No ano em que a obra do escritor irlandês James Joyce (1882-1941) caiu em domínio público e as editoras e os leitores festejam o acontecimento, a recente publicação de uma obra inédita do escritor causa polêmica.
Noticiou-se há pouco que uma pequena editora de Dublin, a Ithys Press, havia publicado o conto “O gato de Copenhague”, de Joyce, que seria uma continuação de seu conto infantil já conhecido, “O gato e o diabo”. Assim como este, o conto recém-publicado teria sido escrito numa carta para seu neto Stephen James Joyce, que contava então quatro anos de idade.
Segundo a editora da Ithys Press, Anastasia Herbert, Joyce escreveu o conto em 05 de setembro de 1936, na Dinamarca, algumas semanas depois de ter enviado ao neto a carta com “O gato e o diabo” (escrita em 10 de agosto, em Vilers-sur-Mer, França). Herbert explicou ao jornal inglês The Guardian, de 09 de fevereiro de 2011: “semanas mais tarde, em Copenhague, e provavelmente depois de procurar por outro lindo presente [para seu neto], Joyce redigiu ‘Gatos’, que começava assim: ‘Ai! Eu não posso te mandar um gato de Copenhague porque não existem gatos em Copenhague’. Certamente existem gatos em Copenhague! Mas talvez nenhum tão secretamente delicioso quanto esse”.
Os leitores interessados em conhecer esse texto do escritor irlandês terão de desembolsar uma quantia entre trezentos e 1200 euros, segundo o jornal inglês, e precisarão correr, pois só foram colocados à venda duzentos exemplares da preciosa obra. Os que não tiverem tanta pressa poderão esperar que a Fundação James Joyce de Zurique libere o material até há pouco inédito. Segundo o seu curador, Fritz Senn, em e-mail enviado a mim, “uma vez que a carta (como todo material não publicado) ainda está – muito possivelmente – protegida pela lei dos direitos autorais, nós não podemos enviá-la a ninguém sem incorrer em sérios problemas”. Senn considerou a publicação da carta uma “afronta”, que “feriu os códigos de decência e obrigações legais”. Afirmou ainda que a carta é propriedade “exclusiva” da Fundação.
De fato, a carta com “O gato de Copenhague” foi doada à Fundação James Joyce de Zurique por Hans Jahnke, filho de Asta, segunda mulher de Giorgio Joyce, filho do escritor. Ao que me consta, a existência dessa carta era tão secreta que nem mesmo Stephen Joyce, que foi o destinatário dela, a menciona no posfácio que escreveu à edição francesa da tradução de “O gato e o diabo” (Gallimard Jeunesse), em 1990: “Nonno foi um escritor célebre. Muita gente achava, então, e muitos acreditam ainda hoje, que o que ele escreveu é complicado e difícil de entender. Apesar disso, ele teve tempo de se sentar e de me contar essa estória maravilhosa [“O gato e o diabo”], numa língua muito simples, muito direta, numa linguagem fácil para uma criança de quatro anos. Nonno se deu até mesmo ao trabalho de procurar um papel de carta especial, no qual ele escreveu essa estória. O original, que milagrosamente sobreviveu intacto durante todos esses anos, é o meu bem mais precioso”. E prossegue: “Nonno me contou outras estórias, sobretudo no último ano da sua vida. De manhã, eu me sentava ao lado da sua cama e ele me contava as viagens, as provações e as aventuras de Ulisses, herói da Grécia antiga; tudo isso sempre numa linguagem simples e direta para uma criança de oito anos, idade que eu tinha então”.
Para Anastasia Herbert, “O gato de Copenhague” é uma “preciosidade”, que revela o lado mais leve e humorado de Joyce. Ao mesmo tempo, seria um texto político que discutiria o regime autoritário, o lugar comum e refletiria sobre a individualidade e o desejo de liberdade.
O humor e o aspecto político do conto, aludidos pela editora, se encontram em muitos outros textos do escritor. E, sendo esse novo conto, em particular, uma continuação de “O gato e o diabo”, não poderia ser diferente, afinal, no primeiro conto, os conflitos irlandeses vêm à tona, basta citar a figura engraçada do diabo e o prefeito chamado Alfred Byrne (1882-1956), nome de um político irlandês da época em que a Irlanda não era independente e o país vivia sob o controle do governo britânico. Alfie Byrne, como era conhecido, atuava tanto no governo britânico quanto no irlandês. Pode-se afirmar que ele, assim como o prefeito de Beaugency, em “O gato e o diabo”, negociava com o diabo, figura que representaria, no conto de Joyce, a Inglaterra, embora falasse inglês com sotaque de Dublin. Byrne foi também o primeiro prefeito de Dublin, depois da independência da Irlanda.
Enquanto a questão da publicação desse “inédito” não se resolve, resta-nos seguir um conselho que Joyce dava aos leitores de Finnegans wake: “agora, paciência, e lembrem-se, paciência é a melhor coisa” – o gato de Copenhague talvez não tenha pressa…
Dirce Waltrick do Amarante. Professora do curso de Artes Cênicas da UFSC. Organizadora e tradutora de Viagem numa peneira, Edward Lear (Iluminuras, 2011), autora de Para ler Finnegans wake de James Joyce (Iluminuras, 2009).