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Barbarismo e Modernidade em Mário Ferreira dos Santos e Paul Auster

1 INTRODUÇÃO

Nascido em 1947 em Newark, Nova Jersey, Estados Unidos, Paul Auster é autor de romances premiados, como: A trilogia de Nova York, Leviatã, Timbuktu e O livro das ilusões, além de roteiros de cinema e coordenações editoriais que vão desde a coletânea de trabalhos de Beckett até a organização narrativa de relatos exóticos dados por ouvintes em um programa de rádio.
“Homem no escuro”, no original “Man in the dark”, fora um romance publicado em 2007 pela Henry Holt and Co e, no Brasil, pela Companhia das Letras. O enredo apresenta um drama familiar paralelo ao cenário de um Estados Unidos da América sobre ruínas de um cenário distópico, onde George W. Bush teria perdido a eleição de 2000, e o presidente fictício eleito, simpatizante de uma política não-belicista, fragilizaria o poder federal do big stick, o que teria como consequências uma crise de legitimidade e uma nova guerra de secessão após o ataque às torres gêmeas.
O trabalho tratará como o romance em tela reflete um retrato político que, espelhando uma América pós 11 de setembro, é capaz de compor um discurso crítico para com as ordens estatais “republicanas” que – tomando o contratualismo como realidade histórica – subvertem a subjetivação, leia-se o processo de construção das identidades, a uma economia moral pré-definida.
Nosso objetivo é observar uma gênese moral para os estados do ser percebidos no texto, tais como a melancolia e o fatalismo, correlacionando-os ao personalismo, para elucidar a compreensão de como o embrutecimento bárbaro, aludido por Mário Ferreira dos Santos, pode contribuir para entender a pertinência de uma violência simbólica, existente no plano do saber e da cultura, caracterizada pela crise dos universais.
Para tanto, valer-nos-emos de traços comportamentais presentes nos personagens do romance para analisar as repercussões psíquicas dessas fundações morais, em especial, no que tange à memória e ao papel do narrador enquanto animal político (zoon politikon), aqui se leia aquele que tem animus narrandi para descrever os grilhões que assolam a pólis e as suas ordenações políticas, econômicas e/ou morais.

2 A CRISE MODERNA DOS UNIVERSAIS: MELANCOLIA E FATALISMO EM HOMEM NO ESCURO

Se uma frase pudesse resumir Homem no escuro, esta seria certamente: “Enquanto o mundo bizarro continua a girar”; verso da poeta norte-americana Rose Hawthorne , verso esse usado na voz de August Brill para reverberar a memória com um fatalismo pós-hegeliano que desconstrói o fato para adentrar o fenômeno.
A memória exerce papel central nesta obra de Paul Auster, que, ao dualizar entre o fático e o fantástico, viaja pelo tempo dos atos do protagonista August Brill, os quais, ressoando uma mimese dos sentimentos, encanta com um constante pareamento reflexivo.
Destarte, partamos de algumas aclimatações com o enredo. August Brill é um modesto crítico literário aposentado. Septuagenário, mora na casa da única filha, Miriam, e da neta, Katya. Por ter sofrido um acidente de carro que o debilitou além da possibilidade de plena recuperação, August foi convidado a morar na casa pela filha.
Miriam, no entanto, não faz esse convite motivada por uma repentina responsabilidade para com o pai. O que lhe move é o abandono do marido, que deixa seu cuidado, sua sensibilidade completamente vaga e ociosa.
Segundo SANTOS esse fenômeno diz respeito ao embrutecimento bárbaro, segundo o autor, esse termo originalmente utilizado pelos gregos e romanos para designar todos os estrangeiros, tem em sua obra outra atribuição. O bárbaro aqui não é um forasteiro, ele usa de vestes comuns, mas seu discurso é destrutivo da alteridade enquanto plausibilidade, ou seja, do caráter tanto intelectivo quanto afetivo do pensamento, pois tem como pressuposto uma compreensão relacional que subordina a razão ao emotivismo.
No romance em tela é possível evidenciar como a autoestima de Miriam, em sua completa devoção à paixão¸ alude a agonia romântica, na qual o eu não existe por meio do outro, por meio da alteridade, mas sim por meio de uma idealização muito específica de plenitude romântica, que reduz a felicidade a determinado modo de vida, ou mesmo, companhia para viver. A redução do horizonte erótico e estético do mundo à senciência das paixões pode ser depreendida a partir do que SANTOS define como supervalorização romântica:
Há uma exagerada valorização romântica sobre a sensibilidade, a sensação, os sentimentos comuns, a intuição sensível, a fantasia, e a sem-razão, e os estragos que o romantismo realizou, não só no filosofar, como em todas as outras manifestações superiores do homem, que foram deploráveis, e cujos frutos ácidos colhemos agora. É que as teses românticas não são criadas num determinado período histórico, como o foi o nosso de fins do século 18 até os dias atuais, em que se processou o movimento romântico, não só na arte, na filosofia, como até nas atitudes éticas e morais dos homens, incluindo a política, a economia etc. Elas estão presentes em todas as fases dos ciclos culturais, em graus maiores ou menores, porque elas constituem um lastro, não só emocional, mas também intelectual do próprio homem, através de sua existência (SANTOS, 2012, p.10).

