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A poesia merece ir para o saco

notas de estética e sociologia da literatura

 

Coloquem num saco (de preferência transparente) o nome de uns 50 professores de literatura. Gente de todas as regiões e gerações, ativos e aposentados. Para esse saco devem ir nomes de veteranos que estudaram latim no colégio e já leram de tudo nessa vida e também nomes desses jovens recém-chegados no mundo intelectual, cheios de novas teorias e passagens por prestigiosas universidades estrangeiras. Antes, é claro, apurem bem direitinho se ninguém aí fez um livro que está concorrendo ou se está patrocinando alguma obra que pode entrar no páreo – esses não podem ir para o saco, eles estão impedidos não só de julgar como também de concorrer à própria chance de fazê-lo. Daí é só sacudir um pouco e solicitar a alguém que tire uns três ou cinco papeizinhos do tal saco em um lugar previamente marcado e na frente de todos que queiram assistir ao sorteio. Pronto: já temos um júri legal e legítimo. Um júri escolhido por tal sistemática dispensa o subjetivismo das indicações de notáveis, pois envolve um ritual e uma contingência, a nítida combinação entre a diversidade de perfis e o elemento randômico da oportunidade. Essa é uma lição dos gregos, que tanto observavam o acaso e a preferência, a vontade dos homens e a dos deuses. Aliás, os atenienses eram muito ciosos com a lisura dos concursos de seus festivais dramáticos. Os júris das competições teatrais eram sorteados (entre os aristocratas para as tragédias e entre todo o demos para as comédias) e, após premiações e festejos, uma assembleia de cidadãos reunia-se no próprio teatro para discutir e criticar publicamente a organização do torneio.

Um jurado é um juiz e, como tal, o seu ofício é parte essencial da democracia, palavra que hoje nomeia tanto um procedimento quanto uma ética isonômica e igualitária. Como em qualquer processo racional (acadêmico, jurídico, administrativo), um jurado deve estar disposto a motivar, justificar e fundamentar a sua escolha tomada no interior de um campo de possibilidades previamente delimitadas pela lei (a isso se chama “discricionariedade”). Assim, em virtude de tal exigência, é altamente aconselhável que um jurado tenha boas condições teóricas de transformar a sua suposta intuição estética em uma explicação, mesmo que sucintamente. Em um concurso literário, avaliar constitui atividade semelhante àquela do julgamento crítico, embora aí a fundamentação já venha sendo infelizmente substituída pela simples autoridade de quem escolhe mais para exaltar ou demolir uma obra, não raramente a partir de critérios que falseiam suas qualidades e em nome de uma ânsia por influenciar desmesuradamente nos rumos da competição estética. No entanto, para além desse problema essencialmente ético, não é novidade o alegado colapso da crítica literária no Brasil e no mundo: poderosos jornais eliminaram suas colunas e as análises autênticas deram lugar a arrolamentos de louvores que, de tão levianos, tediosamente cheiram a propaganda barata, quando já não a colunismo social. Quem sem maiores precauções de longe visse por aqui tais textos de encomenda talvez pensasse que o Brasil é uma civilização de Rimbauds promovidos pelo generoso mecenato de editoras interessadas em apoiar inúmeras “revelações” e projetos “não comerciais” – o que, no primeiro caso é uma ilusão e, no segundo, uma mentira.

Há um mistério de fundo inescrutável na encarnação do estilo que se faz voz e verbo divisáveis. Mas tal acontecimento, a despeito de sua estrita raridade, tem posto a crítica mais silente que genuflexa diante das poucas façanhas que se mostram inabordáveis como o duende de Lorca. A celebração do banal como simplicidade conquistada e o elogio do cotidiano como presumida derrisão das sobrancerias metafísicas (acusadas de grandiloquentes) camuflam uma aquiescência a facilidades e clichês que também escamoteiam as misérias de uma crítica intelectualmente inane e afeita a empulhar seus
leitores (clientes?) com recursos constantes ao non sequitur. O petulante descuido na guarda da tradição, a imperícia no manejo de aparatos teóricos e a estreiteza de horizontes na composição dos panoramas autorais são só algumas de suas carências. Agregue-se a isso a reconfiguração do sistema literário como uma “rede” na qual jovens autores são participantes que se revezam como dublês de críticos de seus pares a fim de impulsionar obras em um rodízio que supre de trabalho abundante e praticamente gratuito os interesses negociais de editoras grandes e pequenas. Esse aplainamento da intervenção analítica, bem como o seu acostamento às atividades de divulgação literária explicitamente partidária, acaba fustigando o papel do crítico como prócer portador de uma voz cuja autoridade era reconhecida pelo sistema de recepção como um todo. Cada grupo de autor passou atualmente a dispor de seus próprios críticos, e se as colisões intergrupais constituem uma exceção ruidosa, a regra que elas exceptuam é a de uma tepidez aceitante e generalizada. Na amplidão dessa platitude, as diferenças mínimas de uma mesmidade monótona são faturadas como vitórias estéticas, ao passo que o contra-cânone dos injustiçados é amortizado ao seu mínimo e as dissidências mais enfáticas são contabilizadas como simples aversão pessoal ou acrimônia de espírito.

