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GEOGRAFIAS E NARRATIVAS POÉTICAS DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Poemas do Capibaribe

A partir da década de 1950, configura-se de forma mais clara o traçado da obra de João Cabral de Melo Neto. O poeta comparece no livro Duas águas,publicado em 1956 pela José Olympio,[1] reunindo principalmente os seus poemas do Capibaribe. O título da coletânea é uma alusão a um tipo de “telhado muito comum em casas simples do Nordeste”,[2] mas indica também a divisão da obra em duas vertentes: a de poemas interessados em estados oníricos e de vigília, em que as emoções se misturam com o fazer poético, e a de uma poesia transitiva e de caráter social, vertente que o longo poema O cão sem plumas inicia em 1950.

As Duas águas localizam a poesia cabralina nesse espaço nordestino e, por força do trabalho poético e da tensão da escrita, criam esse regional para que seja apreendido de modo mais crítico e mais universal. Nessa tensão entre essas questões está o trabalho do poeta e o núcleo de sua poética. Em 1956, por ocasião do lançamento desse livro, o poeta disse que o título continha “duas intenções: por um lado, textos para serem lidos em silêncio; por outro, ‘poemas para auditório numa comunicação múltipla’”.[3]

O cão sem plumas, inserido nesse livro, é um poema que vem fixar, pela primeira vez, em seu texto poético, uma estreita relação entre poética e ética. Aqui o eixo define a preocupação que persegue o poeta com as questões sociais e os debates da época sobre as “relações entre criação poética e expressão da realidade”.[4] É, além disso, o último livro que ele imprimiu na prensa manual, com a pequena tiragem de cem exemplares. João Cabral respondia às críticas feitas ao título, O cão sem plumas, por Rubem Braga, na época, dizendo: “pior vai ser o dia em que o rio vier a falar”.[5] O que realmente aconteceu pouco depois, com a escrita do poema O rio, no qual o Capibaribe vai sobrepor sua voz às impressões do poeta.

As duas “paisagens do Capibaribe” de João Cabral desde então, portanto, nos interessam como indicadoras de caminhos e modos no qual o próprio rio sabe e/ou procura saber de seu caminhar. Um movimento que insere em si o próprio movimento da escrita, em que um não saber também está em questão:

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.[6]

Da imagem colorida dos primeiros versos de um rio que “Nada sabia da chuva azul,/ da fonte cor-de-rosa,” João Cabral consegue, recorrendo a images/stories contraditórias, fazer certas associações e abrir o lado oposto da cor, “de lodo e ferrugem”.

As muitas e insistentes comparações na poesia, como por exemplo, “Sabia da lama/ como de uma mucosa”, exigem atenção na leitura. Ao leitor é dada a sensação visual e sensível de chegar muito perto da cena descrita, tanto quanto presenciar a própria construção do poema que se faz obliquamente. Vários exemplos colaboram para que possamos perceber a construção do poema, e ainda o seu suposto inacabamento, com o uso reiterado de analogias. Vejamos na primeira estrofe da seção iv:

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.[7]

As analogias em cascata possivelmente traduzem e obedecem a uma imposição obsessiva do poeta, conferindo “um permanente inacabamento”[8] à leitura, que se apóia no uso do como, ou do assim como, no poema. Portanto, as images/stories não se fecham, e estão a serviço da construção, favorecendo também alguns giros ao olhar que não consegue fixar-se em um só ponto.

É interessante pensar alguns aspectos da obra, em se tratando do poeta João Cabral, que sempre buscou afirmar uma escrita racional e consciente. Interessa-nos ler o movimento da escrita do poeta. Nesse caso, importa escutar a obra jorrar seu ritmo a palo seco, mas ainda assim jorrar. Nesses momentos da escrita se fazendo obra, o poeta experimenta principalmente a força pulsional de seus versos: “o rio cresce/ sem nunca explodir”,[9] e “Em silêncio,/ o rio carrega sua fecundidade pobre,/ grávido de terra negra”.[10] De acordo com o que percebemos, e que é da ordem de uma tensão, duas situações se fazem presentes: o rio cresce, pulsa, e ao mesmo tempo silencia. Às vezes, a escrita-rio parece estagnar-se. Mas aquele rio fluía, entre as paisagens, “Como um cão/ humilde e espesso”:

Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.[11]

