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Notas sobre a literatura infantil

No ensaio “A percepção do outro e o diálogo”, publicado em A prosa do mundo, de 1969, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty afirmou que “jamais se compreenderá que um outro apareça diante de nós, o que está diante de nós é objeto” [1]. Isso porque, segundo a sua teoria, só há lugar para outro em “meu campo”, portanto, é preciso que me desdobre e me descentre para viver a experiência do outro, a qual “é sempre a de uma réplica de mim, de uma réplica minha” [2]. Como réplica, o outro está sempre à margem, já que “é por trás de nós que ele existe, assim como as coisas adquirem sua independência absoluta à margem do nosso campo visual” [3].

É no diálogo, na fala, entretanto, que se renova a mediação entre o mesmo e o outro. Na opinião de Merleau-Ponty, “minha fala coincide lateralmente com a de um outro, ouço-me nele e ele fala em mim, aqui é a mesma coisa to speak to e to be spoken to” [4]. Para o filósofo francês, “não sou apenas ativo quando falo, mas precedo a minha fala no ouvinte; não sou apenas passivo quando escuto, mas falo de acordo com […] o que o outro diz” [5].

Desse modo, na fala, conclui Merleau-Ponty, “se realiza a impossível concordância das duas totalidades rivais, não que ela nos faça entrar em nós mesmos e reencontrar algum espírito único do qual participaríamos, mas porque ela nos concerne, nos atinge de viés, nos seduz, nos arrebata, nos transforma no outro, e ele em nós” [6]. Talvez, poderia supor, resida aí o medo que temos do canto das sereias, de sua fala que põe fim aos “limites do meu e do não meu, e faz cessar a alternância do que tem sentido para mim e do que é não sentido para mim, de mim como sujeito e do outro como objeto” [7].

Mais temível que a fala é, porém, o silêncio. No conto “O silêncio das sereias”, Kafka afirma, a esse respeito, que as sereias “têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto, mas do seu silêncio certamente não” [8]. De fato, no silêncio não se quer seduzir, deseja-se apenas capturar “o mais longamente possível o brilho do grande par de olhos de Ulisses” [9], segundo Kafka. Além disso, o silêncio nos condena ao vazio, que só termina com a fala. Conforme Adorno e Horkheimer, “para escapar ao vazio lancinante é necessário uma resistência cuja coluna vertebral é a linguagem” [10].

A fala ou a espontaneidade é, assim, o poder que melhor designa “esse gesto ambíguo que produz o universal com o singular, e o sentido com nossa vida” [11]. Muda, a sereia do conto de Hans Christian Andersen não seduz, captura, se bem que por algum tempo apenas, “o brilho do grande par de olhos” do príncipe e se esvai, “desfazendo-se aos poucos em espuma” do mar.

No tocante ao outro que a fala pretende alcançar, tratarei aqui especificamente da criança, pensada enquanto outro do adulto. Poderia até supor que Merleau-Ponty, com a sua tese, tenha lançado um olhar especial sobre a criança, já que, por alguns anos, de 1949 a 1953, ocupou a cátedra de Psicologia Infantil na Sorbonne.

Efetivamente, um dos primeiros contatos que temos com a criança (esse outro) se dá pela fala, sendo que, segundo o filósofo e crítico literário russo Mikhail Bakhtin, “as influências extratextuais têm uma importância muito especial nas primeiras fases do desenvolvimento do homem. Estas influências estão revestidas de palavras (ou de outros signos) e estas palavras pertencem a outras pessoas […]. Depois, estas ‘palavras alheias’ se reelaboram dialogicamente em ‘palavras próprias alheias’ com a ajuda de outras ‘palavras alheias’ (anteriormente ouvidas) e, em seguida, já em palavras próprias (com a perda das aspas, para falar metaforicamente) que já possuem caráter criativo”. Alcançada a consciência criativa, um novo diálogo se inicia (“agora com vozes externas novas”, como afirma Bakhtin) [12]. Entretanto, essa “consciência do homem desperta”, de acordo com o filósofo e crítico literário russo, “envolvida na consciência alheia”: “eu me conheço inicialmente através dos outros: deles recebo palavras, formas, tonalidade, para formar uma noção inicial de mim mesmo” [13].

Ocorre, entretanto, que não temos mais tempo para o diálogo (nem com a criança, nem com os outros de modo geral), razão pela qual estamos condenando o outro ao desaparecimento. No ensaio “O continente negro da infância”, o filósofo francês Jean Baudrillard afirma que, “como tantos outros domínios, a infância e a adolescência convertem-se hoje em espaço destinado por seu abandono à deriva marginal e à delinquência” [14]. Isso porque, ainda segundo Baudrillard, “o ritual atual, do imediatismo, da aceleração, do tempo real, vai exatamente de encontro à concepção, à gestação, ao tempo de procriação e de criação, da longa duração à qual corresponde a infância humana” [15]. Esse imediatismo, que não reserva tempo ao diálogo, condena, “logicamente, a criança a desaparecer” [16].

