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Máfia e Irã perseguem Saviano e Rushdie

Roberto Saviano, jornalista e escritor italiano que completará 31 anos no próximo dia 22 de setembro, vive sob severa proteção policial por estar ameaçado de morte desde o lançamento do livro Gomorra – A história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana, em 2006.

Roberto Saviano

Natural de Nápoles, formado em filosofia na universidade local e jornalista por opção, Saviano é colaborador dos jornais L/Expresso e La Repubblica, tendo obtido sucesso retumbante com as cruentas descrições das atividades desenvolvidas pelas várias organizações criminosas no sul da Itália, que supõe serem responsáveis pela incrível movimentação financeira que representa não menos que duas vezes o Produto Interno Bruto nacional. O livro foi transformado em filme pelo cineasta Matteo Garrone, com o título Gomorra, em uma clara simbiose entre a Camorra e a cidade bíblica destruída pelo fogo enviado do céu.

O filme ganhou o Grande Prêmio do Festival de Cannes em 2008 e, no mesmo ano, o Città di Roma – Arcobaleno Latino, sendo que o livro que lhe inspirou já vendeu mais de 1 milhão de exemplares. No Brasil foi editado pela Bertrand, que, no ano passado, lançou também O contrário da morte – cenas da vida napolitana, classificado pela editora na categoria de crônicas, mesmo que ambas as narrativas do livro, que compõem um volume de 96 páginas, tenham recebido do autor inegável tratamento novelístico ao longo de quase todos os parágrafos.

As cenas da vida napolitana, aliás, muito bem conhecidas por Roberto Saviano desde a adolescência, aludem sem a menor cerimônia àquela parte da Itália notabilizada pela ubíqua atuação de vários grupos criminosos capitaneados por famiglias históricas agrupadas sob a denominação genérica de Camorra, a temida e violenta máfia siciliana.

O tom preciso das investigações do ousado repórter, e o registro fiel das atrocidades cometidas pelos gângsteres napolitanos a serviço dos atuais Corleones, foram interpretados como infrações gravíssimas aos códigos próprios da máfia e, por extensão, ensejaram a resolução juramentada pelos “honrados chefões” da corporação, levando-os a expedir a ordem de eliminação física do jornalista que, diga-se de passagem, não foi o primeiro e nem será o último a denunciar tanto as atividades criminosas quanto a inaceitável impunidade da maioria de seus operadores.

No caminho de Pirandello, Calvino, Moravia e Pavese

A repercussão do livro de estreia de Roberto Saviano foi imediata. Os círculos da intelectualidade e da literatura ficaram estarrecidos com as ameaças à vida do escritor, que se obrigou a ficar escondido por vários meses, até voltar a participar de eventos em defesa da liberdade de expressão e fazer palestras sobre Gomorra. Em novembro de 2008, a Academia Nobel promoveu, em Estocolmo, um evento de apoio e solidariedade a Saviano e Salman Rushdie, outro autor de renome mundial que durante vários anos viveu em completa reclusão por ter publicado Versos satânicos, um romance que desencadeou a fúria do Aiatolá Khomeini, na época a maior autoridade político-religiosa do islamismo iraniano.

No caso do escritor italiano, a profundidade das observações políticas e sociais sobre a ação da máfia encontrou também terreno fértil para o complemento de suas análises no recrudescimento das medidas tomadas pelo governo chefiado por Silvio Berlusconi, sobretudo no que diz respeito ao combate da imigração tida como irregular. Desde meados de 2009, para o governo italiano todo ingresso ou permanência ilegal em território nacional se converteu em delito, além de suscitar penas de prisão para os que dão guarida a imigrantes irregulares. Foram ampliados os prazos de detenção de estrangeiros à espera de expulsão, proibindo-se o envolvimento em qualquer gestão administrativa por parte de pessoas sem visto de residência. Saviano vê nessa atitude uma espécie de “retórica pública com acentos de xenofobia”.

Sob o governo Berlusconi, não por acaso um dos empresários mais ricos da Itália, o país passou a viver uma série de acontecimentos marcados por intensa esquizofrenia política, com a controvertida figura do primeiro-ministro protagonizando fatos bizarros em meio a orgias com garotas de programa, recrutadas a peso de ouro. Esse clima de licenciosidade, que lembra os antigos festivais das bacantes romanas, aliado a outros laivos de nacionalismo exacerbado, acabou reacendendo a fogueira do jacobinismo latente no âmago de uma parcela crescente da população.