Aqui, para uma breve introdução analítica do raciocínio comportamental que iremos desenvolver, podemos dizer que o romantismo não é apenas um movimento literário ou artístico, mas um estado de espírito não totalmente exaurido pelo realismo. A dificuldade de lidar com as mudanças e enfrentar o luto é um desafio comum a toda família Brill. A neta de August, Katya, por exemplo, também sofreu uma perda dilacerante. Titus, o namorado da jovem, fora brutalmente assassinado no Iraque, o que agora a faz procurar, na companhia contemplativa do avô, uma consolação redesignativa do ideal (amor romântico) partido.
A guerra, como desenvolveremos nos próximos tópicos, é um elemento central no romance pelo poder nominalista que exerce no plano simbólico. O escapismo sanguíneo que provoca no namorado de Katya é só uma das inúmeras faces de um meio que constantemente lhe reforça o foco primal e adrenalínico de meramente sobreviver. É como se todos os sentidos transcendentais fossem esvaziados a um ponto em que todo entendimento se aproximasse a uma falácia e a única verdade universal e ontológica ao homem fosse a solidão.
Já trazendo SANTOS (2012) à baila, pode-se dizer que a guerra, na modernidade, remete à exaltação da força, à barbarização da ciência e da técnica, à superioridade da força sobre o Direito, à propaganda desenfreada e tendenciosa a interesses meramente mercantis, à valorização do tribalismo, à desvalorização da inteligência e da vontade (especialmente de outros povos e comunidades), ao etnocentrismo, ao negativismo e, entre outras características, ao que pode ser resumido como na desumanização do homem.
Uma vez que o tema da guerra será desenvolvido no tópico a seguir, por hora, retornaremos a nos debruçar sobre outros elementos da narrativa, para isso, vejamos um pouco mais sobre a neta de August, Katya.
Katya é a companheira de um personagem da terceira idade no escuro mais literal. Estudante de cinema desmotivada a prosseguir no curso pelo peso da melancolia que acompanha o próprio contemplar artístico, assiste a filmes por tardes inteiras com o avô e os debate, inclusive os explicando por uma teoria de autoria própria, denominada “Teoria dos Objetos Inanimados”, que, segundo ela, postula a representação de emoções humanas em corpos integrantes da cenografia.

Pense bem nas cenas de abertura de “Ladrões de bicicletas”. O herói consegue um emprego, mas não vai poder trabalhar a menos que tire sua bicicleta do penhor. Vai para casa desgostoso da vida. E lá está sua esposa, na rua, carregando dois pesados baldes de água. Toda a pobreza deles, toda a luta da mulher e da sua família, estão contidas naqueles baldes. O marido está tão envolvido em seus próprios problemas que nem se dá o trabalho de ajudar a mulher, só quando já estão perto da porta do prédio. E, mesmo então, pega só um dos baldes, deixa que ela carregue o outro. Tudo o que precisamos saber sobre o casamento deles nos é transmitido nesses poucos segundos. Em seguida, sobem a escada para o seu apartamento, e a esposa vem com a ideia de penhorar as roupas de cama para poderem tirar a bicicleta do prego. Lembre-se da violência com que ela chuta o balde da cozinha, lembre-se da violência com que ela abre a gaveta da cômoda. Objetos inanimados, emoções humanas. (AUSTER, 2008, pp. 20-21)

Interessante notar aqui como a figuração do tempo de “Ladrões de bicicleta” tem a preferência pelo elemento visual que, a partir de pequenas, mas constantes rupturas – tais como as frustrações do cotidiano – estimula um pareamento das temporalidades de Katya e Brill, estimulando-os a preencherem a narrativa visual com suas próprias falas e memórias. Dessa forma, o imperativo aqui – “Lembre-se” – não parece aleatório, ele parece apontar a menção proposital da tentativa de substantivar a representação de fatos corriqueiros a partir de um imaginário comum capaz de destituir a alienação e a dessubjetivação que reduzira o mundo aos objetos, que acometera ao homem o papel secundário de observador externo e inerte.

