O Livro de Ensaios: Galáxias, cuja edição definitiva saiu em 1984, pela Ex Libris, é composto de cinquenta páginas, que podem ser lidas em qualquer ordem (com exceção dos “formantes”, que constituem o ponto de partida e o final), pois em cada uma delas está a imagem do todo e um livro diferente de cada vez. Em cada fragmento, de um modo ou de outro, o leitor é convocado a compor uma constelação imaginária. Destes ensaios: prosa porosa, proesia, farei uma leitura do fragmento 47: “matatempos e passatempos”, levando em conta sobretudo a pulsão sinestésica que impregna toda a obra e põe em rotação um tipo de leitura feita pelos olhos, ouvidos, tato, olfato – a sensualidade da linguagem aberta ao engendramento, ao agenciamento e à associação de tempos e formas da literatura.
Gilles Deleuze, em Crítica e clínica, trata do problema do escrever. Para ele o limite não está fora da linguagem, ele é o seu fora: é feito de audições não linguageiras, mas que só a linguagem torna possíveis. Por isso há uma pintura e uma música próprias da escrita, como efeitos de cores e de sonoridades que se elevam acima das palavras. É através das palavras, entre as palavras, que se vê e se ouve. Em Galáxias, e neste fragmento 47 sobretudo, o narrador, o que fala, ou o que quer que seja esse escritor menino viajante, é um vidente, um ouvidor, “mal visto mal dito”, é um colorista, um músico, o menino Adão.
Ainda segundo Deleuze, essas visões, essas audições, não são um assunto privado, mas formam as figuras de uma história e de uma geografia incessantemente reinventadas, como esse livro de viagens de Haroldo de Campos, a viagem na e pela linguagem, é um processo que arrasta as palavras de um extremo a outro do universo. São acontecimentos na fronteira da linguagem. [1]
Para Haroldo de Campos, tanto em seus textos poéticos, teóricos, tradutórios, ensaísticos, a escrita é sobretudo explicitação da função poética da linguagem, aquela em que a forma se torna mensagem e o resultado é o desnudamento dessa nova estética:
Pensar a literatura ou o texto num espaço impensável. Levar adiante uma experiência de linguagem como trabalho produtor inscrito na região do significante, isto é, numa região onde o significado não existe senão como deslizamento entre superfícies significantes, como faiscamento incessante do signans, ou seja, do corpo verbal, concreto da linguagem. [2]
Nesse deslizamento entre superfícies significantes, numa viagem literária referencial e autorreflexiva, instala-se o menino narrador viajante: passatempos e matatempos eu mentoscuro pervago por este minuscoleante instante de minutos instando alguém e instado além para contecontear uma estória. Já nas primeiras linhas do fragmento, o leitor ouve e transvê um espaço sinuoso, como as vagas do mar que lançam na silhueta da linguagem o movimento ondulado, minuscoleante que vai contecontear uma história.
Para isso, logo de início convoca-se nada mais nada menos que a personagem/musa contadora Sherezada minha fada, a das milnoitescontada. Temos então o infans em busca da concretização das histórias mil vezes contadas, num cenário vertiginoso, de índole barroca, como intuição/inscrição já eleita pelo escriba: a conexão com a vertente textual ibérica a partir da qual nossa literatura toma um verdadeiro sentido e forma, a conexão com o período cultural barroco: cultura nascida adulta, falando um código universal extremamente elaborado, – o código retórico barroco, sem infância, no sentido etimológico da palavra, o infans sendo aquele que não fala. [3]
E o menino foi, entre as imagens que ele elaborou entre mil estórias ouvidas e desenhadas/imaginadas: então o miniminino adentrou turlumbando a noitrévia forresta e um drago dragoneou-lhe a turgimano com setifauces furnávidas e grotando cavurnoso meuminino quer-saber o desfio da formesta o desvio da furnesta. É neste ‘concreto barroco’ que o pequeno Homero se lança entre metáforas e metonímias que são verdadeiros blocos sonoros e, ao mesmo tempo, bloco de imagens das histórias de fadas e fados mal encontrados. Já dá para sentir que o alcance desse texto/viagem pode verdadeiramente oferecer surpresas e recompensas, como um talismã/Aleph que faz girar a roda das sagas, magas e surpresas do conto maravilhoso à moda de Propp, ou segundo as funções do conto maravilhoso em escala vertiginosa. Nesse devadear pelo bosque forestear pelo rio abrem-se perspectivas insuspeitas, mileuma portas para mensagens diferentes da sugerida pelo conjunto do texto escrito, ou pelo conjunto de um quadro, por exemplo. O olhar desse menino porta sozinho a luz. Uma iluminação vinda das estórias ouvidas que torna visíveis as imagens. Olhar e aclarar como uma coisa só, e o nosso olhar também está presente nesta gesta: meuminino começou sua gesta cirandejo no bosque deu com a bela endormida belabela me diga uma estória de vida mas a bela endormida de silêncio endormia e ninguém lhe contava essa estória se havia.
