueles.

Todas as afirmações mais comuns a propósito dessa obra, portanto, mostram-se insuficientes e preconceituosas: nem o alto é imaculado e retrógrado, nem o baixo é desregrado e subversivo.

Guardadas as distâncias exigidas pelos decoros retóricos, em Bocage, pode-se dizer que, em certa medida, eles se espelham mutuamente e tiram partido dessa especularidade. É o que ocorre por exemplo neste poema extraordinário a propósito de uma tópica que se poderia chamar talvez de “bela coprológica”, que já foi atribuído também a um contemporâneo mais velho de Bocage, Antonio Paulino Cabral, o Abade de Jazente (1719-1789):

“Piolhos cria o cabello mais dourado;
Branca remella o olho mais vistoso;
Pelo nariz do rosto mais formoso
O monco se divisa pendurado:

Pella bocca do rosto mais córado
Halito sáe, ás vezes bem ascoroso;
A mais nevada mão sempre é forçoso;
Que de sua dona o cú tenha tocado:

Ao pé d’elle a melhor natura móra,
Que deitando no mez podre gordura,
Fétido mijo lança a qualquer hora:

Caga o cú mais alvo merda pura:
Pois se é isto o que tanto se namora,
Em ti, mijo, em ti cago, oh formosura!”[41]

Variante superior àquele outro, também atribuído ao bom Abade de Jazente, que começa assim, promissoramente:

“Cagando estava a dama mais formosa,
E nunca se viu cú de tanta alvura (…)”[42]

IV. A expansão do tom alto à matéria baixa

Mas não só da malícia rococó ou do explícito obsceno que lhe é simétrico, vive a temática libertina de Bocage. Talvez haja mesmo um terceiro gênero a ser assinalado aqui, que opera uma espécie de misto, em que a matéria do ato sexual em si, exclusiva do gênero baixo, é retomada com vocabulário e recursos retóricos próprios do gênero elevado. Poder-se-ia dizer que, com Bocage, assiste-se a um esforço extraordinariamente bem sucedido de expandir o tom alto à matéria mais típica do burlesco. Essas tentativas são visíveis, em particular, nos poemas que poderíamos chamar mais propriamente eróticos, e que apresentam em geral tratamento epistolar, andamento narrativo e um tema que, por excelência, é o da iniciação amorosa. Em qualquer caso, já não há mais neles o vocabulário chulo ou debochado da sátira, ao contrário, tudo aí é sério e solene, por vezes até sentencioso. Certamente têm o sublime no horizonte, que testa novas fronteiras para sua aplicação através da mesma base energética e vertiginosa prevista por Burke.

Alguns aspectos são particularmente notáveis nesses poemas de gênero misto. O primeiro deles é o de constituírem-se como uma “arte de amar”, que sempre afeta um sentido pedagógico ou didático e, ao mesmo tempo, alega a sua utilidade na pragmática das conquistas. Há mesmo umas “regras amatórias para agradar às damas”, escritas à “imitação de Ovídio”, que foram atribuídas por vezes a Bocage, mas que parece mais seguro considerar como sendo de autoria de outro de seus amigos, Sebastião Xavier de Toledo, com eventuais palpites e correções suas[43].

A cena básica da invenção desses poemas epistolares, prevê um confidente ou conselheiro experiente que revela verbalmente a alguém mais jovem e “boçal” — vale dizer, analogamente, ignorante e virgem — os segredos deleitosos guardados pelo amor, que incluem ou mesmo exigem a prática sexual e a entrega aplicada às suas possibilidades de variação, novidade e intenso desfrute. Assim nas “Cartas de Olinda e Alzira”, a primeira delas acaba de completar quinze anos e sente vibrar no peito “uma extranha agitação”, um “novo sentimento”, uma “ardência” entranhada de que não pode “attinar a causa” ou a origem, e resolve-se a escrever à sua confidente mais velha, Alzira, “unico archivo” onde vai depositar os seus “segredos mais ocultos”:

“Tres lustros conto apenas: tu tres lustros
Antes de te esposar também contavas;
Poz o consorcio a teus lamentos termo,
Limitará os meus? Ah! dize, dize
Tu, que desassocego egual soffreste,
O seu motivo, e como o apaziguaste;
D’onde sinto perder o meu repouso.
Eu não exp’rimentava o que exp’rimento:
Uma viva emoção põe em desordem,
Cala-me activo fogo nas entranhas:
O coração no peito turbulento
Pula, bate, com ancia extranhamente:
O sangue, pelas veias abrazado
Parece que me queima as carnes todas:
A taes agitações languidez terna
Succede, que a meus olhos pranto arranca,
E o coração desassombrar parece
Do pezo da voraz melancholia.”[44]


 Sobre Alcir Pécora

Professor Titular da Área de Teoria Literária, no Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Membro da Accademia Ambrosiana (Milão, Itália), Classe di Studi Borromaici. Cursou Artes Plásticas, na PUC-Campinas, licenciando-se em Educação Artística em 1974. Ingressou no Curso de Ciências Humanas (IFCH-Unicamp), bacharelando-se em Lingüística, em 1976. Em 1977, foi efetivado como docente do DTL/IEL/UNICAMP, onde atuava como monitor desde 1975. Também na UNICAMP, defendeu o Mestrado em Teoria Literária, em 1980. Obteve o Doutorado na USP, na área de Teoria Literária e Literatura Comparada, em 1990, com a tese “Teatro do Sacramento. A unidade teológico-político-retórica nos sermões de Vieira”. Livre-docente, pela UNICAMP, em 2000, com os escritos reunidos em “Máquina de Gêneros”. Pós-doutorado no Dipartamento di Studi Romanzi della Università degli Studi di Roma “La Sapienza” (2004-5). Editor literário das obras de Hilda Hilst, Roberto Piva e Plínio Marcos