Como se sabe, a poesia exige tempo. A autoria poética é de maturação lenta e sedimentação irregular: mesmo um ótimo poeta pode voltar a escrever versos aborrecidos e sofríveis. Ela não se submete a classificações etárias nem admite a afobação dos calendários de prêmios, feiras e outros comércios. A crítica que se debruçar seriamente sobre criações desse escol necessitará atentar à delicadeza de suas condições de produção, especialmente as que são constituintes do topos pré-compreensivo de uma voz que se singulariza justamente a partir delas. E pretender falar do lugar desde o qual um poeta fala é sempre uma aventura fugidia e arriscadíssima, mormente quando se considera a busca de algum índice de originalidade. Se criticar é essencialmente distinguir, isso também se exercita elucidando-se o ver e o visto – as propriedades e as habilidades hermenêuticas dos sistemas de apreensão e representação bem ou mal atingidas pelo equipamento expressivo de um escritor. Nesse sentido, a crítica é uma analítica descritiva e explicativa dedicada a apresentar um arsenal de juízos eles próprios também discutíveis desde a perspectiva assertórica da correção de seus enunciados e premissas. Dito de outro modo, a verdadeira crítica de pronto aceitará submeter-se ela mesma ao ajuizamento de suas ponderações. Entretanto, isso de modo nenhum significa que se resolva, por essa via da crítica e do criticado, o problema anterior que também estou aqui suscitando: o da seletividade extraliterária dos autores criticáveis. Nesse quadro de proliferação bibliográfica, ensejado inclusive pelas facilidade tecnológicas, o ser (in)digno de apreciação já não é preponderantemente um problema de crítica literária, mas sim um tópico candente de sociologia da literatura: quais redes e por quais meios se disputam as táticas de fixação das identidades autorais? – eis a questão, posta em um lugar metacrítico ao qual retornarei.

Um dos últimos espaços de refúgio da crítica é a universidade, lugar onde o juízo a duras penas (ainda) se cultiva por ofício em matéria de uma correção estética e teórica alcançada mediante o pólemos das controvérsias nascidas do choque entre preferências artísticas e intelectuais. Apesar do relativismo barato e da guetificação multiculturalista, na universidade uma fraude ou um absurdo devem ser desmascarados por dever, tal como reza a tradição crítica que desde Kant separou o pensamento da religião que outra vez se disfarça em novos sistemas de dogmas. A universidade, muito especialmente a pública, é o útero da sociedade: alimentada pelo cultivo da tradição e fecundada pela pluralidade respeitosa, ela gera o futuro. A universidade é um dos derradeiros espaços relativamente a salvo do ímpeto mercantil do mundo das publicações e da lógica artificiosa de certo jornalismo cultural obcecado pela celebridade. Exatamente por isso, defendo a presença ostensiva dos professores universitários na constituição dos júris de nossos concursos. Os docentes e pesquisadores estão habituados, por encargo profissional, a dar explicações públicas sobre as suas escolhas teóricas, práticas e até mesmo bibliográficas. E é isso o que mais deseja uma pessoa avaliada: saber algo a respeito dos critérios que mensuram o seu desempenho. Claro que julgar poesia (e qualquer arte em geral) não é tarefa das mais fáceis. A carga subjetiva que comparece à escolha é sempre fortíssima e, nesses casos, é ainda o silêncio que tantas vezes fala mais forte e obsequiosamente. Entretanto, é errôneo acreditar-se que tal subjetividade invariavelmente degringole em um relativismo inócuo, ou que ela radique em uma espécie de “caixa preta” das cargas idiossincráticas perdida nas funduras mais abissais da personalidade. Sendo o gosto socialmente construído (e tantas vezes imposto goela a baixo), pode-se esperar que quem o analise e o exprima exemplarmente possa equilibrar seu juízo entre as principais tensões que o modulam: a recepção da tradição (a memória preservada dos melhores feitos, tantas vezes exercida pelos jovens) e a inovação (o sentido de ruptura e atualização, com frequência curiosamente desempenhado pelos veteranos que, podendo prescindir das alianças mais espúrias, sentem-se livres para reconhecer as inovações e os altos conseguimentos que subitamente irrompem no mundo da criação).

Com efeito, também cumpre assinalar que a universidade está longe de ser refratária às disputas de poder e aos corporativismos que lhe alcançam, dos pequenos privilégios nas publicações às épicas rasteiras nos concursos de recrutamento. Ademais, todos sabemos que há diversos autores (bons e ruins) com perfil acadêmico que lhes permite impulsionar suas obras a partir do prestígio granjeado em outras atividades suas, ligadas sobretudo à pesquisa científica, à tradução, à edição e, em especial, à circulação doméstica e internacional pelas instituições de pós-graduação. Por óbvio, nada disso é reprovável ou por si elogiável. Mas é importante lembrar que esse mesmo sistema universitário dispõe de um verdadeiro exército de centenas de especialistas altamente qualificados que jamais cogitaram tal duplicidade de carreiras, garantindo-se assim a isenção necessária para não serem impedidos de participar de listas de julgamentos e possibilitando-se, ao menos em princípio, apreciações mais voltada às obras que aos nomes e seus respectivos círculos e currículos. Estes podem, pois, entrar para o saco.