Ser concreto, aqui, é optar por um tipo de poética, prosa ou poesia, prosa e poesia, sem antinomias, uma poética aberta, em que as figuras de tema, isomorfas às figuras de signo (como classifica Augusto de Campos sobre a escrita de Haroldo [4]), são também figuras de vida.
Como um coreógrafo da dança interna dos sentidos, meuminino disparte para um reino entrefosco que o rei morto era posto e o rei posto era morto, isso é um trabalho de Hércules! Ou de um Ulisses em outra odisseia galáctica, física, metafísica, em outra floresta de signos que se correspondem a seu modo.
Nessa viagem/livro são abolidas as fronteiras entre prosa e poesia, há um percurso épico-epifânico cujos limites são a selva escura do universo. As Galáxias constituem o texto mais explicitamente barroco de Haroldo de Campos, não só do ponto de vista do “engendramento” poético (paronomásia, neologismo, permutação), mas também do ponto de vista de uma visão caleidoscópica do mundo, onde o velho dialoga com o novo, a luz com a sombra, o passado com o presente, o belo com o feio, a vida com a morte. Seguindo as considerações de Inês Oseki-Dépré na seleção de poemas de Haroldo de Campos feita por ela, o futuro talvez se torne incerto, mas resta o presente do poema. [5]
Mesmo havendo uma ruptura com o discurso linear, a gesta desse menino nos coloca em movimento também, sem a ideia de partida e de chegada, como se estivéssemos em um torvelinho de falas, estórias, imagens em plena ebulição, numa prova de fogo em que não haverá um Hermes para transmitir uma mensagem ou uma interpretação: mas ninguém lhe contava essa estória desvinda meuminino é soposto a uma prova de fogo devadear pelo bosque forestear pelo rio trás da testa-de-osso que há no fundo do poço no fundo catafundo, catafalco desse poço… Nesse amplo espectro de caminhos e de (re)criações de lendas e de realidades vividas e a viver meuninino transfunda adeus no calabouço mas a testa não conta a estória do seu poço se houve ou se não houve se foi moça ou foi moço. Seria uma espécie de viagem, superlativa, a de Haroldo de Campos entre livros e linguagens.
Pensando em Platão e em sua caverna, pode-se dizer que todos os fragmentos de textos: visuais, verbais, híbridos, são sombras de verdades. Isolá-los para colocá-los um a um sobre o vidro despolido do microscópio é já de alguma maneira investigá-los, investi-los de sentidos, tatear-lhes as dobras, os claro-escuros, para termos, na ausência de uma única concepção do mundo, uma sensação do mundo. Penetra-se no subterrâneo das coisas sem se saber quando e como se sairá dali. Nem o que levaremos conosco. Mas tudo isso deve ser feito com a ligeireza que dá a distância, e que possibilita uma certa forma de graça e gozo. Às vezes, o laço entre o dito e o visível impõe-se por si mesmo. Outras vezes eles, o dito e o visível, são o laço, e eles falam/mostram de si mesmos através de outros ditos e visíveis. As experiências, que estão no outro, no leitor, no receptor/espectador, enformam as escolhas, as formas em que se desvelam: um cisne de outravez lhe aparece no sonho e pro cisnepaís o leva num revoo meuminino pergunta ao cisne pelo conto este conta seu canto de cisne e cisnencanta-se, Narciso entre as lendas do menino.