Pensando nos filmes novamente, me dou conta de que tenho outro exemplo para acrescentar à lista de Katya. (…) O relógio no final em “Era uma vez em Tóquio”. (…) Um casal idoso viaja para Tóquio a fim de visitar os filhos já adultos: um médico esforçado, com esposa e filhos, uma cabeleireira casada que dirige um salão de beleza, e uma nora que foi casada com outro filho, morto na guerra, uma viúva jovem que mora sozinha e trabalha no escritório. Desde o início, está claro que o filho e a filha consideram a presença dos pais idosos uma espécie de fardo, um transtorno. Eles estão atarefados com o emprego, a família, e não têm tempo para cuidar deles da maneira adequada. Só a nora se afasta dos afazeres dela para lhes mostrar alguma gentileza. No final, os pais deixam Tóquio e voltam para o lugar onde moram (nunca mencionado, creio, então me distraí ou deixei escapar), e algumas semanas depois, sem aviso, sem nenhuma enfermidade premonitória, a mãe morre. (…) Depois do enterro, a família está sentada em torno de uma mesa, almoçando, e mais uma vez o irmão e a irmã de Tóquio estão atarefados, atarefados, atarefados, ocupados demais com suas preocupações para oferecer ao pai muito consolo. Começam a olhar para o relógio no pulso e resolvem voltar para Tóquio no trem expresso. O segundo irmão também resolve ir embora. Não há nada declaradamente cruel no seu comportamento – isso deve ser enfatizado, de fato é a questão principal que Ozu está querendo mostrar. Eles estão apenas distraídos, envolvidos nos negócios de sua vida particular, e outras responsabilidades que os pressionam (AUSTER, 2007, pp 70-73).

Existe aqui uma interessante prefiguração naturalista não inteiramente percebida por Katya. Sendo ambas as películas citadas produtos da escola realista de cinema , a teoria de Katya confirma a tendência naturalista de predominância do comportamento não-verbal sobre o verbal. Para SANTOS (2012), isso se refere a uma pujança moderna do visual sobre o auditivo, essa predominância tipicamente moderna, a qual se pode identificar na obra, em contraponto também é apontada por SANTOS como sendo um elemento da barbarização:

É mais fácil ver, contemplar, do que ouvir com atenção. O que se ouve com atenção guarda-se mais facilmente na memória, e a voz interior é mais lógica e mais segura que as imagens visuais soltas da fantasia. O ouvido, em geral, não fantasia, mas a visão, sim. O barbarismo vertical processa uma supervalorização do visual, de modo que os espetáculos são mais organizados para os olhos do que para os ouvidos. Em períodos, como o nosso, em que a invasão vertical dos bárbaros se processa, a valorização do visual sobre o auditivo é crescente, e até o livro está ameaçado de nele o visual superar a leitura, que é mais auditiva, porque a palavra é para ser ouvida e não ser vista. Não é bárbara a equilibrada acentuação de um e outro, mas o que é bárbaro é aumentar a visualidade à custa da audição (SANTOS, 2012, p.10).

Essa inferência de Katya pode ser explicada naquilo que SANTOS (2012) descreve como acentuada supervalorização romântica da intuição, da sensibilidade e da sem-razão. Não é mais garantidor de segurança ou certeza na modernidade refletir utilizando-se de um pensamento especulativo que debata questões morais. Um completo niilismo romântico assola um conformismo com o sentimento.

Depois da derrota napoleônica e da formação da Santa Aliança, em que se prometia desterrar de uma vez para sempre as guerras na Europa, e impedir o advento de um outro Napoleão, era natural que o entusiasmo se apossasse das multidões cansadas da carnificina napoleônica. O caminho estava aberto à valsa, música da sensibilidade e imensamente vital, às canções alegres, às doces esperanças da boa vida, da paz, da compreensão. Era mister deixar agora que a vida se afirmasse, que os sentimentos se soltassem de suas peias, que os homens tragassem com largos sorvos a linfa da felicidade… E o sonho prolongou-se por anos e anos, sem dúvida, anos felizes para a humanidade europeia, até que aos poucos essas esperanças se desvaneceram, e o romantismo foi tornando-se cada vez mais amargo, mais ácido, mais ríspido, até cair nas manifestações mórbidas do romantismo negro, dos “assassinos de Deus”, dos niilistas negativos, dos satanistas, dos desesperistas de toda espécie, da vivência do tédio ao nojo, à náusea, à repugnância de viver ao embotamento dos sentimentos, até alcançar o brutismo, desejo de se tornarem plantas, ou apenas de serem coisas sem sentido. (SANTOS, 2012, pp. 11-12)

Aqui, não se está menosprezando o poder criativo que o sentimento estabelece sobre o próprio refletir. Como diria PESSOA (2015): “Sentir é criar. Sentir é pensar sem ideias, e por isso sentir é compreender, visto que o universo não tem ideias.” O que se critica aqui é a estagnação da sensação, o emperramento da reflexão no narcisismo de um mundo que agora é povoado pelas impressões atomísticas do pacato.

Um dos sinais mais típicos da barbarização está no crescente desenvolvimento da repetição. As músicas, em que o ritmo é constantemente repetido, a repetição reiterada das mesmas situações, a repetição imitativa dos mesmos abstratismos, tudo isso encontra apoio e se desenvolve. Repetem-se os mesmos tipos de heróis, repete-se, pela imitação, a cópia dos mesmos originais. O imitativo substitui o criador. Não que a repetição deva ser impedida. Ela tem uma função que é importante. O que queremos, porém, chamar a atenção é para a repetição de formas primitivas, a acentuação constante da imitação do que é primário, que, a pouco e pouco, vai substituindo o criador, até que este estanca. Mas a repetição também estanca, quando o abstratismo domina. A tendência a tomar, como arte, um valor constitutivo de uma concreção, como valor mais alto, de modo a torná-lo predominante de modo excessivo, e até, nos casos mais exagerados, único, leva ao estancamento, como aconteceu com o impressionismo ao acentuar determinados valores, o expressionismo ao deixar-se dominar pela catarse, o cubismo na acentuação exagerada do geométrico, o futurismo na preocupação desmedida dos estágios do movimento, até cair no “tachismo” (ou manchismo), e nas formas mais violentas de abstratismo que terminam por cansar desde logo, mortas no nascedouro, tentativas frustradas, que não levarão a nenhum estágio mais alto, mas meras imitações incompletas e falsas do primitivismo, por serem equívocas. (SANTOS, 2012, pp. 22 e 23)

