Enquanto retornava de sola ao Brasil, em 1993, depois de um exílio mal explicado, e era recebido de forma ainda pior pela maior parte da intelectualidade local, Bruno Tolentino publicou As horas de Katharina, em 1994. Este livro também volta, agora, à pauta por conta desta edição, recém lançada, que inclui a peça A andorinha, ou: A cilada de Deus.
A polêmica desse regresso, que incluía também, involuntariamente, Augusto de Campos, Caetano Veloso e, por outro lado, alguns voluntários tolentinos, durou semanas, rendeu artigos com ofensas pessoais, um abaixo-assinado e até uma carta de demissão. São dessa época também Os deuses de hoje e Os sapos de ontem, ambos de 1995, nos quais o poeta levou para a poesia aquilo pelo qual fazia estardalhaço na crítica.
No fim das contas, a discussão enfraqueceu, até mesmo pela ressaca do tom agressivo do início, deixando no ar apenas conversas difusas. A critica à “sensibilidade poética” dos poemas concretos, por exemplo, acabou se provando inútil, uma vez que a intenção do grupo de Noigandres era fornecer novas técnicas de apreensão, ou apresentação, do objeto. E nisso, eles prestaram um ótimo serviço. Proselitismo à parte.
Se, na opinião do time de Tolentino, Augusto de Campos não conseguiu colocar poesia em suas operações semânticas, por outro lado, o poeta paulista forneceu um bom arsenal para outras tantas sensibilidades e segredos. De qualquer forma, o que estava em jogo, na verdade, era a composição cultural da elite brasileira e sua desqualificação. Ao retornar, Bruno reivindicava sua condição social e hereditária de aristocrata carioca. Às custas do status quo paulista.
Sua crítica acabou alcançando os modernistas de 1922, seu primo Antonio Candido, a USP no geral, os paulistas enfim. Como todo bom carioca. Zaratustra já dizia, devemos amar nossos inimigos. Com esse comportamento Bruno Tolentino conseguiu leituras interessantes, como a que fez de um poema de Vinicius de Moraes na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2003, apesar do rancor disfarçado em suas piadas.
Wilson Martins, por exemplo, já em 1996, no Rio, apontava que as palavras de Tolentino tinham chegado tarde, que essa discussão já havia sido suplantada. Até Arnaldo Antunes lembrou que aqueles argumentos não eram diferentes dos que atingiram os irmãos Campos em décadas passadas. Enquanto isso, Bruno fazia uma crítica que assumia para si a linhagem de José Guilherme Merquior e uma poesia em outro tempo-espaço.
As hooooras de Katharina
Os deuses de hoje e Os sapos de ontem, estabelecem, em poesia e prosa, respectivamente, o território que Tolentino estava ocupando antes de morrer em 2007. Nessas obras, ele fala de política e desqualifica a poesia concreta por meio de um pressuposto de Augusto de Campos, o conceito de “novidade”. Para Tolentino, não havia nada de novo ali, apenas manifestos e manifestações lúdicas típicos de civilizações em crise. É mais ou menos isso que a leitura de As horas de Katharina dá a entender.
Este livro rendeu um Jabuti ao autor e foi publicado pela primeira vez em 1994, mas mesmo que tivesse sido em 1894, não teria ido além de alguma espécie de cult religioso. Levo em conta aí a comparação com alguns clássicos que a própria leitura dos versos de Katharina evoca, como João da Cruz e Teresa de Ávila.
Talvez, em defesa, exista ali uma insatisfação, a princípio, interessante com relação à vida de convento. Algo que fica explícito já nas pinceladas vermelhas sobre a imagem da capa desta edição de 2010. Esse incômodo vem de Katharina, o “alter ego do autor” nas palavras de Juliana Perez na orelha do livro.
Apenas para situar o leitor, os poemas que compõem As horas de Katharina seriam, então, de quando a personagem passou a se chamar Sorór Katharina da Anunciação e do Suor de Sangue, no Convento das Carmelitas Descalças, no fim do século XIX.