Agora, expulso da República, o poeta vê longe, engloba em sua fala experiências vastas e variadas de tempos, espaços e ritmos. Seu olhar vai longe, alto e profundo. Tem acesso ao ‘invisível’ onde se estendem as paisagens interiores. É vertiginosa a fala e a profusão de imagens, mentais ou físicas, que surgem neste fragmento de Galáxias. Entre Sherezadas e fadas, e mitos e lendas, a fala nos revolve em um turbilhão de sensações, de passatempos e matatempos. Há uma permuta incessante entre os sentidos, como é próprio ao pensamento poético. Paul Celan, poeta falando da pintura, nos diz: “Meu sentido de audição passou para o de tocar, onde ele aprende a ver” [6].
Nesse fragmento 47, há uma diáspora de textos e tradições que vão se ajuntando no jogo narrativo, no xadrez de sentidos que vão aparecendo e desaparecendo muito rapidamente. Seria um texto como uma fotografia sem máquina, deve-se pôr o olho, o espírito e o coração numa mesma linha, sem a pretensão de reter toda a máquina vocabular e de significação do texto. A foto, sem máquina, apenas com o olhar, fica gravada, de algum modo, na memória. Um texto/lugar moderno, concreto, concretista, enCANTADO por um lugar chamado imaginário, dentro de um dilúvio de imagens e imageries, aberto ao que é novo, coberto por lendas e passados, habitado por um minino visionário e por monstros, ninfas, belas endormidas: dona sol no-que-espera sua chuva de ouro deslumbra meuminino fechada em sua torre dânae princesa íncuba coroada de garoa me conta esse teu conto pluvial de como o ouro num flúvio de poeira irrigou teu tesouro. Entre sinestesias, aliterações, assonâncias, tem-se um dilúvio de imagens, sons, metamorfoses de lendas e mistérios, sob a clave da criação poética. Uma féerie verbal imagética que agrega o sentido de feitiçaria verbivocovisual além da máquina de contos de fadas repensada, como na imagem abaixo, um torvelinho que quase engole o menino e o leitor.
Neste universo galáctico, aberto à ‘educação dos cinco sentidos’, que se constrói a partir do extremo dinamismo de cortes, flashbacks e montagens, há apenas uma figura em que toda a fábula se desnuda: a figura do menino errante, ávido de histórias e de respostas.
quando se vive sob a espécie da viagem o que importa
não é a viagem mas o começo da…
Na literatura ocidental não há tema mais antigo e preclaro que o da viagem. Com Homero, a viagem definiu-se como um certo topos,o de mais nobre extração. Principiada em um porto familiar ao viajante, ele cumpriria o máximo périplo até retornar ao ponto de partida. Os embates com monstros e gigantes, deuses do ar e elementos da terra estimulavam o herói à restauração da velha ordem, ameaçada com sua ausência. Homero é o primeiro marco embutido nas Galáxias, com suas frequentes alusões ao oceano grego e ao texto do poeta, ou ao oceano de possibilidades que o menino herói precisa enfrentar: mas a de ouro princesa fechou-se auriconfusa e o menino seguiu no empós do contoconto seguiu de ceca a meca e de musa a medusa todo de ponto em branco todo de branco em ponto.
O segundo marco seria a paródia joyciana, que faz aterrissar a viagem e encurta o périplo de Ulisses, o internaliza pelas ruas de Dublin e expõe o protagonista a algo mais terrível que gigantes e emissários dos deuses: o mero cotidiano: esse bicho malinmaligno vermicego peixepalavra onde o canto conta o canto onde o porquê não diz como.