Segundo SANTOS esse romantismo leva à decadência, à vitória do negativismo que organiza a sociedade em indivíduos atomisticamente desinteressados com o outro, os diálogos de “surdos” em que cada falante tem seu discurso crítico orientado de forma solipsista, onde qualquer fé ou esperança de pretensões universalizantes é descartada, pois a experiência apenas molda realidades particulares, ela não apreende o mundo mas sensações e fantasias. Nossas palavras constroem o mundo mas este vale tanto quanto sons ou gestos, protagonizado pela ação mecânica.
Dispostos em um mundo sem sentido em si, a tarefa de dar-lhe sentido pode mostrar-se esmagadora. A consciência aparece como ausência, inércia de individuação que torna o sujeito refém de suas apreensões e contingências, substituindo a autoridade do texto pela autoridade da experiência dos fenômenos que pedem explicações, recorrendo a um horizonte aberto e de significação provisória pela ficção.
A melancolia, segundo FREUD (2010), comportaria uma inibição decorrente da absorção sensível pelo ego. Essa absorção acontece pela emersão de uma culpa existencial. Freud diz que o paciente melancólico se sente culpado até pela ligação com seus familiares, como se esses fossem prejudicados por manterem um vínculo com alguém de tão pouco valor. Importante ressaltar que a principal diferença presente entre luto e melancolia é o fato de que, na melancolia, o ego se torna pobre e vazio, e no luto, esse processo ocorre com o mundo externo.

No instante em que pisa na calçada, no entanto, ouve alguém chamar seu nome. É uma voz de mulher, e, como não está passando nenhum pedestre naquele momento, Brick não consegue identificar de onde vem a voz. Olha em volta, a voz o chama de novo, e, veja só, lá está Virginia Blaine, sentada ao volante de um carro estacionado do outro lado da rua. A despeito de si mesmo, Brick fica imensamente satisfeito em vê-la, mas, enquanto desce o meio-fio e caminha na direção da mulher que assombrou seu pensamento no último mês, uma onda de apreensão se agita dentro dele. Quando chega ao carro, um Mercedes branco, sedã, sente a pulsação mais forte dentro da cabeça (AUSTER, 2008, p. 101).

Em ambos os casos, no entanto, o que se pode perceber é uma inconformidade que parte do ego a partir de uma compulsão à repetição de situações aflitivas no intuito de, gradualmente, assimilar o próprio (in)conformismo. No luto, esse inconformismo dirige-se ao mundo e, na melancolia, ao próprio ego, que aparece como desprezível. A memória torna-se um mecanismo comunicativo excessivamente autocrítico, cujo fim é revelar ou transformar a identidade a partir da falta que o desejo aponta.
Essa repetição, no que tange a Brill, acontece na fantasia. É pela fantasia que ele reencontra o sentimento de aventura da juventude, o flerte com uma paixão luxuriosa e a imagem heroica de criador de seu próprio destino que a melancolia obscurecera. A melancolia não é um fenômeno estritamente moderno. Baudelaire já se referia na triste pujança do poema Spleen, de Les fleurs du mal, à falência de uma consciência coletiva esmagada em uma moral cindida entre a mansidão do cristianismo e o animalesco do paganismo.
Como MARITAIN (1945) aponta, essa cisão é falsa. O paganismo é o berço do humanismo, e o cristianismo também pode ser humanista. No humanismo, o mundo é concentrado no homem, e o homem é dilatado no mundo. O humanismo mira uma transcendência impelida pelo sentimento, esse sentimento, entretanto, não é apenas emoção, ou seja, reação idiossincrática ao mundo.
Conforme GILLESPIE (2009) a recepção da ideia de alma a partir da experiência religiosa cristã, sobretudo a partir de Agostinho de Hipona, coloca a ideia de consciência enquanto atenção vital; disposição mais simétrica de razão e sentimento, a percepção do ente pela leitura aristotélica da reta razão encontrava no próximo e na cultura da tradição (sucessão apostólica) a continuidade de um espírito de verdade transcendental. Essa percepção se funda no reconhecimento de um princípio arquitetônico providente trazido pelo realismo da patrística, majoritariamente fundado na mediania aristotélica, e que em síntese acredita que as causas últimas da realidade podem ser depuradas pela inteligência humana.
A partir da reforma protestante, o sentimento enquanto apreensão universal, assim como o saber, começa a ser encarado com certo ceticismo em decorrência da relativização da autoridade na tradição. O compartilhamento místico e ético dos universais é alocado para o espaço mais individual que vai ser consolidado no emotivismo de A.J. Ayer. O sentimento passa a existir apenas como emoção. Habitualmente, podemos ouvir frases como “gosto não se discute” ou “eu sou assim.” A derrocada da ideia de sentimento – ou para se utilizar de um conceito simples, de formas afetivas universalmente inteligíveis – é relegada a uma falácia fascista de controle e não de entendimento; uma completa perversão do sentido cristão.
A crise dos universais reproduz nesse conflito, segundo SANTOS (2012, p.70); “o esvaziamento das palavras dos seus verdadeiros conteúdos etimológicos e intencionais.” Em termos metafísicos remonta, segundo ANTISERI e REALE (1990), a ruptura entre os nomes e as coisas, o pensamento e o ser.