Baudrillard faz, entretanto, uma ressalva e pede “calma”, pois, segundo ele, “crianças sempre haverá, mas como objeto de curiosidade ou de perversão sexual, ou de compaixão, ou de manipulação e de experimentação pedagógica […]”.

O fato é que, de acordo com a sua teoria, antes de a criança desaparecer, o que ocorrerá é que ela tenderá a se tornar um Alien, “um monstro saído da ruptura da cadeia simbólica das gerações”, em razão das experimentações genéticas, ou um “produto errático, produto de outra época, flutuando a maior parte do tempo entre pais que não sabem o que fazer dela” [17].

Na literatura, as crianças já estão sendo imaginadas como Aliens, este absolutamente outro de que fala Baudrillard, cuja proximidade é impossível. Em 1997, Tim Burton (conhecido por ter dirigido filmes como Edward mãos de tesoura, A noiva cadáver, Batman e, mais recentemente, Alice no País das Maravilhas) publicou o livro infanto-juvenil O triste fim do Menino Ostra e outras histórias (lançado em 2007 no Brasil pela Editora Girafinha, São Paulo), cuja narrativa orbita em torno de histórias de crianças que não acham o seu lugar no mundo, ou de adultos que não sabem o que fazer com elas, como lemos no conto que dá título ao livro: “Com o doutor a mãe foi se queixar:/ ‘Essa criança não é minha,/ Pois cheira a oceano e alga marinha’./ ‘Minha senhora, isso não é nada!/ Uma menina de bico e três orelhas/ Eu tratei na semana passada./ Por seu filho ser meio ostra,/ Não adianta me culpar./ Quem sabe fosse o caso de comprar/ Uma casinha à beira-mar …’”.

Não é à toa que Francisco, o pobre Menino Ostra, tenha um “triste fim” (ou uma “morte melancólica’, como se lê no original): “[ao pai do menino] O médico fez uma conjectura:/ ‘A fonte não é de todo segura/ Mas seu distúrbio pode ter cura./ Está quase provado: comer ostras/ Propicia um desempenho sexual extra./ Talvez, devorar seu filho/ Ajude a durar por horas e horas’”. O pai leva às últimas consequências o conselho do médico, devorando a própria cria.

Mas a fala não só nos aproxima do outro/da criança como também nos introduz à literatura. Se hoje vivemos uma crise da leitura, como afirma o ensaísta argentino Daniel Link − “a crise da leitura, que se costuma dar por certa, mais cedo ou mais tarde afeta a escrita” [18] −, é porque nos faltam narradores. Ademais disso, como devolver a literatura às crianças (aos leitores de modo geral) em um mundo que vive uma espécie de “canibalismo atrativo”, no qual tudo é visto simultaneamente, onde não existe espaço para a experiência, onde, como diz Jean Baudrillard, “não é mais o contágio do espetáculo que altera a realidade, mas o contágio do virtual que apaga o espetáculo”? [19]. Walter Benjamin afirmava, já no início do século passado, que “se a arte de narrar hoje é rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por seu declínio” [20].

No entanto, se “a literatura é um ato de fé” (segundo o ensaísta francês Régis Debray) [21], e se “a fé é pelo ouvir” (Câmara Cascudo, citando São Paulo [22]), a literatura oral tem seu lugar assegurado, ao lado da literatura escrita, como “edifício” da cultura e da memória de um povo. Segundo Régis Debray, o livro é o “objeto pesado”, que “comanda uma pesada afetividade. O peso esmagador, casto, quase mortuário, da cultura encarna-se nesses poeirentos poderosos, paralelepípedos abruptos e ameaçadores”, que precedem a leitura [23]. A literatura oral não se materializa, mas, bem ouvida, retorna como memória viva de uma cultura.

Quanto à biblioteca, os narradores de histórias anunciam “menos dogma e mais ludismo, menos cânone e mais festejo” [24] (como afirmou Régis Debray ao se referir, em outro contexto, aos livros eletrônicos, esses ainda distantes da maioria dos brasileiros). Os narradores, sem poder de autoridade, contam histórias, suas, mas que ultrapassam as fronteiras da autoria, uma vez que todos podem manipulá-las. É a literatura ao alcance de todos aqueles que as ouvem como “leitores” e as recontam como “autores”.

Assim o fez, por exemplo, o escritor e ensaísta argentino, naturalizado canadense, Alberto Manguel, que, em uma antologia de contos de horror organizada por ele, descreve de que forma narrava a seus filhos, quando pequenos, um dos clássicos do gênero, o conto “A mão do macaco”, do escritor inglês William W. Jacobs (1863-1943), uma história não necessariamente “infantil”, porém a figura do narrador era capaz de fazê-la acessível para leitores de qualquer idade. Manguel afirma que sempre contava essa história à noite e que, cada vez que a narrava, introduzia nela uma modificação. Acrescenta que a sua versão era “ainda mais terrível, pois enquanto contava a história, […] emitia sons assustadores e andava de um lado para o outro, fazendo gestos e caretas aterradores” [25].