Em meados de janeiro último, um povoado da Calábria (Rosarno) testemunhou a agressão a imigrantes africanos por um grupo de jovens, desencadeando a reação natural dos agredidos e, em seguida, a explosão de manifestações de racismo aberto, comandadas por grupos mafiosos, o que resultou mais de uma centena de pessoas feridas. O presidente da República, Giorgio Napolitano, uma das referências morais do país, chegou a afirmar que o pogrom de Rosarno congelou por vários dias quaisquer resquícios de ordem e legalidade. O editorial do jornal madrilenho El País, no dia 14 daquele mês, assinalava que a “Calábria havia recordado aos países vizinhos que a mistura de empresários sem escrúpulos, máfia, ausência de controle do Estado e xenofobia institucional dera lugar a um paiol de pólvora que poderá ter consequências trágicas para a convivência de uns com os outros”.

O ponto que mais chamou a atenção foi o silêncio cúmplice do governo, que segundo o diário espanhol parecia ser uma atitude clara de legitimação da xenofobia. Berlusconi fechou-se em copas e nenhum setor do Executivo se dignou a dar uma resposta contundente ao racismo. El País perguntou: “Acaso se podia esperar outra coisa de um governo que entregou o complexo problema da imigração às mãos irresponsáveis da Liga do Norte, cujos dirigentes fundamentam seu sucesso na intolerância e no temor ao diferente, e promovem iniciativas como as patrulhas cidadãs?”. Nas opiniões que divergem seriamente de algumas posições do governo italiano, não poderia deixar de ser ouvida a do escritor Roberto Saviano, engajado na luta pela liberdade de expressão, cuja escrita passou a significar uma atitude política eminente, justificada pela ampla aceitação de seu livro sobre a máfia por milhares de leitores italianos e estrangeiros.

Ele tem repetido que hoje em dia, em seu país, se um cidadão decidir expressar uma crítica ao governo ou à pessoa do primeiro-ministro, sabe que deverá enfrentar não uma opinião antagônica, mas toda uma campanha que visa a estabelecer seu descrédito total. O preço para prosseguir desempenhando uma função que consiste em fazer perguntas e emitir opiniões será exigido da própria pele de quem o faz. As represálias são imediatas e, por isso, na Itália, “liberdade de imprensa significa acima de tudo liberdade de que não acabem com a sua vida”.

Saviano sublinha que tal situação ocorre em um país que, apesar de ver-se profundamente afetado por ela, jamais fala da crise econômica. Apontando a fragilidade institucional da Itália, em comparação com outras democracias ocidentais, Saviano lembrou que, em 2003, o senador John Kerry, então candidato à Casa Branca, apresentou ao Congresso um documento intitulado The New War, no qual se revelava que apenas três ramos da máfia movimentavam anualmente cerca de 110 bilhões de dólares, fazendo da Itália o segundo país do mundo com a maior quantidade de pessoas sob proteção legal (jornalistas na maioria), perdendo apenas para a Colômbia.

A estupefação do escritor, e de muitos cidadãos de bem, ultrapassou todos os limites ao se constatar que a Itália do pós-guerra foi capaz de ombrear-se com as nações livres e democráticas, de enfrentar e vencer o terrorismo político interno, e de converter-se em uma das principais potências econômicas do mundo. Contudo, advertiu Saviano, “se é certo que a Itália nunca se viu privada de zonas de sombra e nem livre da corrupção, se é verdade que isso contribuiu para tornar o país mais permeável ao crescimento das máfias e à ação de outras forças subterrâneas, também é certo que o choque de poderes e facções sempre conservou um mínimo de respeito às regras que até agora salvaguardaram a cidadania”. Valores que hoje parecem reduzidos à expressão de um figo podre.