O problema dos universais diz respeito à determinação do fundamento e do valor dos conceitos e termos – por exemplo ‘animal’ e ‘homem’ – universais aplicáveis a uma multiplicidade de indivíduos. Mas em geral, trata-se de um problema que diz respeito à determinação da relação entre as ideias ou categorias mentais, expressas em termos linguísticos, e as realidades extramentais, ou, em última análise, é o problema da relação entre as vocês e as res, entre as palavras e as coisas, entre o pensamento e o ser (ANTISERI; REALE, 1990, p. 519)

Daí porque a ideia em Brill de que o cinema pode ser um escape passivo de acomodação confortável em comparação à literatura, que diz ele, requer um esforço mecânico de intrusão ativa da consciência em comparação à primeira. O cinema se tornara um produto mais afeito à reprodutibilidade técnica do que a literatura. Aqui, ele faz menção à industrialização e popularização que fez da sétima arte dona de uma beleza vulgar corrompida, para reproduzir padrões irrefletidos.
É preciso fazer a ressalva de que essa pode ser uma afirmação válida para os blockbusters e as infinitas produções artisticamente descompromissadas que hoje multiplicam-se na internet. Certamente, não é o caso do vanguardismo político de um Vittorio De Sica, que além de Ladrões de Bicicleta podemos citar seu igualmente poético Duas Mulheres, ou da sutileza dramática de um Yasujirô Ozu, presente em Era uma vez em Tóquio ou A rotina tem seu encanto.

Estou sozinho no escuro, faço o mundo dar voltas dentro da minha cabeça, enquanto enfrento mais um ataque de insônia, mais uma noite branca no vasto deserto americano. No andar de cima, minha filha e minha neta estão dormindo em seus quartos, cada uma sozinha. Miriam, de quarenta e sete anos, minha filha única, que dorme sozinha há cinco anos, e Katya, de vinte e três, filha única de Miriam, que antes dormia com um rapaz chamado Titus Small, mas Titus morreu e agora Katya dorme sozinha, com o coração partido.
Luz clara, depois escuridão. O sol se derrama de todos os lados do céu, seguido pelo negror da noite, pelas estrelas silenciosas, pelo vento que balança os galhos. Essa é a rotina. (AUSTER, 2008, p. 07)

À luz de HAROCHE (2008) é possível evidenciar na modernidade como o reducionismo do horizonte de vida ao espaço do ego ou da carreira leva a um conflito inexorável entre a incógnita da vontade e os mandamentos da cultura. As intempéries do afeto, conjuntamente à aspereza de sociedades corporativas, limitam a alteridade ao associativismo.
A transcendência torna-se um enigma a ser descoberto nos labirintos de uma consciência subjetivada, na qual o outro, com exceção da dor de perceber as barricadas empíricas que dividem as psiquês, pouco pode sentir da substância comum da emoção; o sentimento de pertencimento comum que motiva uma responsabilidade pública que vá além daquilo que a pólis pode me prover, e sim, daquilo que eu posso agregar a ela.
Esse desencantamento com a coisa pública remete em Brill à busca onírica por Virginia Blaine, o mais íntimo cerne de sua subjetividade, de sua sensibilidade. A socialidade além do familiar se tornara tão caótica quanto a guerra. Tanto é assim que, em nenhum momento do romance, vemos nosso protagonista dialogando, no mundo imaginário em que ele encarna Owen Brick, com outro personagem, senão Virginia.

3 BARBARISMO E VIOLÊNCIA FANTÁSTICA: O NARRADOR EXILADO ENTRE BARRICADAS DE UMA GUERRA PARTICULAR.

Na continuidade do argumento desenvolvido, utilizamos da palavra barricada acima para a melhor correlação com a metáfora apresentada por Auster uma vez da retratação de um homem que imagina uma guerra para enfrentar os conflitos sensíveis.
Aqui, pode-se dizer que a imaginação foi o mecanismo que se fez útil quando o narrar aos seus familiares já não era visto com tanto crédito. Isso não se dá por um desvalor das moças para com o avô, muito ao contrário, demonstra a persistente companhia delas, mas sim um receio que remonta a Benjamin quando explica a decadência da arte de narrar em detrimento do definhamento da sabedoria que aqui representa o universal.