Naturalmente, essa minha caracterização tão sintética de um ideal modelar nutre-se de uma pretensão normativa, posto que o diagnóstico contrafático apurado nas artes do Brasil é amiúde o seu mais exato avesso. A falência do nosso sistema educacional fez com que os pouquíssimos indivíduos que se candidatam à carreira de escritores rotineiramente percorram um calvário humilhante de bajulações e buscas de apadrinhamentos que transmutem a severidade do juízo crítico em uma reles questão de afabilidade pessoal. O escritor aspirante passa então a ser um cortejador reverente, um agente manso e inofensivo, um frequentador assíduo de grupelhos que implora a sua vaguinha no seleto grupo dos estabelecidos. Premiadas e aclamadas, a alta projeção pública de nulidades indiscutíveis e retumbantes só pode ser assim explicada pela lógica indulgente desse tipo de acesso facilitado à porta dos fundos da consagração. Animada por concursos organizados pelo mercado, a República das Letras retrocede assim a uma confraria de amigos ilustres que, ao arrepio de análises mais sinceras e rigorosas, funciona segundo essa regra de ouro da falsa universalidade corporativa: “enquanto formos poucos, todos somos bons”. Pois bem, isso equivale a dizer: se todos são bons, ninguém é bom – e que se lavre o atestado de óbito da excelência, a ser subscrito por todos os pares. Com o amplo acesso aos circuitos de publicações, em nome da diversidade, uma vertiginosa inflação de obras insignificantes ou simplesmente inassimiláveis acaba atravancando o caminho do que poderia ser acolhido por uma recepção atilada e criteriosa. É assim que poetas e romancistas promissores são sepultados vivos pelo volume extraordinário de publicações que se nivelam pela unidade da mediocridade, um quadro em cujo contexto essa mesma perspectiva cortesã ainda forja o idílio de um campo literário harmônico e acolhedor, pasto fértil no qual uma gerontocracia de tetas há muito murchas ensina os seus dóceis bezerros a ruminar o esterco de algumas poucas vacas sagradas.

Todavia, o campo literário é em verdade um campo minado. As elites com algum laivo cosmopolita há muito descobriram que a brutalidade econômica de seus privilégios – sua soja, seus bois, seus bancos, seus imóveis, seus jornais e televisões e seus tradicionalíssimos nomes de família – pouco importa lá fora se não for revestida de algum signo de distinção espiritual: um “talento” que pela força supostamente miraculosa de sua aparição logre mitigar o rastro dos pesadíssimos investimentos decisivos na conquista de uma reputação. Assim, a glória nas letras e nas artes é desde há muito apresentada como uma eclosão inexplicável à qual todos poderiam inocentemente aspirar, um tipo de ponto fora da curva que descreve os altos e baixos da escala meritocrática na qual misteriosamente tão bem as aristocracias burguesas sempre se saem. Desde uma perspectiva “puramente estética”, isso tudo é pouco visível e mesmo de relevância bastante secundária frente a uma história que se consome, às vezes de modo até cômico, em narrar desavenças entre correntes e grupos de “ismos” formados por revistas, editoras, manifestos, coletivos e até gerações inteiras. Porém, quando já observados de fora do sistema literário, tais embates (1) simplesmente não existem; (2) são encarados como o luxo de um enfretamento diletante; (3) ou são de fato sobredeterminados pela efetividade do poder extraliterário dos adversários que se digladiam pelo reconhecimento. Nos dias de hoje, contudo, a emulação massiva desses encastelamentos, pela força gregária que imprimem às suas atuações partidárias, acaba por perturbar a própria expressão da singularidade que noutros tempos melhor definia uma voz postulante ao reconhecimento. Mas isso que na atualidade tanto se aviva, guarda antecedentes bem determináveis. Para Alfonso Berardinelli, na Modernidade, “[…]grupos e tendências organizadas, ou partidos políticos da arte, têm também uma função autopromocional: dão segurança, força, garantias, proteção aos artistas individualmente, em sua luta por concorrência no mercado. Em suma, os partidos políticos da arte também são agências de promoção e colocação. Os artistas de um grupo de vanguarda se apresentam e se compram em bloco. E isso faz diminuir, para cada um deles, os riscos de fracasso e de exclusão. A garantia oferecida por um manifesto e a legitimação histórica fornecida por uma ideologia anulam ou mascaram os problemas de maior ou menor sucesso de cada artista e cada produto artístico.” (Berardinelli: 2007:179).

Mas quem ainda não notou haver atualmente inúmeros poetas escrevendo exatamente do mesmo jeito? Quem ainda não teria percebido que isso é fomentado por cursinhos de truques & macetes para candidatos a escritores que já sem pejos lançam-se à cena pública sem uma mínima carga de leitura? Quem ainda não percebeu que o jogral dos contemporâneos dissimula com frequência uma desafinação generalizada? Quem já não concluiu que as desabridas loas em órgãos de imprensa provêm de meros contatos privilegiados no campo jornalístico? A despeito da ausência de projetos estéticos consistentes, e diante da avidez pela notoriedade a qualquer custo, é crucial que os concursos literários estejam muito bem precavidos contra as ingerências desses partidos estéticos que, outrora revolucionários na época áurea das vanguardas, agora já se tornam títeres de espúrios interesses comerciais, isso para não se mencionar os gurus que movimentam seus seguidores e seus “talentos revelados” como peças de um tabuleiro em franca guerra de posições. Por óbvio, esse processo não é exclusivo da cultura brasileira – que, entretanto, o agrava com comportamento tardoperiférico de seu elitismo disfarçado. Ele enraíza-se na institucionalização das vanguardas que provocou uma normalização do experimentalismo e da afoiteza contestatória. Abordando o envelhecimento da Modernidade, apontado por Adorno, e a incorporação dos discursos experimentais à academia, Alfonso Berardinelli sustenta que “o público burguês clássico, escandalizado e ultrajado pelas vanguardas históricas, fora adestrado pela crítica e se transformara em público neoburguês avançado e condescendente, que considerava a transgressão vanguardista o primeiro mandamento cultural.” (Berardinelli, 2007:178).

