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O músico Gilberto Mendes

Uma apreciação da gênese composicional de Gilberto Mendes

A produção composicional de Gilberto Mendes compreende três grandes períodos que denominamos fases de formação, de experimentação e de transformação. Neste trabalho vamos tratar apenas da fase de formação, pois que esta representa a gênese composicional de Gilberto Mendes. Nesse primeiro período de sua obra, revela influência de Schumann, Debussy e Prokofieff, modelos que marcaram a produção para piano do compositor. Entretanto, é importante ressaltar que, mesmo alimentado por esses autores, Gilberto Mendes chegou a resultados pessoais, conseguindo extrair novos acordes e novas relações sintáticas de uma harmonia tradicional já desgastada. Combinou a harmonia debussysta com o modalismo e os ritmos do jazz negro e, se não bastasse, algo do piano sofisticado de Duke Ellington também é aí vivenciado.

Nessa fase inicial Gilberto Mendes esteve também preocupado, embora por um momento, com referências nacionalistas (particularmente as rítmicas), como podemos observar nas duas obras aqui exemplificadas. Entretanto, como afirma o compositor, ele nunca teve “formação de ouvido nacionalista”. E é assim que, mesmo escrevendo essas obras de ambientação nacionalista, Gilberto Mendes mantém um caráter cosmopolita, também ao gosto da época. O traço nacionalista que se corporifica a partir das obras Vacariana (Variações sobre um tema folclórico do Sul) e Fuga Dupla, esta última já refletindo uma tendência ao experimentalismo que dominará a década de 1960 (particularmente os anos de 1958 e 1959), momento em que Gilberto Mendes passa a ter contato com o maestro Olivier Toni, um dos grandes incentivadores do Movimento Música Nova, estabelece desse modo um arco estético-composicional que, indo das influências rotineiras, vai posteriormente desaguar na força de uma contemporaneidade singular.

As duas obras a que fazemos referência foram “integralizadas” a nosso pedido pelo compositor, historicamente situadas, analisadas, e posteriormente apresentadas em recitais públicos:

Vacariana (1953) 6’ 47”
MIS/Santos (Museu da Imagem e do Som), outubro de 1995

Fuga Dupla (1959) 4’ 00
XXXV Festival Música Nova de Santos, 26 de agosto de 1999.

Uma apreciação da gênese composicional de Gilberto Mendes

Gilberto Mendes (1922) iniciou seus estudos musicais na década de 1940, aos 18 anos, no Conservatório Musical de Santos, onde estudou Teoria e Harmonia com Savino de Benedictis e piano com Antonieta Rudge. Entre os anos de 1954 e 1959 passou a estudar composição com Olivier Toni e Cláudio Santoro. Com este último, segundo o próprio Gilberto Mendes, teve cerca de seis importantes aulas que abriram os seus horizontes no sentido de uma melhor compreensão do ato de compor.

Gilberto Mendes é um dos signatários do “Manifesto Música Nova” (Santos, 1997, p. 14), juntamente com os músicos Willy Correia de Oliveira, Rogério Duprat, Damiano Cozzella e outros, manifesto que foi publicado pela revista Invenção (São Paulo, 1963), porta-voz da poesia concreta brasileira criada pelos poetas Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari. A despeito de sua origem “tradicionalíssima”, da qual são testemunhas as obras aqui apresentadas (e mesmo graças a elas), ele se tornaria um dos pioneiros do vanguardismo e da renovação da linguagem musical brasileira, criando obras experimentais, concretas, de mixed media e teatro musical, o que o tornaria conhecido no Brasil e no exterior.

Suas obras na fase de formação, na qual nos deteremos, são caracterizadas por fórmulas de certo modo galvanizadas, na medida em que, sem qualquer tipo de contribuição (harmônica, técnica e estética), retrocedem no tempo. Essa produção é recortada dentro dos mesmos princípios que asseguram a legitimidade do sistema que responde por sua identificação, o sistema tonal, com sua dialética tensão/distensão, consonância/dissonância, funções primárias e secundárias, escala de referência e polarizações.

Entretanto, a despeito de um passado redivivo e mergulhado no sistema tonal, percebemos nessas obras o uso de “liberdades” que enfatizam sua individualidade e criatividade. Essa nova postura seria em grande parte alimentada pela influência da música de rádio, da música de cinema e da música norte-americana; do jazz, branco ou negro, de Duke Ellington e Benny Goodman, e dos musicais da Broadway – Gershwin, Cole Porter e Irving Berlin.

