Skip to main content

Vieira anticulto?

Como é sabido, no Sermão da Sexagésima, de 1655, o Padre Antônio Vieira (1608-1697) produz a sua célebre censura ao uso do estilo culto pelos pregadores dominicanos da corte. Bem menos sabido é o que essa crítica pode ou quer significar de maneira verossímil. Não poucos autores, no Brasil e em Portugal, a interpretaram em chave pré-iluminista, como se Vieira antecipasse o gosto por um estilo mais simples e de mais bom senso, próximo de certo neoclassicismo setecentista; ou em chave pré-romântica, como se Vieira defendesse um estilo mais sincero, mais espontâneo, menos obediente às prescritivas retóricas engenhosas do chamado barroco. Ambas as observações, favoráveis em princípio a Vieira, costumam levar, muito rapidamente, a comentários contrários a ele, no sentido de que ele próprio não teria seguido de maneira coerente os conselhos que dava, deixando-se muitas vezes arrastar pelo gosto estragado de seu próprio tempo e se entregando, também ele, aos jogos asiáticos dos ornatos que se encontram em tantos de seus sermões.

Gostaria de deixar aqui minha posição sobre o caso. Já digo logo que não acho, de modo algum, que Vieira critique a ornamentação discursiva enquanto procedimento retórico inadequado a priori. Em primeiro lugar, porque figuras e ornatos são recursos próprios da oratória e conhecê-los bem faz parte do domínio abrangente dos seus meios disponíveis. Isto significa que um orador profissional, como Vieira, não poderia considerá-los um mal senão quando seus usos e efeitos particulares resultassem malsucedidos, isto é, quando fossem empregados de maneira inadequada ao decoro particular do gênero da oratória sacra. Apenas assim, como crítica da ruptura do decoro, deve ser interpretada a acusação que faz aos pregadores da corte de que andavam trocando o púlpito por palco de comédia, por conta de pôr a perder a gravidade que lhe é própria:

Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente, era acabarem-se as comédias em Portugal, mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se, passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros e muito mais sólidos do que hoje se ouvem nos púlpitos.

É fundamental notar que tais palavras não pretendem negar a arte do sermão, nem censurar qualquer sermão por ser efeito de tal arte. O terrível ataque aos “estilos modernos” é baseado tanto na arte retórica quanto no que admitia como ciência teológica. Quando Vieira recomenda que a oratória sacra seja praticada como uma arte sem arte, não há, nessa fórmula, recusa do ornato dialético, ou conceito engenhoso, como procedimentos técnicos adequados. Trata-se de acentuar um ponto importante do decoro específico da parenética, isto é, o da conveniência de pessoa, lugar e tempo prevista no gênero da oratória sacra. Assim, a composição da investidura grave ou solene é parte importante da produção de argumentos éticos para que um sermão obtenha efeitos adequados no ouvinte cristão.

Com base na parábola do semeador, que fornece o tema do Sermão da Sexagésima, Vieira especifica as regras da arte sem arte que propõe para o gênero da oratória sacra. E não o faz absolutamente de maneira estranha à arte, e sim estabelecendo concordância entre os termos da parábola e as partes tradicionais da retórica. É assim que refere, respectivamente, as “coisas” da invenção, as “palavras” da elocução e o “caso” da disposição:

O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu: para o sermão vir nascendo, há de ter três modos de cair. Há de cair com queda, há de cair com cadência, há de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas, porque hão de vir bem trazidas, e em seu lugar; hão de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão de ser escabrosas, nem dissonantes; hão de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há de ser tão natural e tão desafetado que pareça caso e não estudo.