Nesse aspecto, a narração nos remete à leitura performática, aquela na qual a “compreensão” é fundamentalmente dialógica, no sentido de que, segundo Paul Zumthor, “meu corpo reage à materialidade do objeto, minha voz se mistura, virtualmente, à sua” [26].

Zumthor lembra que toda a literatura é fundamentalmente teatro [27]. No entanto, “habituados como somos, nos estudos literários, a só tratar do escrito, somos levados a retirar, da forma global da obra performatizada, o texto e nos concentrar sobre ele” [28]. Zumthor afirmava o seguinte: “de uma parte, amo os textos; de outra, a ‘literatura’, termo abstrato, tanto faz” [29].

É na arte de narrar, em suma, que a voz ganha papel de destaque, a mesma voz que, de acordo com Giorgio Agamben, expressa uma negatividade (a memória da morte do animal), mas que conserva e recorda o vivente como morto, sendo ela, enquanto linguagem humana, a tumba das nossas recordações e a herança que deixamos [30].

Mas, obviamente, para retomar Merleau-Ponty, “tampouco nas artes da fala a existência física dos sons, o traçado das letras no papel ou mesmo a presença de tais palavras segundo o sentido que lhes dá o dicionário, de tais frases feitas, é suficiente para produzir o sentido: a operação tem seu lado interior e toda a sequência das palavras não é senão seu sulco, não indica senão seus pontos de passagens […]. Ao entrar num livro, sinto que todos os termos mudaram, sem que eu possa dizer em quê” [31].

O certo é que não só “o sentido do livro pertence à linguagem”, como todo o sentido da literatura, por isso, “transmitida a obra pela voz ou pela escrita, produzem-se, entre ela e seu público, tantos encontros diferentes quantos diferentes ouvintes e leitores. A única dissimetria entre esses dois modos de comunicação se deve ao fato de que a oralidade permite a recepção coletiva” [32], afirma Paul Zumthor.

Dentre os diferentes leitores ou ouvintes de literatura, não podemos nos esquecer da criança leitora que possui capacidade de interpretação tanto quanto o adulto, embora se utilize de parâmetros diferentes de leitura. Walter Benjamin já afirmava que as crianças não são muito diferentes de nós mesmos. Aliás, lembra Baudrillard, “no que diz respeito ao tempo real, [a criança] está definitivamente adiantada em relação ao adulto, que só pode parecer-lhe retardado, assim como, no terreno dos valores morais, só pode parecer-lhe um fóssil” [33].

Por tudo, concluo estas reflexões reiterando que devemos ouvir as crianças, tanto quanto narrar/falar para elas.


Notas

[1] MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, p. 169.
[2] Idem , ibidem.
[3] Idem, ibidem, p. 172.
[4] Idem, ibidem, p. 176.
[5] Idem, ibidem, p. 178.
[6] Idem, ibidem, p. 180.
[7] Idem, ibidem.
[8] KAFKA, Franz. Narrativas do espólio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 104.
[9] Idem, ibidem, p. 105.
[10] HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. Dialética do esquecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
[11] MERLEAU-PONTY, Maurice, op. cit., p. 180.
[12] BARROS, Diana Luz Pessoa de & FIORIN, José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 2003, p. 38.
[13] Idem, ibidem, p. 39.
[14] BAUDRILLARD, Jean. Tela total: mito-ironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre: Meridional, 2002, p. 51.
[15] Idem, ibidem, p. 53.
[16] Idem, ibidem.
[17] Idem, ibidem, pp. 54, 55.
[18] LINK, Daniel. Como se lê e outras intervenções críticas. Chapecó: Argos, 2002, p. 131.
[19] BAUDRILLARD, Jean, op. cit., p. 107.
[20] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 203.
[21] DEBRAY, Régis. Acreditar, ver, fazer. Bauru: EDUSC, 2003, p. 55.
[22] CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984, p. 23.
[23] DEBRAY, Régis, op. cit., p. 53.
[24] Idem, ibidem, p. 59.
[25] MANGUEL, Alberto (org.). Contos de horror do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 14.
[26] ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Educ, 2000, p. 74.
[27] Idem, ibidem, p. 22.
[28] Idem, ibidem, p. 35.
[29] Idem, ibidem, p. 74.
[30] AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Belo Horizonte: UFMG, 2006, pp. 66, 67.
[31] MERLEAU-PONTY, Maurice, op. cit., p. 166.
[32] ZUMTHOR, Paul, op. cit., p. 65.
[33] BAUDRILLARD, Jean, op. cit., p. 53.


 Sobre Dirce Waltrick do Amarante

Professora do curso de artes cênicas da UFSC. Coorganizou e cotraduziu, com Sérgio Medeiros, De santos e sábios, uma antologia de textos estéticos e políticos de James Joyce (Iluminuras, 2012), e Cartas a Nora. Autora de As antenas do caracol: notas sobre literatura infanto juvenil e Pequena biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professores. É autora de Para ler ‘Finnegans wake’ de James Joyce (Iluminuras).