Voltando ao nosso interesse, essa insatisfação diante de uma vida em preparação para a morte perdura durante praticamente toda a primeira parte do livro, chamada “Os longos vazios”. E, de fato, são poemas em forma de tédio, sem querer dar a isso uma conotação necessariamente negativa. Até mesmo porque possuem algumas reviravoltas que, vez ou outra, resgatam nossa atenção desse mar de lamentações.
O problema é que um assunto, quando é muito recorrente, acaba saturado. Na prática, isso acontece, por exemplo, quando um recurso como o paralelismo é usado sem outra atenção que a puramente musical. Algo que acontece bastante neste livro, ainda que, em Tolentino, o paralelismo possa trazer ecos de um São João da Cruz: naquele olhar cristalino, / naquela boca macia, / naquela fronte serena”.
Redundância ornamental, como a que ocorre neste verso: “neste teu longo olhar fixo”. Ora, qual olhar fixo não é longo? Ou como a que ocorre no poema Anfechtung, no qual lemos: “com teus dois braços abertos”. Imagine se fossem três… Boa música há, e bastante. Logo no primeiro poema, por exemplo, há encontros de toantes que agem como dissonâncias dentro dos versos, e causam um efeito inusitado nos ouvidos:
Vi-te montar teu cavalo.
A majestade, a beleza
de cada montanha presa
à correlação de um vale,
de repente é insuportável!
Boa música que não impede a personagem de refletir, rusticamente, se fazer bons versos é o mesmo que compor boas melodias e nada mais que isso:
‘Misere!’ Tua musa
protesta, mas se acomoda
de arremedar essa música
idiota a vida toda…
“Música idiota”.
Deslocamentos
Assim como o texto também tem suas qualidades e reviravoltas. Um poema que chama a atenção pelo tom deslocado em relação aos demais é “O anjo anunciador”. Por ser bem menos “subjetivo” e “passional” que os outros, dá para perceber que é uma tradução enxertada na “vida” de Katharina. O mesmo ocorre com “Talvez”, que se joga em direção ao intangível, sem mais nem menos.
Em certo momento, a personagem acaba cedendo ao fim das esperanças, mais por efeito de uma natureza hormonal que de anos de desejo reprimido pelo hábito e pelo claustro. Até que então, na segunda parte do livro, algo realmente acontece, numa transição abrupta, porém há muito esperada, que dá um clima ainda mais claustrofóbico às palavras de Katharina.
Isso que não quer dizer que a presença do ambiente reservado do convento seja mais contundente nessa altura do texto, pelo contrário, o recolhimento, no caso, é outro e está muito próximo de Teresa de Ávila, como o próprio título desse interlúdio já sugere: O castelo interior. Assim como obra escrita pela santa em 1577.
Em conformidade com a situação que a personagem evoca, é notável que nenhum dos poemas desse interlúdio, todos sonetos, tenha título. Pois título é, sempre, uma apresentação do poema, algo que o antecede e é dado ao leitor como referência para o que segue. Se a alma desertou do corpo para entregar-se apenas a si mesma e a Deus, não há necessidade de apresentações. E quando a personagem retorna ao corpo, à esfera do sensível, retornam os títulos.
A última parte do livro representa o consentimento com essa “vida quase boa” e tão mal aproveitada durante o mar de lamentações da juventude. Com a velhice, o corpo acaba por se adaptar à vida para o Espírito. E a quase gostar disso. Afinal, tudo valia a pena e “a pena vale a alegria”.
Por fim, a expressão condenatória na retina mental de Katharina, que passa a condenar o espírito aventureiro da juventude, consagra a calmaria da velhice como uma forma de mostrar que as lamúrias todas do passado eram, na verdade, um obstáculo à felicidade. “A graça é uma subversão”, lemos. Ou ainda, “mais vale se enganar…”
Também é preciso mencionar os poemas a Saint-Louis de Monfort, que não cometo o sacrilégio de reproduzir: certamente venceriam o concurso literário de alguma paróquia provinciana. Haja fé para conviver com versos como “Viva São Luís Maria de Monfort!”. O lado bom é que contribui para a fidedignidade a personagem. E com isso faz algo mais próximo de um romance montado a partir do caderno de poesias da protagonista. Daria um (longo) monólogo, talvez, em prol do drama, uma comédia:
Ó enigma da paixão que se apaixona
por si mesma! Ó absurda marafona
nostálgica do eclipse na obscena
obsessão da negação do nexo!