Seria então esperar demais que um júri estivesse atento contra o endosso a esse público neoburguês e a modorra de suas vanguardas adestradas? Creio que não, desde que tal júri pudesse tomar a distância necessária para avaliar uma conjuntura estética sem simultaneamente protagonizar algum papel na sua dinâmica concorrencial. Para tanto, e sem aqui almejar uma impossível neutralidade axiológica, os certames públicos devem ao menos agenciar a imparcialidade pela estrita legalidade dos seus procedimentos tanto quanto pelo equilíbrio real das forças concorrentes. Todavia, nada disso funcionará a contento se não forem vigorosamente inibidos os vis sentimentos de inveja e de tendência ao bloqueio de acesso aos espaços de visibilidade que animam certas escolhas. A maneira mais prática de se obstar tais sentimentos baixos e altamente reativos é estabelecer que um competidor do mundo literário não possa ser, ao mesmo tempo, um julgador que se sirva dos critérios da sua obra ou do credo estético do seu grupo para determinar a aprovação ou a rejeição de outros autores. No Recurso que dirigi pedindo a anulação do Prêmio Alphonsus de Guimaraens à Biblioteca Nacional reafirmei a seguinte compreensão: “a dificuldade de profissionalização do setor cultural no Brasil incita diversos operadores do mundo literário a uma espécie de ubiquidade: das mesquinhas disputas de poder à mais chã necessidade de sobrevivência financeira, vejo poetas promissores paralisando suas obras e sendo levados a desempenharem funções simultâneas de críticos, ministradores de oficinas, sócios de editoras, jornalistas, agitadores culturais, curadores, promotores de revistas e, ainda, de jurados – jurados tantas vezes levados à constrangedora situação de avaliarem os mesmos novos autores apresentados por eles ou ‘revelados’ em seus próprios cursos e oficinas. Absolutamente nada disso é ilegal, apenas compondo antes o quadro de nossa sofrível precariedade institucional. Mas assevero que o exercício cumulativo de tais e tantas funções acaba por prejudicar gravemente um juízo crítico que, em um concurso, há de ser emitido em estrita observância aos princípios da transparência, da moralidade, da impessoalidade e, sobretudo, da motivação fundamentada. Importantes sociólogos no século XX demonstraram, inclusive com pesquisas empíricas, que o campo literário não tem, de fato, o caráter de uma confraria de amigos que às vezes pretende manifestar. Ele é, isso sim, um sistema essencialmente competitivo, no qual está em permanente disputa a rara e árdua excelência estética, no que a lisura das premiações públicas desempenha um papel capital de objetivação das veleidades e dos relativismos dos gostos meramente pessoais, engajando os julgadores na responsabilidade pública de suas escolhas.”.

Invoco, em contrapartida, o caso paradigmático do prêmio Nobel. Por que todo esse seu prestígio? Além do valor elevado do prêmio e de seu singular alcance mundial, em tempos de Guerra Fria, os júris do Prêmio Nobel não hesitaram em agraciar conservadores e comunistas. Além disso, em uma mesma instituição, um júri de literatura subitamente deparou-se com os critérios objetivos das ciências naturais em matéria de originalidade e precedência dos inventos e descobertas de seus agentes – coisas seguramente custosas de se verificar no terreno humanístico, mas ainda mais difíceis de ser impugnadas como ideais. Isso, porém, não significa que o Nobel não tenha lá seus inúmeros problemas. Alguns deles nas duas últimas décadas inclusive se agravaram, sobretudo desde a guinada multiculturalista dessa premiação. Mesmo assim, creio que em certos momentos os júris do Nobel souberam colocar a qualidade e a universalidade da arte acima e além de caprichos e interesses mais transitórios, sem tampouco deixar de se posicionar, às vezes quase rotativamente, sobre quem melhor representava uma excelência estética imediatamente brandida pelo séquito dos seus admiradores e confrades de agremiação ideológica. Mas seria uma tolice colossal supor que a humanidade toda, a cada ano, só gere um mísero nome de destaque internacional. Qualquer júri sério frequentemente se vê condenado a estabelecer uma hierarquia de posições artificiais entre vozes cujas peculiaridades as tornam absolutamente imprestáveis a qualquer paralelo ou escalonamento. Tal circunstância se dá quando um nível de disputa pela originalidade acirra-se de modo positivamente exacerbado. E quem ganha com isso são sempre os leitores mais esclarecidos, aqueles que, tendo as suas preferências bem constituídas, já olham sem muita ilusão as tarjas e os selos com a palavra “prêmio” apostos sobre as capas.