Homero e Joyce formariam os antípodas da viagem, e entre eles pervaga o menino. Pode-se ver que nesses três textos põe-se a atenção do conteúdo da viagem para a linguagem da viagem. Em Galáxias não é o relato que importa, não é o que se diz com a ajuda da linguagem, mas o que nela se diz. A memória do menino já não dirige a viagem que então se faz no relato. A viagem torna-se do relato. Viagem no escrever, na composição de uma linguagem, que, portanto, não recapitula, mas começa, recomeça, retece, como vemos no primeiro formante: o que importa não é a viagem mas o começo da. O que faz a passagem é internalizar sua carga semântica, isto é, ver a palavra.
Neste momento podemos outra vez reforçar o elemento barroco. Para os que se habituaram a identificar o projeto da poesia concreta com o de despojamento espacializado, a dicção amazônica de Galáxias é um espanto. A propósito disse Sánchez Robayna: “uma boa parte dos fragmentos galácticos foi escrita nas mesmas datas em que o foram as mais radicais expressões do despojamento concreto” [7]. A viagem que a cada fragmento começa e convoca mil e um acidentes para a festa da linguagem. Digamos que o traço ibérico interage na recepção de Mallarmé e modifica seu perfil ascético, delineia-se um perfil engenhoso, cheio de volutas, encaixes em tempos e lendas imemoriais.
A viagem na escrita poderia seguir a trilha ascética mallarmaica e se tornar puro traço sugerido, uma imagem mais simbolista, etérea, ou escolher a deriva barroca no magma impuro do cotidiano. É pela adoção da última que Galáxias pôde realizar-se em prosa, sem se confundir com o muitas vezes equívoco poema em prosa. Trata-se de uma prosa especial: se se abre em possibilidade de narrativa, essa, contudo, é logo interrompida. Interrupção que revela que: “há milumaestórias na mínima unha da estória” (formante 1).
“Quem viaja tem muito o que contar”, diz o povo, o povo é um inventa línguas, e com isso imagina-se o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou a vida honestamente sem sair de casa e que conhece suas histórias e tradições, segundo as concepções do narrador benjaminiano [8]. O menino, aqui, sai em busca do que já ouvira ser contado, quer ver o que lhe foi narrado em diferentes histórias e situações. Ainda nas trilhas do narrador de Benjamin, “a reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração a geração”. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo e tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si, como nesse texto 47, em que todas as lendas, mesmo que fechadas em copas, se apresentam e são especuladas pelo menino viajante, que quer ver/ouvir e narrar o relato. As histórias se articulam uma na outra, e em cada narrador vive uma Scherazade, que imagina uma nova história em cada passagem da história que está contando. O menino transmuda-se em cada história que deseja viva. A rememoração,musa do romance, surge ao lado da memória, musa da narrativa, depois que a desagregação da poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na reminiscência. Neste texto de Haroldo, ambas as formas se manifestam e complementam a impossibilidade da fábula acabada: onde o ovo busca no ovo o seu oval rebrilhoso onde o fogo virou água a água um corpo gasoso onde o nu desfaz seu nó e a noz se neva de nada uma fada conta um conto que é seu canto de finada. O fim do conto/canto é um canto de finada, não se deve chegar até ele.
Em Galáxias a página é o meio em que a viagem se produz, o carpinteiro sedentário e o marinheiro comerciante se juntam e em vez de falar-se na escrita da viagem, o melhor será falar da viagem da escrita. A linguagem como forma de ação, tendo como caráter básico o de produção e não o de referência: mas ninguém nemnunca unzinho pode saber de tal fada seu conto onde começa nesse mesmo onde acaba sua alma não tem palma sua palma é uma água encantada. A água de um Letes que engendra, ao apagar a memória, mil fados de novo mal-encontrados, mas bem-contados.