Como já mencionado, em fins da década de 1950 Gilberto Mendes se lança a referências nacionalistas. Entretanto, jamais se valerá da temática folclórica como tantos o fizeram, mostrando-se capaz de sustar, com suas experimentações e originalidades, o ambiente de provincianismo, bairrismo e regionalismo que então vigorava, atendo-se apenas ao uso de constantes rítmicas e esquemas modais folclóricos.

Como ele mesmo afirma:

Não tenho formação de ouvido nacionalista. O que sempre gostei foi mesmo de Chopin, Beethoven, depois Schumann, Stravinski, Bartók e Debussy. Não ouvi folclore nem ciranda, pois em Santos não tinha folclore. (Caderno de Música, jan.-fev. 1981)

É analisando seu perfil composicional que Aylton Escobar diz:

“Gilberto tem reiterado que é natural de Santos, cidade portuária que recebe muitos visitantes e que é cheia de estrangeiros. Uma cidade com características de internacionalismo. Assim o nacionalismo de Gilberto Mendes foi uma ‘incógnita’, algo imperceptível e difícil de vivenciar, segundo os termos que ele coletou do contato com outros profissionais.
Nacionalismo para Gilberto Mendes era o nacional que ele ouvia no rádio, como por exemplo Luiz Gonzaga. Era isso que ele considerava manifestação musical brasileira autêntica, ou que tivesse uma frequência de brasilidade na sua compreensão.” (Depoimento ao autor.)

Quando Gilberto Mendes diz “nunca vivi o folclore, porque na minha terra esse folclore não existe…” (Caderno de Música, jan.-fev. 1981), é claro que isso é um reflexo de sua vida na cidade de Santos, garoto de praia plenamente integrado na vida e no perímetro urbano de sua cidade, satisfeito com o que vivia para entender que manifestações folclóricas estavam ali, muito próximas, à sua disposição.

O que acontece com a música de Gilberto Mendes na intenção da nacionalidade é que, ao mesmo tempo em que ele sente uma necessidade de ordem filosófica, de um encaminhamento propício ao desenvolvimento do gosto popular, ele também converge unindo-se a poetas que estão desenvolvendo o internacionalismo e questões de poesia progressiva, que a música vai trabalhar. Não se pode esquecer também da presença do rádio que, junto com o cinema, muito o influenciou.

“Quando Gilberto Mendes escuta o que ele chama de ‘falso nacionalismo’, construído por artistas estrangeiros saídos da Europa e desembarcados nos Estados Unidos, onde farão também ‘falsa’ música havaiana, ‘falsa’ música dos Mares do Sul (Eisler, que ele tanto preza, entre eles), Gilberto entende que a comunicação musical se processa através de uma beleza e de uma internacionalidade testadas pelo homem urbano, e isso tem a ver com ele.” (Aylton Escobar, depoimento ao autor.)

Sua produção nessa fase inicial, origem de todo o seu processo composicional, é marcada por acentos rítmicos, planos harmônicos, estruturas melódicas com certa intenção de brasilidade. Ao mesmo tempo concluímos, de nosso trabalho comparativo, que já se revela aí o seu “espírito integracionista” pois que, ao lado de sua visão particular da tradição clássico-romântica, perfila-se a “leitura” que o compositor faz de Schoenberg, além de sua obra vir temperada com uma pitada de Bartók e Prokofieff, resultando, ainda assim, em dado momento, em algo fortemente brasileiro (pelo menos em determinado momento).

Cabe-nos aqui acrescentar, ao lado de suas composições pianísticas já conhecidas da fase de formação, as peças Vacariana (Variações sobre um tema folclórico do Sul, extraído de pesquisa realizada por Mário de Andrade) e Fuga Dupla. Na época em que foi deixada de lado, a Fuga Dupla havia sido considerada sem valor por Gilberto Mendes, que, rompendo com o tradicional, voltara-se então à experimentação.

Quanto a Vacariana (Variações sobre um tema folclórico do Sul), chamou-nos a atenção o fato de Gilberto Mendes ter optado por um tema do Rio Grande do Sul, ao contrário da maioria dos compositores brasileiros que deram preferência às tradicionais síncopas de origem africana. É assim que mais uma vez mostra seu amor pela temática latino-americana mais espanhola, cujos ritmos (guaranias e zambas) algumas vezes utiliza em sua música.