O conceito de “espesso”, que é usado ao extremo no poema, funciona ainda como um recurso que vem acordar a percepção sensorial do leitor: “Aquele rio/ é espesso/ como o real mais espesso”.[12] Marta Peixoto explicita o uso abundante das palavras concretas nos versos cabralinos por suas qualidades sensoriais: pele, lama, rio, terra, osso, pedra são algumas delas. O vocábulo “espesso”, por outro lado, vem cheio de uma sensibilidade rara na linguagem, vem do latim spissu. É que a palavra tem serventia múltipla, como se diz no nordeste, podendo tanto ser usada para qualificar alguma coisa: “aquele rio é espesso”, é grosso, é denso, como para suportar uma descrição mais aberta, como essa de escrever, ou seja, escrever intenso, no sentido figurado do termo spissu,escrever com dedicação.

Na revista Colóquio/Letras — Paisagem tipográfica, Roberto Vecchi comenta, no ensaio “Recife como restos”, as visões poéticas de Recife em Bandeira e João Cabral. De Bandeira a João Cabral, a cidade de Recife — “com as suas temporalidades submersas e latentes —, torna-se algo mais do que um simples referente privilegiado. Algo de muito espesso”.[13] Na verdade, se Bandeira evoca o Recife de forma lírica, em uma poética memorialista, já bastante estudada por Costa Lima, João Cabral segue em sentido diferente, pois sua obra vai se construindo, dispondo apenas de sua linguagem. E vai em “processo de desmistificação definitiva do lirismo e do sentimentalismo”,[14] construindo na materialidade da escrita.

Nas memórias destes dois poetas, Manuel Bandeira e João Cabral, que têm por objeto o Recife, há grandes diferenças. A “diferença essencial na objetivação poética cabralina que torna central uma noção menos visível ou até implícita de resto”[15] apresenta uma Recife que continua sendo o objeto de sua poética. Mas João Cabral vai se deter na poesia, com o que podemos reconhecer como os “restos” de seu tempo.

As palavras afirmadas, em entrevistas, dizem de sua família e desse tempo, vivido nos engenhos, de forma tal que podemos compor um cenário um pouco mais íntimo, mais autobiográfico do que nos é dado em seus versos, que também fazem parte desta paisagem:

[Minha família não era rica], era uma família tradicional. Não tive infância luxuosa. Aqueles luxos que certos escritores atribuem ao engenho devem ter sido no princípio da Colônia. Nenhum dos engenhos de meu pai tinha luz elétrica, de modo que, quando começava a escurecer, as empregadas punham todos os candeeiros sobre a mesa, iam acendendo um por um e levando para diferentes cantos para pendurar. Eu fiquei no engenho do Poço do Aleixo antes de me alfabetizar. Então meu pai foi morar no Recife, e nós tínhamos uma professora, a dona Natália, para mim e meu irmão. Depois que nós estávamos suficientemente alfabetizados, entramos para o Colégio Marista. A gente passou a ir ao engenho apenas nas férias. Nessa época, os empregados compravam os folhetos e levavam para eu ler. Eu ficava sentado num carro de boi velho e todos ficavam em volta, sentados no chão, ouvindo.[16]

Mesmo as lembranças sobre essa cena conhecida “do engenho onde corria o rio” de sua infância são lembranças faladas, e por meio das quais ele nomeia as coisas, no caso especial o Tapacurá, um afluente do Capibaribe, que está tão presente nos seus versos: “A minha lembrança mais antiga talvez seja a de estar no engenho. É uma imagem estática, mas na frente do engenho corria um rio, o Tapacurá, afluente do Capibaribe. Esse engenho que a família vendeu é agora o engenho da usina Itiúma”.[17]

A poesia cabralina, que foi nomeada “poesia de restos” por Roberto Vecchi, articula uma Recife morta, em pedaços “descontínuos de memória”, ligada por quadros em movimento. Vecchi considera que João Cabral irá construir, com os restos de Recife, os elementos que nos ajudarão a compreender a sua despoetização. Partindo de um “Recife morto”, João Cabral vai tratar, por exemplo, na série de quadros dos sete cemitérios nordestinos, do impensável e do dessacralizado. E, na função de fazer funcionar uma negatividade em grau máximo, o poeta se aproxima deste ponto do impossível, onde sua escrita conserva algo estruturador da poesia do menos.[18]

Com o poema que é dedicado a Bandeira (“O pernambucano Manuel Bandeira”), do livro Museu de tudo,ele alude a um recifense criado no Rio. A antilírica cabralina, relembramos aqui, parece incorporar alguns achados de Bandeira, seu amigo e interlocutor nessa época, como restos de sua poética.