No âmago da discricionariedade fundamentada sempre cintilará a subjetividade que a governa. Mas esta não pode se exercer de uma maneira fetichista e desonesta, muito especialmente porque sempre há de deixar inúmeros rastros e indícios para ser objetivada em uma descrição de suas formas sociais de ocorrência. Também é verdade, no universo das obras produzidas por e para comentário, que a encenação de certo “interesse no desinteresse” busca transmitir a ideia da arte e da cultura como lazeres estudiosos que atingem a fineza de levar a sério coisas de ordem lúdica (Bourdieu, 1988:499). Vinculando-se à elegância da leveza, a doxa literária procura resistir à objetivação que pudesse revelar as suas afinidades mais estritas com inúmeros agenciamentos do poder: ela procura a custo manter a “illusio que é a condição do funcionamento de um jogo do qual também é, ao menos parcialmente, o produto.” (Bourdieu, 1988:373). Contra essa despistagem, muitas vezes um simples mapa de proximidades e relações (de ordens profissional, acadêmica, política ou até mesmo familiar) dirá mais e melhor sobre os percalços das escolhas subjetivas do que toda a parafernália de articulações estéticas que se possa oferecer em nome de um discernimento supostamente especializado. Ao cabo, um regime de reconhecimento pode experimentar vícios de diferentes ordens, até o limite de o seu funcionamento tornar-se completamente corrompido. A propósito da precariedade dos circuitos de consagração, Bourdieu afirma que eles se tornam “mais potentes quando são mais longos, mais complexos e mais ocultos aos próprios olhos dos que participam e deles se beneficiam.[…] Quanto mais complicado é o ciclo de consagração, mais ele é invisível, mais a sua estrutura é irreconhecível, maior o seu efeito de crença” (Bourdieu, 1984:206).

Competição justa e chance de alternância são expressões vitais e complementares para que os competidores de uma premiação simplesmente não abandonem a arena revoltados, denunciando a fraude de um falso triunfo. Entretanto, mesmo com muita transparência e honestidade, o regime de reconhecimento em vida sempre guardará seus limites estruturais sem exaurir o juízo sobre a excelência de obras feitas para durar perante outros públicos. Tampouco o exclusivo acesso a prêmios pode ser considerado o indicativo absoluto da qualidade de um escritor. Nem Proust, nem Kafka, nem Borges, nem Machado de Assis, nem diversos outros autores desse jaez receberam o Nobel ou distinções de semelhante destaque. Grandes autores também se constroem contra e apesar do senso estético de seus tempos, tirando a certeza sobre os seus trabalhos de um empenho descomunal e de alguns reconhecimentos críticos precursores. Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, capciosamente afirma no seu Livro do Desassossego que “[…] o prazer da fama futura é um prazer presente – a fama que é futura.”. Um extremo desses casos de denegação do reconhecimento envolve a insólita consciência da própria genialidade. Quando isso não se converte em um patético delírio narcisista, pode produzir uma arte ainda mais potente porque aliada a uma impostura de retirada e escárnio, coisa que também ocorre na versão de uma crítica humorada e virulenta à paralisia experimenta por um sistema de aclamação dominado por monopólios e endogenias. A esse respeito, e em perspectiva comparada, recomendo a leitura do MANIFESTO ANTI-DANTAS (1916), de José de Almada Negreiros (há no Youtube uma interpretação espetacular de Mário Viegas) e do seminal ensaio Heróstrato, ou futuro da celebridade, de Fernando Pessoa.

No panorama dos séculos XX e XXI, assim como a poesia foi arredada pelo romance, este vem sendo substituído no imaginário social pelo cinema, essa maneira essencialmente moderna de se contar histórias e que já se encontra perigosamente à beira de ser fundida com a realidade virtual do entretenimento. Entretanto, a poesia não guarda apenas um conjunto de histórias a ser narradas. Ela é o que permite a existência dessas próprias histórias ao se confundir com a experiência mesma da linguagem no horizonte transmissivo da temporalidade, preservando assim a mais alta inteligência de uma língua em matéria (1) de ideação e compreensão de imagens e conceitos, (2) de possibilidades vocais e acústicas (rítmicas, rímicas, tonais e melódicas, que não se confundem com a música) e (3) de um potencial transgramático de incorporação e violação de regras. Em meu projeto estético e intelectual, venho pesquisando o fenômeno poético a partir da hermenêutica, da linguística, da antropologia, da neurologia e até da genética, buscando um entendimento da relação entre a manualidade dos utensílios e os processos de nomeação que virtualmente ampliam o estoque de dizibilidade do pensamento ao revelar o modo de operação de nossas sutilíssimas estruturas metonímicas e metaforizantes – sim, a poesia é também um permanente campo de estudo e experimentação. Logo, em virtude dessa sua natureza excepcional e fundante no quadro geral da artes, da cultura e mesmo do conhecimento, acredito que a poesia careça de ser protegida e promovida pelo Estado e pela educação pública, haja vista que uma instituição como o mercado não pode dar conta do alto valor que ela gera, acumula e generosamente doa sem muito se preocupar com restituições financeiras. Por isso o valor venal da poesia é tema simultaneamente pouco relevante para o ethos criativo dos escritores e de grande investimento demagógico para as editoras, que buscam se impregnar da ética autoral disfarçando o seu (des)interesse comercial na multiplicação diversificada de produtos ofertados e no amplo retorno indireto de mídia que a interação entre eles proporciona. De todo modo, a circulação da poesia é e continuará sendo anterior à mercancia dos livros, como bem demonstram os sítios, os blogues, as revistas eletrônicas e as páginas especializadas que chegam a tornar despiciendas as próprias obras impressas. Outrossim, ao discorrer aqui sobre as relações entre um ideal crítico e a sociologia da literatura, não pretendo insinuar que os diversos a(u)tores dedicados à crucial atividade de divulgação da poesia, o mais das vezes graciosamente, devam ser postos sob suspeita. Muito antes pelo contrário: com seus eventos, comunidades virtuais e revistas, eles devem é ser muito bem estudados, mesmo por que, ao atingirem boas visões sistêmicas parciais e ao franquearem espaço a vozes silenciadas, oferecem, com seus repertórios de apostas e preferências, um ótimo quadro de agentes concretos, alianças objetiváveis e tomadas de posições.

