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FABRÍCIO CORSALETTI ou “Honoris causa é hors concours”

1.

Não passa uma semana neste país feliz sem que se anuncie a aparição ou a reaparição de um poeta bacana. Como sou um otimista inacreditável, fico tão feliz quanto o país, e me ponho a ler sorridente a resenha, a orelha, o release, a fim de aprofundar minha felicidade com os detalhes da notícia e a leitura detalhada dos poemas. Aconteceu de novo agora, por obra e graça, ou melhor, por graça da obra de Fabrício Corsaletti, Esquimó (São Paulo, Cia. das Letras, 2010, 76 pp.). Apesar mesmo de o título de uma matéria que anunciou o lançamento chamar o autor de “Poetinha” (Fábio Vitor, Folha de S. Paulo, 17/02/2010).

Poetinha, penso? Não será então mais um poetão? Meu otimismo fica pessimista, até que logo me dou conta de que só pode ser, ora, uma referência a Vinicius. Vivas! Alvíssaras! O poetinha que era um poetaço tem um novo herdeiro no pedaço. Confirma afinal minha suspeita o subtítulo: “À maneira de Vinicius de Moraes, uma de suas influências, Fabrício Corsaletti não separa a poesia da vida em novo livro”. Se entendi bem, além de Corsaletti não separar a poesia da vida, Vinicius tampouco o fazia. Duvido. Poesia não é risoto, que, à diferença do arroz branco, é feito de tudo que se queira meter entre os grãos soltos desse arroz (se bem cozido). O arroz pode, assim, ser misturado a ervilhas, pedaços de tomate, cogumelos secos, rodelas de palmito, camarões pequenos, cebola picada, um pouco de molho de tomate, azeite e parmesão ralado (não é preciso levar ao forno, a menos que se queira dourar a superfície). Já a poesia, pura mistura de palavras, é como aquelas bolas de água flutuando no espaço onde não há gravidade. Se reflete tudo o que a envolve, nada do que a envolve a toca. Afinal a poesia é tão puramente feita de palavras quanto uma bola flutuante de água de moléculas de H2O. A única mistura que aceita, enfim, é aquela usada para fazer a tinta com que se a imprime. Desconfio, então, que Corsaletti (Vinicius muito menos) não consiga misturar vida com poesia. Não é o que pensa o autor da matéria.

Vinicius era chamado de “Poetinha”, alguém que, ao viver com intensidade a vida de artista, dessacralizou a imagem de poeta, despiu-se da aura romântica. Neste aspecto, Corsaletti é totalmente “Poetinha”. Não há fronteira clara entre o que vive e o que escreve; toda matéria íntima vira literatura. O escritor é maluco pela atriz francesa Eva Green – a evocação do corpo feminino é outro selo autoral. Assim, fez para ela um poema em Esquimó, um dos mais divertidos do livro, em que planeja aventuras com ela. Mas isso é brincadeira.

 

Uma grande brincadeira, uma bela piada, uma boa palhaçada, mas não tem lá muita graça. Pois além de confundir poesia com risoto, o autor do texto sabe tanto sobre Vinicius quanto sobre culinária mongol. Pois Vinicius, naturalmente, não era chamado de “poetinha” por nada do que diz, mas sim porque tinha o hábito de falar no diminutivo: “Onde está o uisquinho?” é, para citar um exemplo, uma de suas frases famosas. Outra: “Tomzinho, vamos tomar um chopinho?”. Daí que, por impregnação e senso de humor carioca (quem conta é o próprio Jobim, que o repórter há de conhecer tanto quanto a culinária nepalesa), acabou ele próprio “poetinha”. Deixemos, porém, o grande Vinicius em paz (saravá), e voltemos ao poetinha Corsaletti: “toda matéria íntima vira literatura”. Juntando isso ao fato de que “a evocação do corpo feminino é outro selo autoral”, tremo e temo que lerei versinhos sobre suas funções intestinais (pois não há matéria mais íntima do que as fezes) entremeados a versinhos sobre suas fantasias sexuais estreladas por tal atriz francesa.

Meus tremores e temores, porém, são logo acalmados pelo texto, que informa ser Corsaletti radicalmente diferente de Vinicius em mais um aspecto: pois enquanto o velho “poetinha” carioca era um grande sedutor, o não-tão-novo poetinha paulista é monogâmico:

Corsaletti é completamente louco pela namorada, a professora de estilismo Mariana Rocha. “Depois da poesia, ela é o acontecimento mais importante de minha vida”, diz. Dedica-lhe livros e poemas. Para ela escreveu “Seu nome”, que o autor considera o seu melhor poema até hoje.

Eis a minha deixa para deixar a materiazinha e suas bobabenzinhas para lá e ir afinal para a poesiazinha de Corsaletti. Vou. Mas como disse MacArthur nas Filipinas e Schwarzenegger no primeiro Exterminador (não tinha reparado que poderia ser uma citação: MacArthur, o exterminador do Império do Sol Nascente; afinal, cultura de massa é mesmo cultura), eu voltarei.