O discurso da ficção pode adotar duas condutas quanto à impureza da pluralidade do real: a) pode intentar eliminá-la, desprezando os eventos e seu território: o cotidiano; b) pode inter-relacionar-se com ela e convertê-la em alimento para sua própria travessia, é a via seguida pelo menino que corre atrás das fábulas. A metamorfose é o recurso mais frequente e notável na poiesis galáctica. A viagem no texto se alimenta dos eventos; vida e texto se compaginam, segundo Luiz Costa Lima. [9]
Nos incontáveis elos internos, tematiza-se, em círculos concêntricos, um filão da estória-da-memória, isto é, da estória desfiada pela memória, para que logo se expanda a composição na linguagem, em que funciona o pêndulo entre som e sentido, a visualização interna em vez das conexões apenas designativas. São construções cinéticas, onde a vista parece mover-se sob a ação de um reagente que não a deixe em repouso. O texto se equilibra sobre sua tensão: a pendularidade entre som e sentido se nutre da míngua de fábula e esta daquele, para que um novo solo então se abra – é meu risco pensar o silêncio que trava por detrás das palavras (…) o que mais vejo neste papel é o calado branco a córnea branca do nada (…) é o calado do branco não tocado que as letras dactilonegam negram sonegam (G. 31).
Há uma dialética da invenção, se o poema lírico nos dá a imediaticidade do tempo e a narrativa sua reflexão constituinte, a prosa nova de Galáxias, essa prosa minada, dá acesso à dupla experiência do tempo; não por certo em sua simultaneidade, o que não parece humanamente concebível mas sob forma de opção, a não escolhida permanecendo como horizonte disponível. Reduzida a fábula ao mínimo, o tempo perde sua figuração linear. O passado se confunde com o que fica atrás; o futuro é o que se segue; o presente, o ponto zero que permite os dois opostos deslocamentos. O tempo, em vez de linha se torna rosácea, uma paisagem. Este universo galáctico é aberto à “educação dos cinco sentidos”. A página é o meio em que a viagem se produz. Em vez de falar-se em a escrita da viagem, o adequado passa a se tratar da viagem da escrita, que é um trabalho fatigoso uma pena celerada você cava milhas adentro e sai no poço onde cava você trabalha trezentos e recolhe um trencentavo troca diamantes milheiros por um carvão mascavado quem sabe nesse carvão esteja o pó-diamantário a madre-dos-diamantes morgana do lapidário. A alquimia da palavra mudando o carvão da letra em pó-diamantário.
O mundo não se fez para pensarmos nele
(pensar é estar doente dos olhos)
mas para olharmos para ele e estarmos de acordo
Àquele que sabe ver, mesmo ficando cego, uma visão o habita sempre, no caso do pintor, os milhares de quadros de que está impregnado. Assim como Borges guardou para sempre em si o som dos milhares de livros que ele lera antes de escutá-los. Haveria uma persistência do olho/olhar, como em Fernando Pessoa/Alberto Caeiro:
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo… [10]
É tudo isso que o menino quer ver, sentir, experimentar, não se sabe onde nem como: e o menino foi e a lenda não conta do seu fadário se voltou ou não voltou se desse ir não se volta a lenda fechada em copas não-diz desdiz só dá voltas.
Pensar a dependência do visível em relação àquilo que nos põe sob o olho do que vê (Merleau-Ponty). Trata-se de discernir a preexistência de um olhar – eu só vejo de um ponto, mas de minha existência sou olhado de toda parte. As fábulas, as lendas, a imaginação veem o menino por todos os ângulos, e ele procura tudo isso com o seu olhar, único e faminto de ver.
A referência à natureza trata-se de nada menos que o fenômeno dito do mimetismo. Não deveremos, então, distinguir a função do olho da função do olhar? Haveria a preexistência, ao visto, de um dado-a-ver, como no título de Didi-Huberman: “como vemos o que nos olha”. Merleau-Ponty nos mostra que somos seres olhados no espetáculo do mundo. O que nos faz consciência nos institui, do mesmo golpe, como speculum mundi. O espetáculo do mundo, neste sentido, nos aparece como onivoyeur. É mesmo essa a fantasia que encontramos, na perspectiva platônica, de um ser absoluto ao qual é transferida a qualidade onividente. O mundo é onivoyeur, mas não é exibicionista – ele não provoca nosso olhar. Quando começa a provocá-lo, então começa também o sentimento de estranheza [11].