Enquanto atividade de resistência, a poesia tornou-se estrategicamente essencial no combate ao encolhimento drástico das sintaxes, dos vocabulários e das inteligências verbais, sobretudo das crianças expostas à drástica transformação tecnológica da produção e circulação dos códigos comunicativos, em especial visuais. Submetidas aos espantosos volumes da cultura de massas, as sociedades periféricas atravessam um agravamento da imbecilização de milhões de seus indivíduos mundo afora. Tal acontecimento é também propiciado pela fanorreia que mergulha o mundo discursivo em um espesso lodo de imagens enquanto anula a própria possibilidade de qualquer assimilação processada de definições, sentidos e sentimentos, fomentando uma conjuntura cognitiva muito mais perniciosa que a da chamada alienação nos séculos XIX e XX. Gerações completas de jovens assintagmáticos vem tendo as suas aptidões intelectuais gravemente comprometidas por uma sonegação de acesso às experiências formadoras da linguagem nos espaços da educação formal e da cultura. Em nome do manejo estatístico de índices de desempenho educacional, milhões de crianças brasileiras passam a acumular gravíssimas pensamentos, dificuldades em formar frases, articular e coordenar engrossando legiões cada vez maiores de analfabetos funcionais saídos de um sistema de ensino que muito aprova e cada vez menos educa.

Por estar envolvidos nesse compromisso simultaneamente ontológico e político com a preservação das condições da linguagem humana é que os poetas não devem permitir que a poesia torne-se apenas mais uma ridícula arena de vaidades medidas por critérios comerciais. Nenhum artista realmente digno dessa qualificação escreve para ganhar prêmios. Entretanto, é absolutamente justo (e diria hoje ainda mais: imperioso) que ele os ganhe quando de fato fizer jus a tais distinções, podendo então fazer da sua escrita o seu trabalho e logrando assim afastar-se daqueles que têm na arte só um entretenimento ou um mero meio de abiscoitar indicadores de prestígio e sofisticação nas relações sociais.

Há algum tempo conheci pessoalmente dois poetas cujas obras imediatamente considerei bem superiores àquela que eu mesmo vinha preparando. Desde então, passei três anos tentando compreender o que eles faziam para, sem copiá-los, superar as questões que suscitavam e as soluções que tão naturalmente atingiam. Poucos meses atrás fui procurá-los e, para minha total decepção, ambos haviam desistido da poesia: não escreviam mais e sequer interessavam-se por autores novos. Um deles prestou concurso para uma autarquia, o outro voltou para o interior e agora vende automóveis usados. É disso que estou falando: de bem pouco, mas justamente daquele mínimo para uma subsistência digna que, no caso de certos escritores, envolve até a possibilidade de compra de alguns livros, esse cada vez mais caro pão de nossa alma. De outro lado, observo que junto desses e de tantos outros desistentes, sempre estiveram também aqueles autores predestinados ao renome: os bem nascidos e relacionados que movimentam amplas cargas de contatos sociais e heranças familiares. Esses já surgem com um acesso facilitado à imprensa e à academia, leia-se: acesso à autopublicidade e aos efeitos de autoridade do comentário erudito. As calculadas estreias desses predestinados são cercadas de muitos preparativos, até que, repentinamente, voilà: eles são “descobertos” como “talentos” e “sensações” de alguma ocasião inventada pelo fluxo dos mercados sempre cobiçosos por novos produtos. Em regra, há por trás do “talento” dessas “grandes novidades” das vitrines midiáticas uma poderosa estratégia disso que venho chamando “fabricação da consagração”, um conjunto de procedimentos que devem ser sociologicamente apurados em suas minúcias a fim de que sejam revelados como um fator de desequilíbrio em uma competição, sobretudo quando patrocinada às expensas do Estado e de um debate supostamente honesto de argumentos críticos.

Da sementeira paga de “jovens talentos” às entrevistas constrangedoramente vácuas arranjadas em grandes órgãos de imprensa, a “fabricação da consagração” desencadeou uma corrida pelo status de celebridade literária. No Brasil, a natureza artificiosa desse tipo de reconhecimento a fórceps ainda robustece a sua (auto)legitimação com números de vendagem que tentam aproximar a excelência estética da mensurabilidade dos resultados econômicos alcançados com um público indiscutivelmente minúsculo e mal formado. Nesse caso, a poesia passa a ser avaliada pelos mesmos critérios de êxito da autoajuda que, literal e literariamente, empurra a arte para baixo, (1) endossando a facilidade que nega aos leitores o acesso às conquistas da melhor escrita, (2) acumpliciando-se com a múltipla falência da educação e (3) vinculando-se ao culto da futilidade que converte o autor em um macaco de auditório permanentemente obrigado a peregrinar por eventos nos quais deve agradar sua plateia com gracejos, reprimendas politicamente corretas e até acenos terapêuticos.