Recifense criado no Rio,
não pôde lavar-se um resíduo:
não o do sotaque, pois falava
num carioca federativo.
Mas certo sotaque do ser,
acre mas não espinhadiço,
que não pôde desaprender
nem com sulistas nem no exílio.[19]

Retomando o tópico dos restos de uma Recife morta, o poema sustenta alguma resistência com a língua do nordeste, que em Bandeira não teria permanecido como sotaque, mas como algo fixado na alma, no ser. Esclarecemos que no “recifense criado no Rio”, não apenas o avô morto, mas também a cidade, já então uma outra Recife, determina e circunscreve a perda fundamental vivida pelo poeta: possivelmente, a infância. É que na obra do poeta Manuel Bandeira, as “suas referências ao tema cidade são sempre oblíquas e quase sempre ele transforma a cidade, qualquer cidade, em matéria de memória”.[20] E o Recife da infância desse poeta é o da “Evocação do Recife”, tanto quanto o do “Boi morto”.

Cabe esclarecer que a correspondência entre os dois poetas, entre 1942 e 1958, com um ritmo de amizade sincera, chega a influenciar Bandeira na experiência de “ritmos dissolutos”, como por exemplo em “Boi morto”, composto durante uma madrugada inteira, com a repetição das palavras do título compondo um refrão forte e seco:

Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto.

Boi morto, boi morto, boi morto.[21]

Encontramos um breve comentário sobre o fato em Itinerário de Pasárgada, no qual o poeta explica a quebra propositada do verso, de oito sílabas, no final (terceiro verso da última estrofe). Bandeira afirma que buscava um ritmo mais sutil que escapasse do número fixo de sílabas:

Boi morto, boi descomedido,
Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado […].[22]

Vejamos, nesse sentido, que o comentário nos reenvia à correspondência entre os dois poetas, em caminhos distintos, de influências mútuas. Nas conversas sobre os poemas, portanto, desdobram-se séries e temas que aparecem aos poucos. É o caso ainda do poema “O bicho” de Bandeira: “Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio”, onde a visão da rua é a do alto de uma janela. João Cabral, no poema “Alto do Trapuá”, compadece da mesma estranha impressão:

É uma espécie bem estranha:
tem algo de aparência humana,
mas seu torpor de vegetal
é mais da história natural.[23]

A conversa sobre “O bicho” de Bandeira, enviado ao amigo em carta de 26 de janeiro de 1948, confirma o registro desse diálogo de Cabral com certos textos de Bandeira. João Cabral elogia o poema e o comenta em carta enviada em 17 de fevereiro de 1948, ressaltando o fato de Manuel Bandeira conseguir “‘desentranhar’ poesia do cotidiano”:[24]

Não sei quantos poetas no mundo são capazes de tirar poesia de um “fato”, como você faz. Fato que V. comunica sem qualquer jogo formal, sem qualquer palavra especial: antes, pelo contrário: como que querendo anular qualquer efeito autônomo dos meios de expressão. E isso é tanto mais impressionante, porque ninguém mais do que v. é capaz também de tirar todos os efeitos da atitude oposta, isto é, do puro funcionamento desses meios. Você já terá notado que meu ideal é muito mais este M. Bandeira do que aquele. Mas diante de poemas como “O bicho”, fico satisfeito por verificar que nenhum excesso intelectualista me é capaz de tirar a sensibilidade para poemas dessa família.[25]

Ainda são recuperados, nos “tons menores”,[26] aspectos já sublinhados na “Introdução” da coletânea Estrela da vida inteira de Manuel Bandeira. Assim, os nomeados “poemas dessa família” são poemas de secura formal, que a expressão cabralina reforça, dando-lhes caráter e lugar de destaque, na poesia agora escrita por Bandeira. Com os elementos bandeirianos, como os do verso “homens feitos bichos”, e a forma do poema epistolar, que se parece com um relato de carta e desdobra “discurso e percurso”, a influência de Bandeira se faz notar.