A aplicação conveniente das partes da arte oratória ao ato de pregar visa a que nada no sermão fira a dignidade de que se reveste a pessoa do orador eclesiástico, cujo valor público interfere na eficácia da pregação junto ao auditório. Desse modo, Vieira retoma a passagem aristotélica relativa às provas que incidem sobre o caráter do orador, elaboradas com base na imagem dos costumes de quem produz o discurso. Tendo em vista o auditório cristão, a lembrança acentua o compromisso estrito da elocução do sermão com a imagem moral do pregador:

Pouco disse S. Paulo em lhes chamar comédia, porque muitos sermões há que não são comédia: são farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência, e todos, desde o dia em que os professamos, mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio. E quando este se rompeu, que é o que se ouve?

A passagem é sobejamente conhecida e, em si mesma, bem poderia ser dispensada. Mas penso ser interessante acompanhá-la em seu andamento argumentativo, a fim de notar o quanto Vieira, na composição das partes de seu próprio discurso, se aproveita de um tipo de ornato altamente engenhoso, o da dificultação, tal como proposto na conhecida Agudeza y arte de ingenio (1642), do jesuíta aragonês Baltasar Gracián (1601-1658):

De ordinario se va cortando a los principios de los discursos, y al fin se ata. Va con suspensión el auditorio aguardando en qué ha de venir a parar, que es más arte que el declararse luego al principio, y así de más gusto, como sucede en los empeños, que cuanto más se van dificultando, se goza más de la acertada salida.

Ou então:

Es gran eminencia del ingenioso artificio llevar suspensa la mente del que atiende, y no luego declararse; especialmente entre grandes oradores, está muy valida esta arte. Comienza a empeñarse el concepto, deslumbra la expectación, o la lleva pendiente y deseosa de ver dónde va a parar el discurso, que es un bien sutil primor, y después viene a concluir con una ponderación impensada.

Tornando, pois, ao Sermão da Sexagésima, está claro que Vieira se aplica a compor a expectativa de uma cena grave, coroada com a admiração muda e respeitosa do auditório. Essa mesma admiração suspensiva, no entanto, bem de acordo com a técnica referida da dificultação, dilata ao máximo o tempo de seu desfecho, adiando também o desatar do nó argumentativo:

Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse, e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do céu, que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto, e com as ações havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós, que é o que vemos?

Apenas então, quando as expectativas honestas do cristão já estão bem nítidas na imaginação do auditório, Vieira dá o passo seguinte, que as quebra violentamente. O efeito produzido é de indignação e patetismo, a que não falta, entretanto, o comentário ferino:

Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afetada e muito polida, e logo começar com muito desgarro, a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar?

Aqui justamente bate o ponto, pois o que Vieira julga suficientemente demonstrado não é a inutilidade do ornato, do qual ele faz esplêndido emprego, e sim a exigência de um decorum próprio do gênero, que é a base da sustentação e eficácia do sermão particular:

Na comédia o rei veste como rei e fala como rei, o lacaio veste como lacaio e fala como lacaio, o rústico veste como rústico e fala como rústico, mas um pregador vestir como religioso e falar como… não o quero dizer por reverência ao lugar. Já que o púlpito é teatro e o sermão comédia, sequer não faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício?

Isto posto, há ainda um segundo aspecto a considerar nessa discussão, o qual igualmente demonstra a improcedência da interpretação da censura vieiriana do estilo culto como sendo um ataque genérico aos recursos retóricos, e não exclusivamente aos seus empregos indecorosos. Para conceber este segundo ponto, deve-se ter em mente que os ornatos discursivos, considerados na necessária chave analógica de seu emprego católico, são entendidos como atos de revelação de relações ocultas entre as coisas criadas, e, enquanto tal, são parte da natureza e da razão providencial que orienta a criação inteira. Dessa perspectiva, o foco do ataque de Vieira, de que a falta de decoro é evidência, está precisamente na ruptura entre o ornato e a sua base natural – ruptura que o jesuíta alega ser mais frequente nos sermões pregados na corte. Para ele, os sermões do Paço correm um risco tremendo – que é, entretanto, o risco de todos os sermões: o de perder o nexo essencial entre os conceitos engenhosos e os sinais divinos no mundo, entre as figuras da técnica discursiva e as da economia salvífica da criação.