Noutro sentido, em nome das chamadas “intertextualidades”, certa crítica contemporânea pretende facilitar o seu trabalho renunciando à empreitada analítica e passando a coescrever outra obra em alegado “diálogo” com aquela que se deveria examinar. Ora, quando o crítico que assim procede é um Roland Barthes, ou alguém de semelhante estofo, a coisa anda mesmo às mil maravilhas. Ocorre, porém, que críticos dessa envergadura intelectual são cada vez mais raros. Em regra, o que então se observa em nome da tal intertextualidade é um uso aparatoso de alguns floreios filosóficos e outras tantas invocações de autoridade capazes de só produzir um ensaísmo epidérmico e inconclusivo, eivado de cacoetes retóricos facilmente detectáveis na tentativa de se enredar um autor tíbio pela teia forte de algum clássico ou de um representante da última moda intelectual, nesse caso, provavelmente oriunda daqueles centros exportadores de tendências teóricas que fatiam o mundo da cultura em nichos correspondentes a diversos segmentos políticos, étnicos, sexuais, econômicos, ambientais, religiosos e mercadológicos. É também nesse sentido que a competição entre obras e autores subitamente passa a ocorrer como epifenômeno da luta entre frações de mercados que tanto criam como atendem demandas identitárias.

Ao fim e ao cabo, um concurso de premiações inevitavelmente reveste-se de uma dura natureza meritocrática jamais completamente imune às injustiças, inclusive as de origem socioeconômica, e essas, não podendo ser reparadas com algum saneamento administrativo, acabam por ser reproduzidas pela implacável seletividade da profissionalização no mundo das artes. Por isso é muitíssimo urgente que o sistema literário (isto é: você que está agora lendo isso) mostre-se vigilante e mesmo desconfiado em relação a esse estado de coisas que passa por uma via nevrálgica de nossa tépida democracia: o direito não apenas de ser poeta, mas também o de almejar ser reconhecido como tal. Eis a tônica republicana e igualitarista que eu gostaria que permeasse o debate estético e político sobre o Prêmio Alphonsus de Guimaraens, cuja nulidade da atribuição solicitei ao Presidente da Fundação Biblioteca Nacional pelas razões constantes no Recurso que pode ser lido por aí.

Atravessamos uma situação de genuíno loteamento da cultura por uma mesma meia dúzia de grupos que vendem carissimamente o seu entretenimento ruim para governos que terceirizaram a educação e as artes. O encontro entre os interesses privatistas e a vaidade desmesurada dos que apelam à “fabricação da consagração” fazem a literatura, e a poesia em especial, experimentarem um delírio autista: o de que estamos atravessando um momento de ampla fertilidade e expansão do público leitor. Mas como isso seria possível, se o letramento no Brasil atinge as raias escandalosas do analfabetismo funcional? Entre podricalhos e multisseculares negociatas, prosseguimos com esse esse sinistro arranjo de uma elite parasitária e nepotista, sempre aguardando as benesses públicas para a perpetuação de sua índole fraudulenta. Dissimulada agora nos ares democráticos da Civilização do Edital, a cultura praticada por essas elites (1) torna-se excessivamente dependente do financiamento público, (2) sem jamais chegar a formar um verdadeiro mercado consumidor de bens espirituais e (3) ainda fazendo com que as relações entre o gosto e o público sejam mediadas por um corpo de atravessadores frequentemente despreparados e/ou já transversalmente interessados em suas próprias opções. As afinidades seletivas elegem os que serão dignos de ingresso em um circuito doravante chancelado por participantes especiais que prescindiram tanto do discurso ajuizante com das preferências populares mais autênticas.

Todavia, esmagado entre a plebe rude do entretenimento e o sofisticado clube dos (auto)escolhidos, subsiste um grupo de autores autênticos, jovens e maduros, ingênuos e céticos, errando de porta em porta com originais que tantas vezes guardam insuspeitas maravilhas e fortes indícios de carreiras promissoras. Tais autores não podem depender apenas da duvidosa simpatia de algum curador privado que, comportando-se como um marechal de patota, busca antes de tudo novos apadrinhados que reforcem os seus próprios poderes de decisão, sobrevivendo mais dos vícios que das virtudes de um sistema literário cuja fragilidade já vem sofrendo a dura concorrência dos vorazes e hiperprofissionais “publishers” norte-americanos.