Na nomeada “poesia do menos” de João Cabral, o célebre poema do Capibaribe — O rio — é considerado um poema narrativo autobiográfico, em que as perdas são enumeradas entre memória e esquecimento, no movimento de uma caminhada fluvial (entre detritos de cidade e restos de paisagem):

Um velho cais roído
e uma fila de oitizeiros
há na curva mais lenta
do caminho pela Jaqueira,
onde (não mais está)
um menino bastante guenzo
de tarde olhava o rio
como se filme de cinema;
via-me, rio, passar
com meu variado cortejo
de coisas vivas, mortas,
coisas de lixo e de despejo;
viu o mesmo boi morto
que Manuel viu numa cheia,
viu ilhas navegando,
arrancadas das ribanceiras.[27]

A memória aflora em restos e também em movimentos que produzem restos. O menino João Cabral e o rio são um só. E Manuel Bandeira comparece nesses versos, homenageado, com a presença material do boi morto, tantas vezes já comentado na troca epistolar entre os dois amigos. A memória, aqui, pode ser concebida dentro do que Walter Benjamin vai chamar de “memória involuntária”, à la Proust. O rio e o “filme de cinema” parecem acenar inesperadamente com a presença, o volume e, quem sabe, até mesmo com o cheiro deste rio da infância do poeta.

O poema O rio, com certeza, orquestra um caminho singular de registro sonoro, mas não somente, pois recompõe para o leitor pedaços de memória de um tempo da história e da vida pernambucana. O poeta aparece e reaparece sob o signo da cidade, visitando cidades e passeando sua memória e imaginação poética. No poema, a terra pernambucana está revestida da dimensão social. As images/stories são densas e retratam a condição de vida subumana em paisagens de mangues, e que antecipam, de certa maneira, um outro poema que nasceria logo depois: Morte e vida severina.

Agora, acompanhemos este tema que se escreve desde os versos de O cão sem plumas, no qual o poeta empresta sua alma ao nordestino:

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
do mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.

[…]

Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).[28]

Aqui, o tempo “é quando”… sugerindo um tempo aberto e sem muita precisão. Na paisagem do nordeste brasileiro, a memória do poeta confere ao estatuto poético dessa obra um movimento bem próximo ao movimento da natureza e suas surpresas: o quando. João Cabral nos apresenta a Paisagem do Capibaribe e sua Fábula, e segue abrindo o Discurso poético dentro do poema, com images/stories surpreendentes e críticas. Vejamos um pouco mais:

IV
(Discurso do Capibaribe)

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.

[…]

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.[29]

A insistência dos versos é em falar “a coisa”. Este real que toca um impossível de ser nomeado. Mas, podemos lembrar que a coisa é e não é a coisa. Ela é mais que o que fala e menos que sua imagem falada. Pois, a palavra é “tensa” e vibra com o que lhe é exterior, mas também carrega algo de um limite. Há no “espesso” do rio Capibaribe uma imagem que edifica a obra, apresentando a arte em construção. Ou seja, conseguimos ler a obra, vislumbrando João Cabral firmando-se no trabalho poético, erguendo-se na resistência da pedra, na materialidade desse escrito: real e espesso.

As narrativas autobiográficas

Os caminhos, as cidades e as ruas das cidades, com seus objetos colocados à luz da escrita, dão o ritmo da visão de João Cabral, visão de sua experiência, que nos faz lembrar a experiência de Baudelaire. A arquitetura cabralina observa detalhes e guarda uma engenharia que se faz nos elementos arquitetônicos dos versos. Parece-nos que o poeta leu bem a lição de Baudelaire: as ruas como moradas do coletivo. As visões poéticas das cidades são muitas, e surgem no contexto em que se situa a poética cabralina. As séries de poemas que recompõem sua terra, com suas águas ricas e sujas “nos mangues do Beberibe”, e com seu povo sofrido, trabalham com a memória e restos de memória.

Se, desde o flâneur de Baudelaire, o homem mostrava-se preocupado em demarcar seu espaço livre, sem perder de vista sua privacidade, a presença do poeta-observador que escreve as coisas vistas, listando até os mínimos detalhes de um ambiente doméstico, realiza um trabalho de memória. É bem isso que faz a memória voluntária, ela elabora um trabalho de armazenamento, com a inteligência trabalhando a seu favor. Mas a memória involuntária, por sua vez, faz um flashback gigantesco,que traz de volta, pelo cheiro ou pelo sabor, “o tempo fora do tempo”, na expressão de Proust. Em “um velho cais roído” dos versos cabralinos no poema O rio, nós nos deparamos com uma espécie de espetáculo que os sentidos são chamados a captar, como se fossem quadros pintados com a escrita.