Há, ainda hoje, os que afirmam que o nominalismo, de uma vez por todas, derrotou o realismo das ideias. Tais afirmativas enchem de gozo beatífico alguns filósofos, que permanecem satisfeitos e felizes com a notícia de tão grande vitória. Em primeiro lugar, os que pensam assim metem num mesmo saco toda espécie de realismo. Não fazem a distinção entre realismo moderado e realismo dogmático. Se para o realismo exagerado as ideias são entendidas de per si subsistentes, para o realismo moderado não o são. O que apenas se afirma de real aos universais é que têm eles fundamento nas coisas, às quais se referem. Não são entidade de per si subsistentes, mas apenas esquemas noéticos-eidéticos, que construímos, mas que se fundam realmente nas coisas como nós as conhecemos, segundo a realidade que damos a essas coisas (SANTOS, 2012, p. 67).

Tateando no breu da saudade, do miss, desenhando, na metalinguagem do delírio de Brill, a revivência de um tempo perdido, cujo propósito parece ser descobrir as estruturas essenciais dos objetos ideais do pensamento (noesis), assim como as entidades objetivas que correspondem a elas – os nomes (noema) -, Brill cria um alter-ego; Owen Brick.

A noite ainda é uma criança, e, enquanto fico aqui deitado na cama olhando para a escuridão acima de mim, uma escuridão tão negra que o teto fica invisível, começo a lembrar da história que iniciei na noite passada. É isso que faço quando o sono se recusa a vir. Fico deitado na cama e conto histórias para mim mesmo. Pode ser até que elas não façam muito sentido, mas, enquanto estou metido nessas histórias, elas impedem que eu fique pensando em coisas que prefiro esquecer. A concentração pode ser um problema, no entanto, e na maioria das vezes meu pensamento termina derrapando para fora da história que estou tentando contar e cai nas coisas em que não quero pensar. Não há nada a fazer. Eu fracasso vezes seguidas, fracasso na maioria das vezes, mas isso não quer dizer que eu não me esforce ao máximo.
Eu o coloco num buraco. Parece ser um bom início, um jeito promissor de tocar a história. Colocar um homem adormecido num buraco e depois ver o que acontece quando ele acorda e tenta rastejar para fora dali. (…) Em outras palavras, o homem no buraco não terá condições de se libertar do buraco quando abrir os olhos (AUSTER, 2008, pp. 08-09).

Owen Brick é a fantasia mais clichê e, portanto, essencial. Vive em uma dimensão alternativa onde os Estados Unidos estão devastados por uma nova guerra civil e sua missão é assassinar o homem que, ao imaginá-la, criou-a. Nesse ambiente orwelliano para qual Owen é catapultado, ele encontra em uma paixão antiga tanto a euforia da juventude quanto o exaspero do desejo em um coração já cansado.

Deixemos que Virginia Blaine tenha seu breve momento de alegria. Deixemos que Owen Brick esqueça sua pequena Flora e encontre consolo nos braços de Virginia Blaine. Deixemos que o homem e a mulher que se conheceram quando crianças tirem prazeres mútuos de seus corpos adultos. Deixemos que vão para a cama juntos e façam o que quiserem. Deixemos que comam. Deixemos que bebam. Deixemos que voltem para a cama e façam o que quiserem com cada centímetro e cada orifício de seus corpos crescidos. A vida continua, afinal, mesmo nas circunstâncias mais penosas, continua até o fim, e então pára. E essas vidas vão parar, pois têm de parar, pois nenhum dos dois jamais poderá ir a Vermont para falar com Brill, pois Brill pode enfraquecer e então desistir, e Brill não pode nunca desistir, pois ele precisa continuar a contar sua história, a história da guerra naquele outro mundo, que é também este mundo, e ele não pode deixar que ninguém nem nada o detenham. (AUSTER, 2007, pp. 107-108).

A pertinência dessa fantasia não é a possibilidade de experienciar algo novo. Owen Brick não tem uma personalidade criteriosamente construída ou detalhada, ele é apenas um fantoche lírico para o usufruto de situações inviabilizadas no passado. Owen é apenas uma condicionante importada do modelo bárbaro. Se Brill é velho e doente, Brick pode ser jovem e forte. Ele pode viver a paixão que Brill acredita não ser mais capaz de ofertar, porque o amor para ele está emperrado em uma experiência idealizada sobre critérios contingenciais. Brill, ao interpretar “Era uma vez em Tóquio”, dá uma pista de que pode compreender um pouco essa covardia.

Noriko está sentada sozinha, olha para o vazio com um ar inexpressivo, sua mente longe dali. Passam-se vários momentos, e então ela ergue o relógio da sogra, que está no seu colo. Abre a tampa de metal, e subitamente ouvimos o estalo do ponteiro de segundos que avança no mostrador. Noriko continua a examinar o relógio, a expressão em seu rosto ao mesmo tempo triste e contemplativa, e, quando olhamos para ela com o relógio na palma da mão, sentimos que estamos olhando para o tempo em si mesmo. O tempo que avança ligeiro, enquanto o trem também avança ligeiro e nos empurra pra frente, para dentro da vida, e de mais vida, mas também para o tempo passado, o passado da sogra morta, o passado de Noriko, o passado que vive no presente, o passado que levamos conosco para o futuro (AUSTER, 2008, p. 75).