 

2.

O tal poeminha, “Seu nome”, também é destacado por Paulo Henriques Britto na orelhinha do livrinho (que de fato é fininho):

O esplêndido “Seu nome”, em que o final dos versos se mantêm fixo e a passagem de um verso para o seguinte se funda na proximidade entre significantes (“um bar” / “um barco”) ou significados (“uma égua” / “uma cadela”).

Mentirinha. Primeiro, porque o poema é tão esplêndido quanto Vinicius misturava a vidinha com a poesiona. Segundo, porque a afirmação de que nesse poeminha o final dos versos se mantêm fixo e a passagem de um verso para o seguinte se funda na proximidade entre significantes ou significados é falsa. Pois verdadeira apenas para os quatro primeiros versos, de um total de sessenta. Falando então mais precisamente, a afirmação é tão-somente um quinze avo verdadeira. Portanto, é três quinze avos falsa. Logo, três vezes mais falsa do que verdadeira.

A razão é fácil de entender, ao se ler o longo poeminha: nosso poetinha tem o folegozinho curtinho. Assim, depois de lograr por apenas quatro versos fazer uso do mecanismo espertamente descrito por Henriques Britto, simplesmente o abandona, e em seu lugar adota, ao longo dos cinquenta e seis versos restantes, o procedimentozinho muito prosaiquinho de escrever frasesinhas compridinhas sem quaisquer relações formais, mas apenas semantiquinhas.

se eu morrer velhinho no suspiro final balbuciarei seu nome
se eu for assassinado com a boca cheia de sangue gritarei seu nome
se encontrarem meu corpo boiando no mar no meu bolso haverá um bilhete com o seu nome
se eu me suicidar ao puxar o gatilho pensarei no seu nome
(p. 74)

Velhinho, uma coisa eu digo: ler frasesinhas como essas por três páginas inteiras e cinquenta e seis versinhos seguidos, me dá de fato ideias suicidas. Será que nosso poetinha, se não pode misturar a própria vidinha à sua poesiazinha, afinal terá o poder de misturá-la à minha morte? Não deixaria de ser um feitozinho.

Outro seria o resenhista do livro, em texto publicado ao lado daquela materiazinha, conseguir me convencer do que tenta convencer o leitor com suas palavras espertas:

[As] variações apresentam frases, descritivas ou aforismáticas, que são colocadas diante de um espelho, de modo a que cada dito se disponha em face a seu oposto. Por exemplo: “Sou dos que vivem/ como se nada tivesse acontecido”; e, na página ao lado: “Não sou dos que vivem como se nada tivesse acontecido”. A inversão das frases vai criando uma atmosfera de instabilidade, onde a verdade patina, desajeitada, sobre gelo escorregadio. “O caminho é sempre o mesmo”, “o caminho é sempre outro”: Não se trata de aforismas cancrizáveis, em cuja inversão se pode ler sua formulação inconsistente, mas de aforismas em cuja hesitação pode-se ler a inconsistência do mundo (Francisco Bosco, “Amor é ponto de fuga quando instabilidade sufoca o leitor”).

Eu, do meu lado, prefiro deixar o pobre mundo em paz, porém posso, outrossim, ler a inconsistência de toda essa conversinha. As frases, nem descritivas nem aforismáticas, mas tão-somente curtas, não são colocadas diante de um espelho, mas apenas em páginas opostas. E a inversão dessas frases não cria atmosfera de instabilidade alguma (ainda que de fato a verdade aqui patine). “O caminho é sempre o mesmo”, “o caminho é sempre outro”: nada além de frasezinhas, sem nada de aforismos cancrizáveis, e em cuja inversão se pode ler sua formulação inconsistente. Senão, perguntem a Umberto Eco.

O aforismo cancrizável é uma moléstia da predisposição ao wit, em outras palavras, uma máxima que, embora pareça espirituosa, não se preocupa com o fato de que seu oposto seja igualmente verdadeiro (Sobre a literatura, in http://books.google.com.br).

Enquanto eu pergunto ao leitor mesmo: o que, pelo amor de Jesusinho Cristinho, há de espirituoso em “o caminho é sempre o mesmo” e “o caminho é sempre outro”?!

Se não há, é porque existe hoje o pressuposto, na crítica de poesia em geral (exceções não têm este nome à toa), de que se pode vender tranquilamente gato por lebre, alho por bugalho e abacaxi por abóbora, porque ninguém mais nota a diferença e, se acaso notar, ninguém dá a mínima.