 

As “missões de paz”

Para falar do Roberto Saviano escritor, atendo-se ao estritamente necessário, bastaria afirmar que ele dignifica o caminho pelo qual já passaram antes Pirandello, Italo Calvino, Alberto Moravia e Cesare Pavese, exemplos marcantes da literatura italiana em todos os tempos. A afirmação se comprova com suficiência após a leitura do livro O contrário da morte, no qual o autor nos oferece com precisão cirúrgica, em dois relatos breves (o primeiro empresta o título ao volume, seguido de O anel), algumas cenas recorrentes de sua cidade natal, Nápoles. Os leitores podem se sentir perfeitamente à vontade para escolher a classificação do livro – conto ou crônica? –, mas em nenhuma das opões estará diminuída a fina qualidade da carpintaria verbal de um narrador seguro de seu ofício.

Duas citações abrem o livro:

Você chora só que ninguém vê
E grita só que ninguém ouve,
Mas não é água o sangue que corre nas veias,
Carmela, Carmè
E o amor é o contrário da morte…  figurando a Itlhesentou ao Congresso um documento intitulado The New War

Sergio Bruni

Se necessário o sangue
a qualquer custo
Dê o seu, se é bom samaritano.

Boris Vian

Na primeira crônica (ou conto), o condutor do enredo entremeia às suas ruminações pessoais a própria voz de Maria, apresentada como uma menina viúva, a noivinha pura que tropeçou no véu e caiu antes de chegar ao altar. Ela chora a morte de seu amado Enzo, jovem de vinte anos que havia partido para o Afeganistão, alistado em uma missão de paz. Nas relações de amizade de Maria e, de resto, em toda a cidade, existem veteranos de todas as guerras. “As últimas guerras, que não são mais chamadas de batalhas ou conflitos, mas de missões de paz”, mas mesmo assim são chanceladas apenas de “última guerra”, como as do Iraque, da Bósnia e, agora, a do Afeganistão, uma terra distante somente evocada, antes de tudo, pelo afegão, “o melhor haxixe do mundo, que circulava na forma de lingotes e lotava as garagens, tendo sido por muitos anos o verdadeiro chamariz que atraía todos às praças em que se fazia o tráfico”.

Saviano pôs o dedo em uma ferida não cicatrizada, que na memória de muitos jamais se fechará. São eles os tantos veteranos, ainda muito jovens, ansiosos para partir de novo para a guerra, pois a guerra é para eles sinônimo de trabalho e salário. Os que voltaram investiram suas economias em um bar, ou melhor, “abriram um restaurante em sociedade com seus companheiros de regimento”. Se o negócio não prosperou, o jeito é embarcar outra vez para algum front, se é que ainda têm idade para o serviço militar e se mantêm os contatos certos para poder partir. Afinal, para a maioria daqueles jovens sem futuro, “o quartel e o uniforme eram preferíveis ao canteiro de obras ou à fábrica, ao caminhão nas estradas da Europa ou aos longos dias atrás do balcão de um bar”.

Enzo alistou-se na missão de paz por dinheiro: queria construir sua casa para viver com Maria. Voltou morto, o corpo incinerado em um atentado desfechado pelos talebans.

O anel conta a história de outros jovens sulistas, provavelmente veteranos de alguma guerra, que na falta de melhor sorte são compelidos a buscar sua oportunidade de trabalho em uma organização criminosa. Aliás, como bem disse Saviano, “o sul da Itália tem o primado dos jovens mortos por causas violentas”. É sempre assim. As facções rivais se debicam por qualquer pelo em ovo e os punidos com a violência inaudita são os combatentes precocemente distinguidos com o atestado de óbito. Como Francesco, 21 anos, ligado ao clã dos Tavoletta, soldado do tráfico. Em um domingo à noite, na pracinha em que estava com os amigos Vincenzo e Giuseppe, foi emboscado pelos homens dos Bidognetti, o clã inimigo, que sobre ele descarregaram as pistolas Smith & Wesson, sem acertá-lo. Sobrou para os amigos, eliminados a sangue-frio na casa que abrira a porta para lhes dar abrigo, por pura vingança da fuga de Francesco.

Os corpos caíram debaixo da mesa e o casal de velhos se preparava para dizer aos carabinieri que haviam encontrado aquela carnificina pronta e que não tinham visto nada. Não é de estranhar, conclui Saviano: “É como se aquela fosse a enésima condenação recebida por terem nascido em uma cidade de culpados”.


Tradução de Ana Maria Chiarini
Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2009
96 p.


 Sobre Ivan Schmidt

Jornalista e escritor; autor da biografia “Edgar Allan Poe: Nunca estive realmente louco”.