Enquanto Katya é espectadora do próprio luto, Brill é criador da nostalgia. Owen não é, como pode parecer em uma primeira leitura, apenas a representação da dificuldade de dialogar com o sensível feminino machucado de Katya e Miriam; a arte é uma ponte constantemente (re)construída e valorizada por ele para alcançá-las, porque uma parte dele ainda acredita na universalidade da sabedoria – o que os devaneios fantásticos de Brill representam é o esgotamento empático, o esvaziamento do sensível que carrega (seu ofício lhe demonstra) pelo cansaço de uma vida inteira devotada a tentar provar o valor simbólico de uma narrativa a todos que o entornam.
Se Katya e Miriam são dimensões de sua própria sensibilidade, Owen é a necessidade de transcender o sofrimento do espaço subjetivo e compartilhar em uma realidade tanto política quanto transcendental, de um ideal que alcance e realize mais do que a soma dos espaços individuais, que acalante a fúria e a ferocidade que movem a tiranização inerente a uma fome de dominação bárbara – corolário de uma vida inteira inerte às paixões – e integre, na memória de Brill, a catarse literária que Owen instala.
É neste eixo multidimensional do lirismo da compaixão que toma enraizamento a referência à pluralidade de mundos de Giordano Bruno. A perseguição e execução do frade dominicano pela infinidade de realidades que defendia, representa o poder tão criativo quanto diverso que cada imaginação pode conceber.

O mundo bizarro continua a girar. Noutras palavras, a exemplo de Donne, a vida de Rose Hawthorne foi uma história de conversão, e esse deve ter sido o atrativo, aquilo que despertou o interesse de Miriam. Por que isso a interessa é outra questão, mas creio que vem diretamente da sua mãe: uma convicção fundamental de que as pessoas têm o poder de mudar. Essa foi a influência de Sonia, não minha, e Miriam provavelmente é uma pessoa melhor por isso, porém, por mais que minha fila seja brilhante, há também nela algo de ingênuo e frágil, e peço a Deus que ela entenda que os atos sórdidos que os seres humanos cometem uns contra os outros não são mera abstrações – são parte essencial daquilo que somos. Assim ela sofreria menos. O mundo não iria desmoronar toda vez que algo ruim acontecesse com ela, e ela não iria dormir chorando dia sim, dia não (AUSTER, 2008, p. 46).

Na comunhão do panteísmo de Giordano Bruno com a vocação de Rose Hawthorne, a trama de Auster indica que o ativismo político, ao perpassar pela gnose espiritual da memória, constitui uma chave para a transcendência.
O passado, em Auster, implode a idealização do pretérito na inserção da reabilitação evanescente do fantástico no cotidiano para, ao fim, perceber, neste seu caráter de maravilha, sem a necessidade de qualquer sofisticação representativa, a simplicidade do alcance da completude pelo amor continuado e incondicional, o amor de pai e filha, que como LÉVINAS (2005) diria, é o símbolo supremo do amor ao Outro.
Para LÉVINAS, o amor parental é a expressão máxima do aprendizado ético. Ele é o verdadeiro outro, pois é o inesperado, aquele que está além de todos os projetos. Nas palavras de LÉVINAS, como uma vinda além-do-possível e além-dos-projetos, como se prenuncia na Bíblia quando, em Isaías 49, lê-se que “meu filho é um estranho”.
Segundo SANTOS (2012, p.23): “Um dos preconceitos românticos, mas que atua em sentido verdadeiramente bárbaro, consiste em afirmar que a Razão nos leva ao Caos, à desordem do pensamento, e que só a Intuição nos libertará desse final terrível”. O paralelo aqui pode ser a própria figuração da guerra como investigação interior, corolário do embate do autoconhecimento com a racionalidade do risco e do cálculo.

Ou, então, o sábio é um pobre louco, que constrói um invento, o qual põe em risco a humanidade, e que o herói, de grande musculatura e agilidade, vence e domina com facilidade. Hoje, em suma, caricaturiza-se o sábio, do mesmo modo que os senhores da nobreza, outrora, caricaturizavam o homem de negócios, o mercador, o banqueiro, o industrial de origem plebeia. (SANTOS, 2012, p. 48)