Diante do pleonasmo lamurioso de As horas de Katharina, a peça A andorinha, ou: A cilada de Deus, chega a ser uma sobremesa agradabilíssima, pois fornece novas chaves de leitura, dando mais densidade à personae, e despertando mais interesse (pela máscara, não pelos poemas em si).
Circunstância
Wilson Martins, justamente ao criticar Os deuses de hoje, já havia mencionado alguns anacronismos presentes em Tolentino, entre eles, a prática de uma “poesia de circunstância”, ou “de circunstâncias”, que aparecia fora de hora. Digo que já em As horas de Katharina existe uma coexistência anacrônica com a crítica adotada por Bruno naquela mesma época.
Enquanto uma abusa do vulgar, do clichê, do coloquial, a outra supõe que cultura e entretenimento são incomunicáveis. Essa tensão está presente na luta entre a fala culta e a coloquial de T. S. Eliot e está presente na segunda fase dos Beatles. E está presente em As horas de Katharina. Alcir Pécora, autor do prefácio desta nova edição, advertiu para isso quando fez uma lista de argumentos frívolos, superficiais, contra a pessoa e a obra de Bruno Tolentino, entre eles, aquele sobre a vulgaridade das rimas do livro de 1994: “São vulgares, et pour cause, podem ter interesse, dizer muito a nosso respeito.”
Bruno realiza uma busca interessante pelas fronteiras entre poesia e teatro, o que fica ainda mais evidente com a peça A andorinha e cria uma personagem comovente. Ainda assim, ao lado da “waste land” de Eliot, Katharina se torna uma marionete manejada para frente e para trás, raramente de forma mais brusca, ad infinitum.
Entre os deslocamentos no fluxo de leitura, não mencionei o poema “Meu auto-da-fé” que, com sonetos explicitamente metalinguísticos, produz algum estranhamento meio de um canto paradoxal, que se censura enquanto canta:
O canto é a instauração do absoluto,
e esse não cabe no fugaz, no vivo,
o instante é morituro, anda de luto
o que tentas dizer… Ó fugitivo,
tua fogueira é coisa de um minuto.
Aliás, há acima uma boa amostra de como dizer a mesma coisa quatro vezes em cinco versos. Note-se: 1. [o absoluto] não cabe no fugaz, no vivo; 2. o instante é morituro; 3. anda de luto o que tentas dizer; 4. tua fogueira é coisa de um minuto. Isso tudo nos diz que, de fato, eterno não é passageiro. Mais precisamente, o poema é um canto sobre a impossibilidade do canto.
Na década em que publicou As horas de Katharina, Bruno Tolentino ascendeu ao panteão dos escritores bem mais comentados que lidos. Ao tentar resgatar alguma espécie de subversão em forma de graça, produziu um livro irregular, com mais baixos que altos, uma “história banal que é tudo o que começa e termina de encontro a nada”, como ele mesmo escreveu. Ainda assim, ele é um escritor com qualidades salientes, está acima – incrivelmente – de um tsunami de confissões amorosas em “versos livres” que lotam as prateleiras das livrarias.
Bruno Tolentino abriu fogo contra a palha seca da cultura brasileira, protagonizou o maior bate-boca sobre tradução do país, ocupou, por 15 minutos, a posição da “antinovidade”, mas também carregou consigo o risco produzir os mesmos efeitos que, alguns críticos afins, interpretaram na suposta falta de poesia da poesia concreta (anos 1950/1960), ou seja, o de fazer muito barulho por nada e o de produzir obras tão discutíveis quanto desestimulantes. A obra de Tolentino traduz bem o provérbio: cão que ladra, não morde.
Veja a leitura de Bruno Tolentino na UFRJ