Os pregadores-cortesãos, duramente repreendidos por Vieira, não são, portanto, culpados de empregar tropos ornamentais, não são culpados do pecado da retórica, pois esta, enquanto domínio técnico, mostra propriedade e pertinência, se não piedade na eficácia de seu mover em direção ao bem. Eles são culpados de um ato de consequências muito mais graves: o de romper o vínculo fundamental entre a dialética controlada dos ornatos e os signos livremente dispostos por Deus. São pregadores sem vontade hermenêutica de encontrar a substância oculta nos sinais sensíveis, a orientação transcendente que os dispõe e justifica no mundo, até o fim do mundo. Tendem assim a reduzir os signos do Verbo a matéria verbal autônoma, contentam-se em toucá-los como enfeites, descuidando-se do mistério da presença divina ou permitindo que se dissolva na aplicação exclusiva das regras cultas em uso. Ou seja, a censura de Vieira é dirigida contra os sermões que produzem uma separação entre a retórica das analogias e a finalidade teológico-salvífica que lhe dá fundamento:

Nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É isso o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da própria gramática das palavras? Não, por certo, porque muitas vezes as tomais pelo que soam, e não pelo que significam, e talvez nem pelo que soam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, que nos queixamos de que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem!

 

Perdido o decoro e autonomizada a forma no exterior de seu sentido inspirado, o aplauso do auditório equivale a uma condenação, pois, a rigor, nada poderia ser mais condenável do que o esvaziamento da palavra de Deus, fundamento exclusivo da sua glosa pelo sermão no presente:

Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos. Oh! Que bem levantou o pregador! Assim é: mas que levantou? Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus?

Uma reflexão análoga poderia ser feita em relação ao sentido da celebração eucarística, clímax do desenvolvimento da missa, atingido no momento em que a memória atualizada das palavras de Cristo, produzida pela pregação, encontra a sua presença real transubstanciada nas espécies visíveis do pão e do vinho. A pompa litúrgica – assim como a ornamentação retórica, pompa discursiva – participa da construção da consagração e, por isso, está ajustada ao teatro católico da fé. Enquanto aplicação de critérios doutrinários adequados, a magnificência da cerimônia não se concebe fora de sua integração na liturgia do ato persuasório total de que o sermão faz parte. Exatamente como no caso da retórica dos ornamentos, a discretio que organiza o espetáculo da missa, articula-o ao modelo sacramental da presença divina nas espécies. A dissociação entre a pompa e a finalidade litúrgica, ou entre esta e o Ser da presença divina, implica o fracasso da cerimônia inteira, e, em particular, da inteligência do mistério eucarístico.

Enfim, penso que as duas questões mencionadas, a do decoro e a da analogia, elucidam de maneira mais conveniente ao conjunto do sermonário de Vieira o suposto – e, a meu ver, falso – anticultismo do padre.


 Sobre Alcir Pécora

Professor Titular da Área de Teoria Literária, no Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Membro da Accademia Ambrosiana (Milão, Itália), Classe di Studi Borromaici. Cursou Artes Plásticas, na PUC-Campinas, licenciando-se em Educação Artística em 1974. Ingressou no Curso de Ciências Humanas (IFCH-Unicamp), bacharelando-se em Lingüística, em 1976. Em 1977, foi efetivado como docente do DTL/IEL/UNICAMP, onde atuava como monitor desde 1975. Também na UNICAMP, defendeu o Mestrado em Teoria Literária, em 1980. Obteve o Doutorado na USP, na área de Teoria Literária e Literatura Comparada, em 1990, com a tese “Teatro do Sacramento. A unidade teológico-político-retórica nos sermões de Vieira”. Livre-docente, pela UNICAMP, em 2000, com os escritos reunidos em “Máquina de Gêneros”. Pós-doutorado no Dipartamento di Studi Romanzi della Università degli Studi di Roma “La Sapienza” (2004-5). Editor literário das obras de Hilda Hilst, Roberto Piva e Plínio Marcos