O que afinal explica aquela materiazinha sobre o lançamento, com todas suas bobagenzinhas, como esta ainda: “A melancolia lírica fez a crítica de pronto associar Corsaletti a Bandeira e Drummond”. Melancolia lírica? Bandeira e Drummond têm tanto disso quanto Vinicius era o poetinha pelo motivo que afirma. Melancolia irônica talvez, cética com certeza. Em todo caso, o que faz a crítica associar “de pronto” Corsaletti a Bandeira e Drummond é que fazê-lo se tornou automático. Como um católico a gesticular o sinal da cruz ao encontrar uma igreja, ao se deparar com a expressão “novo poeta” (ou não tão novo), grande parte da crítica sente o ímpeto incontrolável de escrever Bandeira e Drummond.

 

3.

Eu, infelizmente, tenho outros ímpetos. Por exemplo, quando leio um poema novo, pronto me ponho a analisá-lo. Porém a poesiazinha de nosso poetinha é tão diminutiva que sequer requer (ou suporta) análise. Posso, então, me poupar o trabalho ocioso de analisar seus poeminhas, e em vez de fazer o leitor perder tempo com minhas análises desnecessárias, e em lugar de ocupar este espaço com mais palavras inúteis, brindá-lo com sua pura reprodução.

 

um desconhecido está parado em frente a um restaurante
o mesmo desconhecido não está mais
parado em frente a um restaurante
(“Variações para um desconhecido 1”, p. 14)

um desconhecido está parado em frente ao mar
o mesmo desconhecido não está mais
parado em frente ao mar
(“Variações para um desconhecido 2”, p. 15)

Mesmo que quisesse, eu não teria o que dizer. A não ser, talvez: e daí?

Fabrício Crepaldi Corsaletti
é meu verdadeiro nome
não Fabrício Corsaletti
(“Últimas variações 1”, p. 20)

Fabrício Corsaletti
é meu verdadeiro nome
não Fabrício Crepaldi Corsaletti
(“Últimas variações 2”, p. 21)

Já ouvi falar em irrelevância formal e em solipsismo temático na poesia brasileira atual, mas assim é um pouco demais. Quero dizer, completamente de menos. Ao menos, essas foram as últimas variações (depois de doze delas ao longo de doze páginas…).

Sim, não há mais variações. Pois a poesiazinha do livrinho é invariável em sua alta indigência e em sua autoindulgência:

já falei demais
sobre a minha infância
descrevi lembranças
que estavam
quentes
e esfriaram na página
logo depois

mas nunca falei
sobre a casa vermelha
um casarão
de madeira
pintado de vermelho
vivo
que eu via
fascinado
com o que acontecia ali

nunca falei
nunca vou falar
(“A casa vermelha”, p. 31)

Quem, em sã consciência, rima criança com lembranças, para em seguida ainda explicitar prosaicamente o clichê “lembranças que estavam quentes”? Mas eis que de repente me dou conta de dever estar completamente errado. É que em seguida me deparo com o poeminha “Feliz com as minhas orelhas”, e sou assaltado pela possibilidade, que logo assume o aspecto de uma probabilidade, de tudo ser mesmo uma grande piada, e o nosso poetinha, então, um palhação. Um meninão brincalhão e espertalhão, que ao notar o pote da geleia geral a transbordar e a lambuzar a estreita prateleira da poesia, meio esquecida na parte menos luminosa da cozinha bagunçada da arte brasileira, foi lá e meteu sua colherzinha. Quem haveria de criticá-lo?

como sou feliz
com as minhas orelhas

saber que depois de tudo

elas não me abandonaram
não me maltrataram
não me julgaram mal

pelo contrário
me esperaram esse tempo todo
de braços abertos
e nunca botaram outro malandro
no meu lugar

como sou feliz
com minhas orelhas
(“Feliz com minhas orelhas”, p. 44)

Então tudo se confirma. Tudo se firma, se afirma e se explicita, e sinto a paz serena da verdade a me envolver a alma e a me acalmar as chagas. A realidade se revela, tudo se releva, e tenho ímpetos de me atirar na relva. Pois me deparo com um poema cujo título é nada menos que “Se eu fosse realmente sério”! É tudo, afinal, uma chacrinha! Eu vim para confundir! Aforismo cancrizável? Solta o Abelardo: “Honoris causa é a mesma coisa que hors concours”; “a melhor lua para plantar mandioca é a lua-de-mel”; “o mundo está em dicotomia convergente, mas vai mudar”. Vai ou não vai? Não foi.

nunca fui a Paris
a New Orleans
a Santiago de Chuco

mas sei que deveria
partir agora mesmo
para Cavalo Queimado
(“Se eu fosse realmente sério”, p. 52)

A quantidade de gente que já fez isso, essa ironia pseudo-humilde (e aqui verdadeiramente oca) contrastando o mundo rico (inclusive culturalmente) e vasto ao pobre e pequeno universo do poeta, que ele, não obstante, teimoso e heroicozinho reafirma, é tão imensa, de Oswald a Leminski, que o poeminha afinal ganha ao menos uma dimensão de grandeza: seu enorme sabor de déjà vu. Mas paro por aqui, para não acabar levando tudo isso a sério.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).