De fato, o poema O rio comporta uma narrativa autobiográfica. O “rio-menino” e/ou as “águas meninas” saem deixando a primeira infância e buscam caminhos do mar, caminhos novos e livres. O recurso da repetição utilizado nesses versos marca um ritmo que leva o leitor na viagem do poema, com as muitas cenas, por onde o rio passa como um filme, em ritmo monocórdio:[30]

Do Petribu
ao Tapacurá
As coisas não são muitas
que vou encontrando neste caminho
Tudo planta de cana
nos dois lados do caminho;
e mais plantas de cana
nos dois lados dos caminhos
por onde os rios descem
que vou encontrando neste caminho;
e outras plantas de cana
há nas ribanceiras dos outros rios
que estes encontraram
antes de se encontrarem comigo.
Tudo planta de cana
e assim até o infinito;
tudo planta de cana
para uma só boca de usina.[31]

É um poema ditado, no sentido da “estratégia somente possível graças à utilização da primeira pessoa”,[32] já que o rio (da escrita) e o poeta são um só: “via-me, rio, passar”, no verso escrito por João Cabral. Mas, podemos pensar também que o poema mesmo se dita:

Outros rios
Foram terras de engenho,
agora são terras de usina.
É o que contam os rios
que vou encontrando por aqui.
Rios bem diferentes
daqueles que já viajam comigo.
A estes também abraço
com abraço líquido e amigo.
Os primeiros porém
nenhuma palavra respondiam.
Debaixo do silêncio
eu não sei o que traziam.
Nenhum deles também
antecipar sequer parecia
o ancho mar do Recife
que os estava aguardando um dia.[33]

Os versos ímpares são feitos com a mesma medida em cada estrofe (seis sílabas), e os pares têm variações.[34] A invenção cabralina pretende criar um ritmo “assonante” e “inacabado”, um ritmo “ao contrário da ladainha”, conforme confessa o poeta no “Depoimento”.[35]

João Cabral, que chegou a confessar sua dificuldade em metrificar, exigia-se o difícil. José Castello comenta que, no poema O rio, essa dificuldade se deu. O poeta tentou metrificar, mas não conseguiu. O comentário, porém, é discutível, pois o poeta dá outras explicações ao fato, e coloca esse poema como tendo sido feito, propositalmente, com a forma métrica irregular. Ele escreve, então, uma espécie de verso-livre, que teria uma média de números de sílabas por verso: em torno de seis, em torno de sete sílabas.

Trafegando nesse espaço aberto, nesse espaço da obra em movimento, os poemas O cão sem plumas e O rio traçam também o estilo de um “espesso” e denso percurso poético. Os movimentos que fazem girar a linguagem por lugares (da infância ou não), por exemplo: “quando eu era menino a família tinha mania de viver mudando de casa”,[36] podem, inclusive, nos levar a muitas outras situações de vida, as mudanças diante das quais o poeta se viu sem escolha, pois lhe foram impostas também pelo trabalho na Embaixada do Brasil, no exterior. Sobre as viagens, podemos supor que, com certeza, favoreceram o imaginário do autor, pois o levaram a circular por outros rios, outras línguas e outras terras, em distintos países e culturas múltiplas (inclusive, com essa escrita em que passeia a métrica).

O caminho que convoca o imaginário do poeta é o mesmo que engendra algo do social com suas “verdades”, portanto, que engendra o simbólico em narrativas de costumes e geografias várias. O poeta considera O rio um poema fronteiriço à geografia, “uma espécie de carta geográfica em versos”,[37] já que, para escrevê-lo, ele teria trabalhado com o mapa do rio Capibaribe ao lado, dedicando-se ao que tanto gostava de estudar e ler: geografia.