O que são essas figuras todas? Esses desenhos todos? Todas essas cores? – seria esse dar-a-ver gratuito em que se marca para nós a primitividade da essência do olhar. O que seria o vejo-me ver-me? Percebo o mundo numa percepção que parece depender do vejo-me ver-me. O privilégio do sujeito parece estabelecer-se aqui por essa relação reflexiva bipolar que faz com que, uma vez que percebo, minhas representações me pertencem. Trata-se de reconstruir, e não de um caminho percorrido no sentido contrário – de reconstituir a via pela qual pôde surgir, não do corpo, mas de algo que Merleau-Ponty chama a carne do mundo, o ponto original da visão. A consciência, em sua ilusão de ver-se vendo-se, encontra seu fundamento na estrutura em reviravolta do olhar. É esse o olhar do menino na busca das fábulas.
Mas que é o olhar? De todos os objetos nos quais o sujeito pode reconhecer a dependência em que está no registro do desejo, o olhar se especifica como inapreensível. É por isso que ele é, mais que qualquer outro objeto, desconhecido, e é talvez por essa razão também que o sujeito consegue simbolizar com tanta felicidade seu próprio traço evanescente e punctiforme na ilusão da consciência de ver-se vendo-se, em que o olhar se elide. Para o homem nomear ele precisou olhar, ver o mundo. E desde então, as categorias entre olhar e nomear permeiam o ser do mundo, o ser do tempo, o ser do ser. Também é preciso ter em “vista” que não se deve (porque não se consegue) desvendar o enigma, não há a palavra-chave do enigma, nem Drummond tem a chave.
Para fazer do texto viagem com o verbal, chega-se à alma através do traçado da escrita, do tempo/espaço da leitura, da fome do escritor e do leitor de captar o invisível no visível/dizível. A identificação (além de ilusória) é a morte do olhar. Em Galáxias o texto nos diz: olhem antes de tudo! O menino quer ver, não quer conhecer, quer lançar-se, num jogo de dados que não suprime o acaso nem o incompleto. Mas há o olhar que oferece o luxo do tempo, o privilégio dos sentidos. Brancusi, citado em outro fragmento, o 21 das Galáxias, convida a olhar as esculturas até vê-las. Assim termina o texto de Haroldo sobre Brancusi: foi brancusi sim brancusi parecia um monge zen o livro é o que está fora do livro um livro é o vazio do livro a viagem é o vazio da viagem mandíbulas.
Para o menino, em “matatempos e passatempos”, há uma armadilha do olhar, é precisamente ao procurar o olhar em cada um de seus pontos que o veremos desaparecer, o menino, e nós, leitores, pois o olhar entra na dimensão de outrem, de outrem/textos.
A seleção de um certo modo de olhar, o do pintor, por exemplo. O sentimento da presença do olhar. O pintor, àquele que deverá estar diante do seu quadro, oferece algo que em toda parte, pelo menos da pintura, poderia resumir-se assim: – Queres olhar? Pois bem, veja então isso! Ele oferece algo como pastagem para o olho, mas convida aquele a quem o quadro é apresentado a depor ali seu olhar, como se depõem as armas. Aí está o efeito pacificador, apolíneo, da pintura. Algo é dado não tanto ao olhar quanto ao olho, algo que comporta abandono, deposição do olhar. Mas há um algo mais que é, precisamente, porque se olha um pouquinho mais ao lado, que esse algo mais nos pode aparecer. Na dialética do olho e do olhar do texto, para o menino, não há de modo algum coincidência, mas fundamentalmente logro. Quando, no amor, peço um olhar, o que há de fundamentalmente insatisfatório e sempre falhado, é que – Jamais me olhas lá de onde te vejo [12]. Esse é o olhar amoroso do menino. Inversamente, o que eu olho não é jamais o que quero ver. É esse jogo, um jogo de trompe-l’oeil, que faz funcionar o texto galáctico do menino em busca de suas imagens e imageries.
Modificando a fórmula que é a que Lacan dá para o desejo enquanto inconsciente – o desejo do homem é o desejo do Outro – diz que é de uma espécie de desejo ao Outro que se trata, na extremidade do qual está o dar-a-ver. No que esse dar-a-ver pacifica alguma coisa? – senão nisto, que há um apetite do olho naquele que olha.