Se na exterioridade, Brill Brill é apenas um flâneur que observa a vida tal como o faria para um espetáculo; na interioridade, ele age tomando a violência que o cerca, refigurando-a em um outro plano narrativo onde ele pode ser o herói reduzido ao soldado.
A alusão à Rose Hawthorne – que, na segunda metade de sua vida, dedicou-se aos pobres como freira, após a morte do marido e da tímida repercussão de sua obra literária – aparece como um lampejo de reflexividade que permite visualizar outro modelo de herói. Um modelo onde o alcance do bem tenha como principais armas a alteridade e o afeto.
Auster tem um compromisso terapêutico e ético nesse vislumbre; apagando o brilho das paixões para mostrar apenas o contorno dos semblantes antes registrados, reflete nossas cicatrizes em outrem para demonstrar que, se nem na solidão estamos sozinhos, então agir e dedicar-se ao próximo é mais do que um modo de vida, é a própria condição da reabilitação, do perdão e da empatia.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Os Estados Unidos é um país dividido, esquizofrênico. ” Essa declaração de Paul Auster, concedida em entrevista à Folha de São Paulo em abril de 2010, indica a crítica de Estado e sociedade norte-americanos que o autor traduz nas intempéries do psiquismo. O escuro é um esconderijo desolado que, invizibilizando suas formas da percepção, dá margem para a sugestão das sombras da ignorância bárbara; a mais perversa violência simbólica, haja vista a dificuldade do estabelecimento do diálogo quando sequer há conhecimento do que se fala, do que se alerta.
O medo, que tanto justifica uma empreitada bélica quanto solidariza uma nova empatia entre os mais próximos como mecanismo de defesa do terror, é o binômio que Auster resgata de Orwell para explicar a concomitância da segregação social com a união política. Se o mundo bizarro de Owen é marcado pela destruição física e institucional da federação no ambiente, já o seu equivalente caótico, no mundo de Brill, é invisível à tangibilidade da natureza ou da civilização, pois adentra na profusão das emoções, da mágoa e do ressentimento na tríade familiar dos personagens.
A Teoria dos Objetos Inanimados define, consequentemente, a dualidade de mundos e de estilos narrativos como espectros de metáfora naturalista. Se a narrativa de dramas eminentemente femininos contados por Brill observa a fisiologia microscópica do afeto, já o lirismo virulento de Owen mensura a anatomia dos conflitos; não apenas políticos, pois a jornada de Owen é antes a jornada de Brill pela memória. “Ele não inventou este mundo. Ele só inventou a guerra. E ele inventou você, Brick. Não entende isso? Essa é a sua história, não a nossa. O velho inventou você para que você o mate. ”
A guerra está em Owen porque está em si – porque só a sente na individualidade do ser -, porque é a batalha que, ainda imperceptível à neta e à filha enclausuradas aos próprios ressentimentos, reage em Brill com a violência silenciosa da reflexão da dor como modelamento dos pressupostos de existência da narrativa de Owen. Assim, ainda que a narrativa de Owen trate da identidade de Brill, ela só existe pela alteridade de Katya e Miriam.
A contemplação dos filmes neorrealistas segundo Stefania Parigi (TORRI, 2005), movimento que na Itália surgiu em oposição ao cinema propagandista do Fascismo, funciona como vivência controlada da facticidade e da sociabilidade, a empatia de descobrir no desempenho de atores amadores o retorno à espontaneidade; a presentificação reflexiva que substantiva um humanismo, pois reflete a luta, mesmo no pós-guerra, da emancipação da pessoa. A procura do caráter anímico nos objetos demonstra a potência simbólica instrumentalizada pela memória.
Em um país silenciado pelo 11 de setembro, Auster quer aludir aos múltiplos ecos da tragédia na cultura e nas relações que prescindem de uma maquinação conspiratória de redes ocultas controladoras dos costumes para que a usurpação teça correntes. Como HAROCHE (2008) esclarece, em uma sociedade na qual a liberdade é o ideal preferencial e um bem em si mesmo, o próprio caráter idiossincrático suportará a subserviência à satisfação dos anseios privados ou, repetindo o clichê, à busca da felicidade em uma nação triste. Não são mais almas, mas sim, os espíritos das coisas idolatradas que corporificam as vontades, e uma vez corporificadas ganham vida própria no gozo e no sofrimento, impondo grilhões e correntes que persistem sua existência no espírito de uma memória viciada na posse daquele grão de areia que lhes pertence e fora tomado injustamente; a nostalgia que imobiliza sonhadores na segurança do lar.
Desenhando mundos colidentes em escopos líricos diferentes – um que viaja pela memória individual e adentra os relevos das angústias dos desejos e outro que atravessa as fronteiras coletivas da política e do Estado -, Paul Auster vai da metáfora das partes individuais para o reconhecimento da unidade universal em cada parte, e destas para a compreensão da completude das partes na unidade do todo universal.
É dizer que todo animal político assim o é pela inescapável força das pulsões e da fantasia sobre o seu discernimento. À luz de SANTOS (2012), podemos dizer que é chegada a hora de clamar por uma nova liberdade, um arbítrio que não seja plenamente livre, pois não consegue mais ser indiferente, porque tem memória e tem pesar – o fardo do ressentimento -, porém que sublima e perdoa, lembra e constitui um outro ser, aquele que, vendo o seu mundo em chamas, desmoronando aos seus pés, ergue-se para suportá-lo e reconstruí-lo, pois, sabe que muitos além dele ali podem se abrigar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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