Certamente, lendo Maurice Blanchot, quando este comenta a obra de Marcel Proust, observamos o movimento da escrita portando sinais do intemporal: “uma presença liberta da ordem do tempo”.[38] E podemos indagar sobre “as certezas”, essas que não se têm ao escrever, porque os poetas estão lançados ao desconhecido, ao tempo perdido! No caso de João Cabral, não fica difícil afirmar que, ao escrever esses poemas, ele teria conseguido experimentar algum fragmento desse tempo “perdido”, na duração não-linear dos acontecimentos de sua própria vida em Recife:

De São Lourenço
à Ponte de Prata
Vou pensando no mar
que daqui ainda estou vendo;
em toda aquela gente
numa terra tão viva morrendo.
Através deste mar
vou chegando a São Lourenço,
que de longe é como ilha
no horizonte de cana aparecendo;[39]

Os versos nos transportam “como um barco na corrente” e na navegação, aqui claramente associada ao escrever, e seguem em ondas sem se deterem, dando um testemunho do que desaparecia na cena descrita. É que, ao chegar ao Recife, o poeta precisa marcar detalhes do que carrega consigo na memória:

Ao entrar no Recife,
não pensem que entro só.
Entra comigo a gente
que comigo baixou
por essa velha estrada
que vem do interior;
entram comigo os rios
a quem o mar chamou,
entra comigo a gente
que com o mar sonhou,
e também retirantes
em quem só o suor não secou;[40]

além dos trabalhadores, que foram mastigados pelos dentes das usinas que os largaram à deriva, depois de tê-los “mastigado” à vontade. Vale insistir neste movimento, e inserir aqui alguns versos de “Porto dos cavalos”, de A escola das facas (1975-1980), nos quais os cheiros compõem a lembrança, que repete o que foi contado no poema O rio:

O Capibaribe repete
o que diz e contei no “Rio”,
e mais de uma vez repeti
em poemas de alguns outros livros.

Me diz de viés, não me diz:
sua voz é o perfume que apresenta:
como Combray regressa a Proust
quando convoca a “madalena”.[41]

João Cabral não só consegue aflorar no poema narrativo “a coisa-rio”[42] como a “lembrança da lembrança” na repetição reconhecida — “o tempo perdido e depois proustianamente reencontrado (le temps retrouvé)”.[43] O comentário que Benedito Nunes faz em seu estudo cabralino nos ajuda a destacar o que o verso traduz, pois as “madalenas proustianas” são hoje o próprio tempo reencontrado, literariamente falando. O que Proust deixou em seu testemunho de escrita consegue conferir aos versos de João Cabral um lugar de testemunho também, a partir do dito que o rio diz e não diz, pois “sua voz são os cheiros que lembram”; o rio Capibaribe é como um “cão que me segue sem temor”.[44]

Tanto nos poemas O cão sem plumas (1949-1950) e O rio (1953), que deslizam versos pelas águas do rio Capibaribe, como no auto de Natal pernambucano Morte e vida severina (1956), o poeta abriga seu itinerário na coluna vertebral do nordeste, ou seja, às margens desse mesmo rio. As geografias poéticas que os compõem pintam quadros que ao leitor podem contar parte da história do rio e do imigrante nordestino dessa região. Além de abrir um pouco da história do poeta — menino guenzo —, que gostava de assistir o rio passar como se fosse cena de cinema. Mas introduzem também a questão da morte na temática densa que irá percorrer a obra de João Cabral de Melo Neto, e que nos ajuda a pensar a escrita, enquanto experiência com a morte e o morrer, já que faz trabalhar em nós as razões de um viver faltoso nessa experiência com o escrever.

. . . . . . . . . .

[1] Relembramos que quase todos os livros anteriores do poeta foram impressos por ele mesmo e por amigos, em pequenas tiragens, com exceção de O rio, que foi editado depois de uma premiação, por ocasião do centenário da cidade de São Paulo, e dos Poemas reunidos (Rio de Janeiro, Orfeu, 1954). Cf. João Alexandre Barbosa, João Cabral de Melo Neto (São Paulo, Publifolha, 2001), p. 9.

[2] João Alexandre Barbosa, op. cit., p. 9.

[3] Morte e vida severina: da tradição popular à invenção poética”, em Paisagem tipográfica (Lisboa, Calouste Gulbenkian, 2000), p. 102.

[4] João Alexandre Barbosa, op. cit., p. 14.

[5] João Cabral de Melo Neto: O homem sem alma & Diário de tudo (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2006), p. 100.

[6] Idem, O cão sem plumas (Serial e antes,Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997), pp. 73-4.

[7] Ibidem, p. 83.

[8] Maria de Souza Tavares, Poesia e pensamento (Lisboa, Caminho, 2001), p. 277.

[9] O cão sem plumas (Serial e antes,Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997), p. 74.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem, p. 79.

[12] Ibidem, p. 85.