“A forma”, escreve Balzac, “em suas representações, é aquilo que ela é em nós: apenas um artifício para comunicar ideias, sensações, uma vasta poesia. Toda imagem é um mundo, um retrato cujo modelo apareceu em uma visão sublime, banhada de luz, facultada por uma voz interior, posta a nu por um dedo celestial que aponta, no passado de uma vida inteira, para as próprias fontes da expressão.”
A poesia, consequentemente, torna-se “uma ininterrupta sequência de novas imagens”, uma “rede estrita de imagens ou analogias a ser lançada no misterioso mar de fenômenos.”
Em Galáxias, há uma ruptura radical com o pacto mimético entre o artista e o público, uma ruptura que se manifesta, paradoxalmente, numa síntese nova do verbal e do visual que é desenhado na trajetória do menino. Essa viagem vem a ser a viagem do poeta dentro de um campo da linguagem no qual a escolha de palavras e frases é o tema. A conjunção de motivos que não procedem da base da necessidade lógica, mas combinam-se de acordo com o princípio da necessidade formal, similaridade e contraste.
A hoje famosa distinção de Roland Barthes entre o texto lisible e o scriptible (“escritível”) dá a definição do escritível como uma “galáxia de significantes, não uma estrutura de significados; ele não tem começo; é reversível; conquistamos o acesso ao mesmo tempo através de várias entradas, nenhuma das quais pode se declarar, de modo autorizado, ser a principal”, é o que se dá em Galáxias. Poderíamos dizer ao pé da letra? É um texto que não pretende iluminar ou traduzir o visível, mas excitar o invisível.
O mundo interior se impõe ao mundo exterior. A potência geradora de imagens reside no sujeito. O menino tenta extrair de si mesmo, talvez sem o saber, a matéria de sua criação e convertê-la em objeto de contemplação estética. Assim deve ser o modelo de criação, talvez uma teoria sinestésica da imagem ou uma teoria das correspondências pós-simbolista, à guisa de uma etiqueta, num jogo de substituições, superposições que desconcertam e que se impõem.
Galáxias cria um longe. Um distanciamento preparado estética e poeticamente por signos/ícones que criam espaços e tempos a serem trilhados pelo leitor. O menino conserva o gesto da escrita na sua busca pelo que foi dito/lido/escrito. O modo de produção dos signos afeta o modo de recepção. O ato de leitura de uma obra/texto implica uma mudança dos signos escritos ou visuais em um universo mental onde ideias e imagens se associam. O trabalho do leitor de texto literário consiste em converter uma série de representações que transcendem o texto. Estar fora do texto ou dentro, ou atravessá-lo por um olhar, tocá-lo, tangenciá-lo por línguas e linguagens em busca de uma possível leitura, ou de alguém que materialize a fada, a sherezada, o cisne. Escolha por semelhança ou dessemelhança, textos, autores – caminhos por onde os sentidos possíveis colocam-nos à frente da indecidibilidade de nossas leituras.
Por isso, para a leitura de Galáxias, podemos forjar uma nova fórmula: Quem tem ouvidos para ouvir, veja. Quem tem olhos para ver, ouça/leia. Quem quer encontrar sua fada, sua saga, sua maga, vá.
A experiência da leitura desse texto é uma “paixão errante”, como diria Blanchot, mas no sentido literal. Onde essa errância para e como ela se movimenta faz parte das andanças do menino e do texto que é encenado. Absorvemos em nós as vozes de nossas leituras. Trajetórias que não esgotam o texto, mas que acabam por se impor como uma postura, uma invenção, um jogo de articulações dos textos e dos entretextos.
