UM
Em 1938, Johan Huizinga, em seu Homo ludens, escreveu que “o jogo é limitado no tempo e no espaço”, acrescentando ainda que “o jogo leva a outra dimensão, na parte mais íntima do homem”. A dimensão lúdica, sem dúvida, não é inseparável do prazer de jogar. Roger Caillois compartilhou a ideia de que Huizinga abriu caminho, a partir de seu livro, para uma discussão sobre a relação entre o mundo do jogo e o do sagrado. No entanto, Caillois, em seu Les jeux et les hommes [Os jogos e os homens] (1967), dá para os termos “jogo” e “lúdico” um sentido diferente daquele pensado por Huizinga, ou seja, para Caillois, o jogo é uma experiência inquietante caracterizada muito mais pela ambiguidade da máscara e pelo efeito entorpecedor da vertigem. Neste caso, entrar em jogo, in-ludere, não significa apenas entrar numa dimensão ilusória, mas, também, correr risco.
DOIS
Ao ler os dois novos livros de Manoel Ricardo de Lima, As mãos (publicado pela primeira vez em 2003, mas, agora, reeditado numa experiência nova, já que a partida é outra) e Jogo de varetas, ambos publicados pela editora 7 Letras, não pude não pensar no gesto ao qual a leitura de ambos está vinculada: o jogo. A “ameaça” que se dá antes do jogo, ou melhor, já ela mesma em sua abertura, em o Jogo de varetas, indica: “As narrativas que compõem este livro conversam com o jogo de varetas. […] Estas narrativas duram exatamente quando uma vareta se move e, assim, acidentalmente, move outra ou a gente nunca sabe. Nas lojas de brinquedos, agora, vendem-se varetas de plástico e sem ponta, sem felpas ou farpas; logo não furam, não quebram, não se desviam, não têm risco algum”. O livro As mãos, ao longo dos anos, não sem correr risco, sofreu recortes de trechos, que foram enviados a amigos, os quais gravaram as suas leituras em fitas cassete, ganhando em seguida outra vida a partir de uma nova sintaxe; também foi alvo de intervenções de artistas visuais, como os 21 pratos de porcelana da artista Elida Tessler, em que se leem diversos fragmentos do livro, em uma nova montagem, cada prato contendo uma palavra, que compõem o trabalho chamado “mas perto não se fica a quem não se conhece as mãos”; ou, como a sua versão inglesa realizada pelo artista visual Antonio Sérgio Bessa. Manoel Ricardo acrescenta na apresentação do novo As mãos: “Convidei a Rachel Caiano, artista portuguesa que tem um traço encantado, para fazer algo com as capas que embaralhasse esses livros tão distantes no tempo”. Assim, o lance de varetas se deu há tempos, e não sem possibilidade de falhar, pois, segundo Manoel Ricardo, “é praticamente uma obrigação continuar o móbile: retirei e refiz trechos, aproximei o texto aos do Jogo de varetas, é outro livro”.
TRÊS
Portanto, a meu ver, estes dois livros (se é que podemos chamá-los assim) intimam o leitor a se arriscar, como se este afirmasse diante das narrativas: “Vamos, não sejam covardes, mais uma partida, isto é um jogo!”. Sabe-se que o fim de jogo requer sempre uma nova partida. Desse modo, essas duas experiências parecem nos propor reinventá-lo, e para isso é necessário buscar o “êxito da falência”, tal como lemos em Le coupable [O culpado, 1944] de Georges Bataille, ou quando lemos numa das narrativas do Jogo de varetas: “No meio do testemunho a máquina quebra” [Partout]. Veronica Stigger, ao ler o Jogo de varetas, não por acaso irá ressaltar que “escrever só é humano na medida em que esta atividade coincide com a possibilidade de libertação”, pois “ao facultar a transformação do eu num outro e, por consequência, a experimentação de novas possibilidades de vida, os atos de escrever e de contar uma história aparecem como atos eminentemente políticos”. Portanto, escrever, assim como o jogo, é a manifestação da liberdade no interior do próprio rigor, já que escrever, jogar, embaralhar, reinventar, traçar linhas de estratégias, desalinhá-las exigem dispêndio de energia: “A mesa não tem caçapas, o jogo é esse. Esse é o embate: fazer a bola sumir” [O feltro verde da mesa de bilhar]. Em As mãos o narrador diz: “Hoje me narram todos os molambos da memória”, ou seja, dizer “molambo da memória” arma uma jogada, quase se colocando como um xeque-mate, com a indicação que lemos logo no início da narrativa: “Isto é uma memória”.
UM
Aliás, como poderíamos ler as afirmações que aparecem ao longo da leitura desses dois móbiles, quando As mãos buscam entrar em confronto com o Jogo de varetas? “Isto aqui também é África”. […] “Isto é uma savana. Isto é o deserto”; “Isto é uma imagem” [título de uma das narrativas]. […] “Isto é uma rotina em minha cabeça” [O lugar da atenção]. […] “Isto é um acerto, uma dívida” [Preparação para Floro Bartolomeu]. […] “Isto também é o frescor de meu renascimento em Cingapura” [Sanson, o zarolho]. Michel Foucault, ao pulverizar o enigma da frase “Isto não é um cachimbo”, escrita no desenho de Magritte, argumentou: “Por trás desse desenho e dessas palavras, antes que uma mão tenha escrito o que quer que seja, antes que tenham sido formados o desenho do quadro e nele o desenho do cachimbo, antes de que lá em cima tenha surgido esse grande cachimbo flutuante, é necessário supor, creio eu, que um caligrama foi formado e, em seguida se descompôs. Tem-se aí a constatação do fracasso e os restos irônicos”. Seria demais supor, neste gesto, que As mãos e o Jogo de varetas colocam sobre a mesa o seu não saber? Parece que a reinvenção do jogo não se esquiva de fazer da impossibilidade uma nova possibilidade, mesmo que fracassada, desejosa de um novo começo. A tarefa empreendida pelo trabalho de Manoel Ricardo de Lima nos faz pensar na produção da nossa literatura contemporânea, que parece se esquivar com frequência dos riscos da própria literatura, submetendo-se a padrões e modelos excessivamente comerciais. Sem dúvida, corre-se o risco, já que “não se fica perto de quem não se conhece as mãos”. O jogo continua, “e isto é político. […] ‘Sua vez, agora!’ também é uma frase de guerra”. O risco, aqui, realizado por um passo que cria um novo espaço, abandona-se a um pathos outro.