[13] Roberto Vecchi, “Recife como restos”, em Paisagem tipográfica, op. cit., p. 189.

[14] Ibidem, p. 188.

[15] Ibidem.

[16] Entrevista a Augusto Massi, Folha de S. Paulo (São Paulo, Caderno Letras, 30 mar. 1991), apud Felix de Athayde, Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998), p. 47.

[17] Ibidem.

[18] A expressão “poesia do menos”, cunhada por Antonio Carlos Secchin, em seu livro João Cabral de Melo Neto: a poesia do menos, traduz uma poética que se constrói com cortes, com o que há de menos, buscando sempre trabalhar sem os excessos da lírica.

[19] João Cabral de Melo Neto, “O pernambucano Manuel Bandeira”, em Museu de tudo (A educação pela pedra e depois,Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997), pp. 57-8.

[20] Sebastião Uchoa Leite, Crítica de ouvido (São Paulo, Cosac Naif, 2003), p. 41.

[21] Manuel Bandeira, “Boi morto”, Opus 10 (Estrela da vida inteira, 20. ed., Rio de Janeiro, 1993), p. 213.

[22] Ibidem.

[23] João Cabral de Melo Neto, “Alto do Trapuá”, em Paisagens com figuras (Serial e Antes, op. cit.), p. 135.

[24] Flora Süssekind, A voz e a série (Rio de Janeiro / Belo Horizonte, Sette Letras, ufmg, 1998), p. 286.

[25] João Cabral de Melo Neto, Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001), p. 60.

[26] Vale lembrar que Bandeira se nomeou “poeta menor” por não ser capaz de seguir o conselho de Paul Valéry que dizia que um grande poeta deve construir seu poema com a consciência. Cito Valéry, traduzindo-o: “ter composto uma obra medíocre com toda lucidez que uma obra-prima a lampejos, em estado de transe”. Manuel Bandeira, Itinerário de Pasárgada (Rio de janeiro, Editora do Autor, 1966), p. 30.

[27] João Cabral de Melo Neto, O rio (Serial e antes, op. cit.), p. 109.

[28] Idem, O cão sem plumas (Serial e antes,Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997), pp. 75-7.

[29] Ibidem, p. 83-4.

[30] Benedito Nunes percebeu no ritmo monocórdio sinais da vinculação com “o estilo oral dos cantadores, senão daquele romanceiro popular do Nordeste”. João Alexandre Barbosa, op. cit., p. 45.

[31] João Cabral de Melo Neto, O rio (Serial e antes, op. cit.), p. 100.

[32] João Alexandre Barbosa, op. cit, p. 45.

[33] João Cabral de Melo Neto, O rio (Serial e antes, op. cit.), pp. 98-9.

[34] “O poema O rio é escrito em versos de arte mayor,isto é, traz os versos ímpares fixos e os versos pares variáveis”. Cf. José Castello, op. cit., p. 119.

[35] Fábio Freixeiro, apud Maria de Souza Tavares, “João Cabral de Melo Neto: razão e ‘serventia das idéias fixas’”, em Paisagem tipográfica, op. cit., p. 271.

[36] José Castello, op. cit., p. 118.

[37] Ibidem.

[38] Maurice Blanchot, O livro por vir (Lisboa, Relógio d’água, 1984), p. 30.

[39] João Cabral de Melo Neto, O rio (Serial e antes, op. cit.), pp. 105-6.

[40] Ibidem.

[41] João Cabral de Melo Neto, “Porto dos Cavalos”, em Crime na Calle Relator (A educação pela pedra e depois), pp. 320-1.

[42] Expressão de Benedito Nunes, “João Cabral: filosofia e poesia”, em Paisagem tipográfica, op. cit., p. 44.

[43] Ibidem.

[44] João Cabral de Melo Neto, “Porto dos Cavalos”, em Crime na Calle Relator (A educação pela pedra e depois), p. 320.


 Sobre Solange Rebuzzi

Escritora e psicanalista. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Passou a infância em Manaus, e a adolescência em Ipanema. Estudou psicologia, filosofia e literatura. Escreve poesia e prosa. Traduziu Francis Ponge em Nioque antes da primavera durante um Posdoc na UFF, Lumme editor. Publicou o romance A bordo do Clementina e depois. E os diários escritos durante a pandemia: Diário de um tempo indeterminado e Caligrafias. Todos pela 7Letras entre muitos outros.