Se a literatura é uma linguagem, ela se constitui de signos que permitem diálogos variados entre as formas, construindo semioses. Formas vazias ou plenas para serem tocadas/olhadas: o visível e o tangível, que supõem, claro, o invisível e o intangível. Formas em movimento. A aventura semiológica, que é a aventura da teoria e da crítica, se realiza no texto, sob os textos. Para quem produz ou para quem lê, o exercício da percepção, da memória e do imaginário está no limite do pensamento – ou seja, no limite da interpretação, da tradução, da leitura [13], como uma Emoção, termo que se enfraqueceu durante um século que se disse racional, científico – mas que significa pôr em movimento, impulsionar, afetar, comover, pois Comoção é a ação de se pôr em movimento com o corpo enquanto emoção. Um corpo que toque o outro.
Para finalizar, entre tantas falas e fadas e sagas, aproprio-me da doxa/paradoxa de Barthes, que fecha/abre esse discurso que persegue a fala poética de Haroldo de Campos:
“Formações reativas: uma doxa (uma opinião corrente) é formulada, insuportável; para me livrar dela, postulo um paradoxo; depois esse paradoxo se torna grudento, vira ele próprio uma nova concreção, uma nova doxa, preciso ir mais longe em direção a um novo paradoxo.
Refaçamos esse percurso. Na origem da obra, a opacidade das relações sociais, a falsa Natureza; a primeira sacudida é pois para desmistificar (Mitologias); depois, como a desmistificação se imobiliza numa repetição, é ela que deve ser deslocada: a ciência semiológica (então postulada) tenta abalar, vivificar, amar o gesto, a pose mitológica, dando-lhe um método; essa ciência, por sua vez, se embaraça com todo um imaginário: ao desejo de uma ciência semiológica sucede a ciência (tantas vezes tristíssima) dos semiólogos; é preciso pois desligar-se dela, introduzir nesse imaginário racionalista a semente do desejo, a reivindicação do corpo; é então o Texto, a teoria do Texto. Mas novamente o Texto corre o risco de se imobilizar: ele se repete, se troca em miúdo em textos opacos, testemunhos de uma solicitação de leitura, não de um desejo de agradar: o Texto tende a degenerar em Balbucio. Para onde ir? É aí que estou. [14]
É nesse aí que nos encontramos: galáxias de Textos que devem ser lidos, amados, desamados, amassados, transformados… mas a lenda, fechada em copas, não diz desdiz só dá voltas
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DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1985.
PESSOA, Fernando /Alberto Caeiro: Poemas completos de Alberto Caeiro, II. Obra Poética: Rio de Janeiro. Ed. Nova Aguilar, 1986, p. 138.
ROBAYNA, SANCHÉZ. “Barroco de leveza”. Revista USP, dez/jan/fev 1990/91, p. 135-140.
NOTAS:
[1] DELEUZE, Crítica e clínica,prólogo, p. 9.
[2] CAMPOS, Tempo brasileiro, n. 26/27, jan./mar 1971.
[3] CAMPOS, “Da razão antropofágica, diálogo e diferença na cultura brasileira”. In: Boletim Bibliográfico. Biblioteca Mário de Andrade, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, v. 44, n. 1-4, jan./dez. 1983.
[4] CAMPOS, Ciropédia ou a educação do príncipe, obra publicada por Haroldo de Campos em 1952.
[5] Ver a introdução a Melhores poemas Haroldo de Campos,seleção organizada por Inês Oseki-Dépré, Coleção Melhores Poemas, Global editora, 1992.
[6] ASSOULINE, Rosebud, p. 85.
[7] ROBAYNA, Sanchéz. “Barroco de leveza”, Revista USP, jan.fev.mar. 1990, p. 135-140.
[8] BENJAMIN, Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, p. 222-234.
[9] COSTA LIMA, A aguarrás do tempo. “Arabescos de um arabista: Galáxias de Haroldo de Campos”, p. 321-357.
[10] Pessoa /Alberto Caeiro, Poemas completos de Alberto Caeiro, II. Obra Poética, p. 138.
[11] LACAN, “O que é um quadro?” O seminário, livro 11: os quatro conceitos de psicanálise. p. 103-115.
[12] LACAN, O Seminário, Livro 20,p. 100.
[13] Casa Nova, Fricções, traço, olho e letra,p. 108 e seguintes.
[14] BARTHES, Roland Barthes por Roland Barthes, p. 85.