Imaginemos então algo diferente: não seria formidável se os Ministérios da Educação e da Cultura, querendo de fato amparar as tais edições não comerciais, editassem alguns milhares de uma antologia de poetas de todo o Brasil, escolhidos até sem ordem hierárquica de classificação em concursos transparentes e rigorosos, organizados pelo sistema universitário? Talvez nem existam 50 poetas publicáveis em todo o país. Estou aqui arbitrando esse número. Talvez sejam só 30, ou quem sabe apenas 20, dentre os quais só dois ou três realmente notáveis. Imaginemos ainda que faria parte desse concurso a obrigatoriedade de que a obra fosse distribuída pelas escolas públicas e particulares de todo o país, instituições que seriam então visitadas pelos autores escolhidos a fim de ministrarem cursos complementando o ensino regular e curricular de artes e de literatura no gênero poesia, apresentando lá as suas produções e seguindo um programa de ensino estabelecido segundo um mapa de diversidades regionais. Já imaginaram um poeta do Ceará mostrando o repente e a embolada nas escolas gaúchas e ainda falando do seu trabalho? Ou já imaginaram um aluno de Minas Gerais aprendendo a poesia de Drummond ensinada por um poeta da Paraíba? E se os paulistas fossem falar do concretismo no Acre, será que voltariam mais índios e menos bandeirantes? E se Castro Alves fosse mais conhecido fora da Bahia? Que tal se ainda trouxéssemos alguns poetas portugueses para falar de Camões e de Pessoa no Piauí? E se eles também viessem de algum país lusófono da África, ou de Macau e do Timor Leste? E se para lá também fossem os nossos autores em missões culturais ligadas menos à publicidade e ao marketing das feiras literárias e bem mais ao sistemas educacionais? Necessitamos introduzir essa dimensão estratégica da lusofonia na avarenta vaidade que rege as altercações sobre a poesia, esse patrimônio intelectual e estético que há de ser posto a serviço de milhões de pessoas, sobretudo crianças e jovens em idade escolar. É imperioso romper com a lógica socialite da literatura como uma noite de gala em que escritores falam e escrevem para escritores que logo começam a se detestar e a escrever para si mesmos sobre essa própria detestação.

Walt Whitman certa vez afirmou que não existe grande poeta sem um grande público. Concordo plenamente com essa afirmação. E penso ainda que essa grandeza é também uma questão de contingente: formar milhões de leitores argutos e perspicazes, muito mais do que poucas dezenas de autores precários, é uma medida altamente sediciosa no contexto das democracias semianalfabetas de países como o nosso, com tanta riqueza material concentrada e que distribui tão generosamente a sua pobreza espiritual, essa miséria impossível de ser medida por qualquer índice conhecido. Quando a profissionalização dos escritores maciçamente encontrar a formação de um autêntico público pelo sistema educacional (não por nebulosas ONGs, nem por via do marketing cultural ou de parcas bolsas de exceção), seguramente teremos menos queixosos da sua orfandade de leitores e talvez até possamos ter melhores poetas, pois o acesso prazeroso e precoce à monumentalidade da tradição literária fomenta a consciência da difícil originalidade ao mesmo tempo em que dissuade os incautos, frustra os oportunistas e enxota os diversos Dantas que grassam por aí. Quem sabe então, lenta e progressivamente, a venda de livros aumente e assim se dissipe o dandismo dessas caricaturas da afetação que ridiculamente reclamam a voz e a vez dos bardos entre o blasé bronzeado e o visceral acéfalo, essas atitudes de requentamento de ocos formalismos e cafonas plangências performáticas que só ganham espaço graças à minguada exigência dos leitores.

A formação desse leitorado escolar teria por objetivo uma aproximação efetiva entre a cultura e o sistema educacional. Ele custaria apenas alguns trocados para o orçamento dos governos e ainda uniria de modo concreto os atores acadêmicos aos mundos do ensino e da produção literária. Em contrapartida, isso tudo frutificaria em leitores cativos e na estabilidade para a carreira de alguns autores aspirantes, tornando o ulterior acompanhamento das premiações algo de interesse efetivamente público, nada que se pareça com essa rinha entre dois ou três galos depenados seguidos de uns pintos implumes. Por ora, e em perspectiva bem mais modesta, continuo pensado no saco de sorteio dos jurados que mencionei no começo desse texto. Seria altamente louvável se aqueles que lidam com a responsabilidade das láureas e dos galardões lembrassem que o tempo julga os julgadores, pois, como disse Camões a respeito de honrarias e prêmios

Melhor é merecê-los sem os ter
Que possuí-los sem os merecer.


* O presente ensaio é a versão revista e ampliada de um texto originalmente publicado em uma postagem minha, no Facebook, do dia 06 de janeiro de 2013, no contexto das discussões sobre a anulação do Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Fundação Biblioteca Nacional, que eu e outros autores à época requeremos.

Referências bibliográficas

  • BERARDINELLI, Alfonso. Da Poesia à Prosa. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
  • BOURDIEU, Pierre. Questions de Sociologie. Paris: Les éditions de Minuit, 1984.
  • BOURDIEU, Pierre. Les Règles de l’art. Genèse et structure du champ littéraire. Paris: Seuil, 2002.
  • PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego (ed. Richard Zenith). Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.
  • PESSOA, Fernando. Heróstrato e a Busca da Imortalidade (ed. Richard Zenith). Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.

 Sobre Marcus Fabiano Gonçalves

É gaúcho e radicado no Rio de Janeiro, onde é professor de Hermenêutica e Filosofia do Direito na Universidade Federal Fluminense - UFF. Em 2012 saiu, pela editora 7Letras, Arame Falado, o seu segundo livro de poemas. O autor também publica poemas e ensaios no seu blog.