Este é um estudo de composição, quase como um papel de seda sobre os originais das 32 Variações em Dó menor de Beethoven, e uma referência ao tema inicial do Prelúdio op. 12 n.º 7 de Prokofieff (comp. 1 a 3), como lembra o próprio compositor.

Gilberto Mendes faz uma “cópia”, já que se baseia exatamente na ideia sequencial das referidas obras. Torna-se evidente, entretanto, que, embora se trate de uma “cópia” na precisão do termo, o compositor as vê com sua sensibilidade única, singular, produzindo assim um modelo de extraordinária clareza e beleza.

Este procedimento pode ser exemplificado nas Variações 9, 10 e 11 da Vacariana e as três primeiras das 32 Variações de Beethoven, como abaixo exemplificado:

Outras referências das 32 Variações poderiam ser mencionadas, sendo indisfarçável o apoio sobre o original tomado como modelo, e isso vem marcando a música de Gilberto Mendes quando ele faz citações. Quando se sente livre para homenagear, ele extravasa toda a sua poética.

O maestro Roberto Martins assim se refere a esse aspecto do caráter composicional do mestre:

“Acho que é um verdadeiro antropófago, pois ele nos devolve o produto dessa assimilação já com suas características de indivíduo, ou seja, dele como artista, como sensibilidade.” (Depoimento ao autor.)

Estes aspectos de sua obra podem ser resumidos por uma frase atribuída a Duke Ellington, quando afirma que sua música é a transformação de imagens e lembranças em sons.

Estas primeiras obras de Gilberto Mendes, fruto do seu autodidatismo especulativo, refletem-se desse modo em processos formais e acadêmicos. Mas, ainda assim, impregnadas de toda a sua espontaneidade no que costuma dizer:

“não tenho temperamento discursivo, as idéias vão-se formando e, à medida que explodem em minha fantasia, minha música vai tomando forma.” (Mendes, 1994, p. 70)

E é desse modo que Gilberto Mendes reverencia esses seus modelos, fazendo-o de modo particular, integrando em sua linguagem composicional todo o material e meios de expressão à sua disposição, passando até mesmo pelos timbres jazzísticos dos musicais norte-americanos dos anos 1930 e 1940, por músicos como Friedrich Hollaender, David Raksin ou nomes como Count Basie, Earl Hinnes, fazendo-o de modo abusivamente criativo em nome de sua liberdade inventiva, de suas próprias fantasias e de seu autodidatismo.

A Fuga Dupla tem uma estrutura abstrata, já no estilo de suas últimas Peças para Piano (14 15 e 16), que encerram o seu período de formação. É mais uma obra de estudo da forma, que permaneceu inacabada até 1998, na qual o compositor mantém toda a sua estrutura inicial repetindo os dois compassos finais da peça original (compassos 90 e 91). Foi esta partitura que tivemos o prazer de “estrear” no XXXV Festival Música Nova, em agosto de 1999.

Estas obras, origem do universo composicional de Gilberto Mendes, preparam o compositor para novas esferas, altamente criativas, seja em razão dos questionamentos que suscitam, seja em razão do domínio técnico ou a necessidade de construção de um novo, que cause “estranhamento”, apresentando também, por outro lado, material para desenvolvimentos futuros.

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Referências bibliográficas:

ABREU, Maria e GUEDES, Zuleika Rosa. O piano na música brasileira. Porto Alegre: Movimento, 1992.
BÉHAGUE, Gérard. Music in Latinoamerica: an Introduction. New Jersey, EUA: Prentice-Hall, 1979.
BUCKINX, Boudewijn. O pequeno pomo – ou a história da música do pós-modernismo. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.
MENDES, Gilberto. Uma odisseia musical: dos Mares do Sul à elegância pop/art déco. São Paulo: Edusp, 1964.
NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. São Paulo: Ricordi, 1977.
SAID, E. W. Elaborações musicais. Trad. Hamilton dos Santos. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
SANTOS, Antonio E. O antropofagismo na obra pianística de Gilberto Mendes. São Paulo: Annablume, 1997.
SEKEFF, M. L. Curso e discurso do sistema musical. São Paulo: Annablume, 1996.


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